Praia de Mira, ed. Tabacaria Nilo. Praia de Mira (postais antigos) |
A saída é perigosa, e de um momento para o outro, a onda cresce e o barco não pode abicar. Daí as enormes embarcações, as redes, as cordas e os bois para as puxar. Para o sul, até Pedrogão, em Lavos, em Buarcos, a pesca é também costeira e de arrasto (...)
Julho de 1922
Manhã. Primeira ida ao mar das quatro e quarenta e cinco minutos. Um serouqueiro do sul que envolveu de bruma a noite acaba de desaparecer. Mas da névoa ficou névoa misturando-se ao azul e à frescura que dilata os pulmões e inebria. Um rapaz, no alto da duna, sopra o búzio com as bochechas cheias, chamando a companha para a pesca. O barco está pronto.
Praia de Mira, ed. Tabacaria Nilo. Aveiro e Cultura |
Uma esteira de varas, duas juntas de bois para o puxar, homens nus metidos na água e agarrados às cordas, e a onda que salpica e os alaga. Entra para dentro a companha. Refervem as ondas que o sacodem lá no alto... Os fortes rapagões agarram-se aos quatro remos, a proa alvora... É este o momento angustioso, enquanto se não safam da cova do mar.
Praia de Mira, ed. Tabacaria Nilo. Aveiro e Cultura |
– Eh arrais, carago, a maré é agora! – diz o João Custódio, revezeiro.
O arrais segura a corda, que é o único leme deste barco. Tudo consiste em saber «ferrar a volta na ré» para o livrar do vagalhão – tudo consiste em destreza e pulso, se- não o barco sacudido enche-se de água e vira. Dois homens, os caladores, ajudam-no a soltar o extenso cabo enrolado à popa, que nunca mais larga da mão. Num instante se livra da onda que quebra, mas a manobra é complicada.
O barco tem quatro remos nos quatro bancos: o do castelo da proa, o do remo da proa, o do remo da ré e o do castelo da ré. A cada um destes pesadíssimos remos se agarram quatro homens de pé nas estorveiras, que ficam nos intervalos dos bancos, seis sentados e ainda outros, os camboeiros, puxando os cambões – todos ao mesmo tempo, todos com o mesmo ritmo. O revezeiro, que ordena a saída para o mar, manda também em cada remo. Na parte mais delgada remam os caneiros, que trilham o remo e fazem a voga, ajudados pelos segundos.
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O barco vai largando o grosso cabo com nós, que se chamam balizas, até ao momento em que o arrais sente o peixe mais à terra, a aguagem, pela mudança da cor, ou distingue o alcatraz que nas águas lúzias cai a pique sobre a manta da sardinha. Outras vezes é a fervença ou gorgolhido que lhe indica onde está o peixe – pequenas bolhas de ar que ascendem à superfície – ou mesmo a ardentia com que os grandes bancos de sardinha iluminam o mar.
Então o arrais de pé dá o sinal dizendo: – Em nome do Santíssimo Sacramento, saco ao mar! – Toda a companha se descobre. Larga-se a cuada de malha mais miúda, a manga, peça mais grossa, e por fim o cabo, que se desenrola até à terra.
Voltam e o momento dramático repete-se. O barco vem no alto da ressaca. – Larga! larga! – Os homens remam cantando. Inunda-os um jorro mais impetuoso. Agora, é o arrais que na pancada do mar traz a corda na mão guiando o barco.
Um vagalhão de espuma vai despedaçá-lo e arrasta-o num último impulso pelo areal acima. Dois rapazes, metidos na água, enfiam logo nas argolas do costado duas ganchorras de ferro. Salpicos. Alarido. A companha salta em terra, jungem-se os bois às cordas, lança-se o estrado de varais pela areia; sobre os varais, roletes; e puxado pelos bois e pelos homens o barco enorme sobe, de proa voltada ao mar, e pronto para nova arremetida (...)
Lá em cima, no dorso do monte doirado, os carpinteiros de machado remendam dois esqueletos de barcaças... Vêem-se agora as pandas: juntam-se os cabos e a boca da rede cada vez se aperta mais. A vida atinge o auge. – Arriba! Arriba! – Todos deitam as mãos às cordas. Corre o mulherio. Rapazes quase nus metem-se à espuma e agarram a rede.
Os bois, espicaçados, parecem compreender que o momento é decisivo: – Eixe! Eixe! – E lá em cima retesam os músculos no último esforço. Depois largam o cabo, correm ao fundo, entram na água, que esguicha, guiados pelas cachopas de aguilhada no ar e salpicados de espuma. Aí vêm os outros: desligam-nos e tornam logo arriba. Mais depressa! Mais depressa sempre! A onda enconcha, com um friso refervendo-lhe na crista a desabar – e bois, cachopas, homens quase nus, agarram o saco, inundados de espuma que os envolve.
O último esforço... Dois rapazes saltam na água e apertam a boca do saco com uma corda para o peixe não fugir. – Eh! Eh! – Mais gritos. O mar, cada vez mais impetuoso, rebenta sobre o areal, rolo atrás de rolo, e os homens e os bois saem a correr do vagalhão de espuma...
Foi diante de um quadro assim que Ferdinand Denis exclamou, assombrado:
– Que estranho país é este onde os bois vão lavrar o próprio oceano?!...
As mulheres e os almocreves excitados deitam mão à rede e o saco sai da água, a rasto pela areia entre laivos verdes que escorrem (...)
À primeira vista parece uma coisa teatral, prestes a desconjuntar-se, só cenário e mais nada, com quatro patas desajeitadas de bicho, sem o alicerce da quilha a sustentá-lo, impróprio para o mar e para a terra – obra de lavradores que resolveram um dia ir à sardinha.
Os quatro remos pesadíssimos, com uma parte mais grossa e reforçada, que se chama cágado, são coevos do alfange, e estes bicos aguçados, que tão bem ficam no areal e no céu, não têm solidez nenhuma.
Praia de Mira Aveiro e Cultura |
Na realidade um barco destes, que parece inútil, é um produto de engenho secular. Como não há porto nem abrigo e a embarcação tem de passar logo do areal para a onda que escachoa, atravessando a arrebentação para sair ao largo ou para regressar à terra, era necessário oferecer à onda a menor resistência e saltar-lhe no dorso: – por isso ergueu a proa.
E como a dança das ondas se sucede durante alguns minutos, era forçoso também que, mal assentasse na água, lhe andasse ao de cima: – e a popa fugiu-lhe para o céu.
O barco tem exactamente o feitio côncavo do espaço que vai de vaga a vaga, com um pouco de espuma figurada nas duas extremidades.
Estas grandes embarcações constroem-se na Lagoa, onde só carpinteiros especiais lhes sabem dar o estaleiro necessário, e vêm em carros de bois puxados por doze juntas até à Banha. São levantadas à proa, castelo da proa, e aguçadas até à ponta, bica; e levantadas à ré com a sua bica na extremidade.
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No castelo da proa têm duas mãozinhas salientes para as ligar à terra por uma corda chamada rangedeira, não as deixando descair quando o vento as impele e elas esguelham, e quatro escalamões de ferro onde entram os buracos dos quatro grandes remos.
Hoje só há em Mira quatro companhas, com os seguintes arrais: Manuel Maria Patrão, Manuel Fé, Manuel Mirão e Gabriel Janeiro; mas já houve onze, comandadas por José Patrão, Manuel Cera, Arraizinho, Tito Marrete, etc., todos mortos (...)
Como vive esta gente? Vive com simplicidade nos palheiros, casa ideal para pescadores ou para um velho filósofo como eu. É construída sobre espeques na areia, com tábuas de pinho e um forro por dentro aplainado. Duram tanto ou mais que a vida: cheiram que consolam, quando novas, a resina, a árvore descascada e a monte; ressoam como um velho búzio e são leves, agasalhadas, transparentes.
Por fora escurecem logo, e envelhecendo caem para o lado ou para a frente; por dentro conservam uma frescura extraordinária, e quando se abre uma janela, abre-se para o infinito. No chão dois tijolos para o lume, em esteiras alguns peixes a secar (...)
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Donde veio esta gente para o areal? É a mesma raça prolífica da beira-mar, que nos enobrece e que eu conheço da Afurada até Leiria, os homens graves e serenos diante do perigo, e as mulheres trabalhadeiras, sempre de chapelinho redondo e xaile. Levantam-se de chapéu, trabalham de chapéu, deitam-se de chapéu e cuido que dormem com ele na cabeça. Nunca deixam a beira-mar, como se a respiração do mar lhes fosse indispensável à vida e foram-se estendendo sempre pela costa até ao Algarve, onde fundaram uma colónia em Olhão.
Estes, de Mira, vieram das proximidades, de Mira vila, de Porto-Mor, etc. Ainda há memória de só existirem aqui meia dúzia de palheiros – o do tio Soldado, o do tio Domingos Rabita e poucos mais. Na época da pesca acode gente do Seixo, Cabeça e outras povoações dos arredores.
Além dos barcos grandes, usa-se em Mira a robaleira e a manhosa, todos do mesmo feitio mas mais pequenos. A robaleira leva rede de arrasto e doze homens de companha, e a manhosa, seis homens e rede de emalhe, com três panos, os exteriores, albitanos, um de cada lado do pano de dentro. A robaleira vai também ligada à terra por um cabo, mas a manhosa não leva cabo. É para a tainha. Cerca-se e bate-se.
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Há cinquenta anos que não lembra que morresse aqui ninguém de desastre no mar. Às vezes a onda vira o barco, envolve os homens e deixa-os sem sentidos. Quando os tiram por mortos, para fora do mar, metem-nos no sal como as sardinhas, «para lhes apertar os ossos». É grande remédio, dizem. Ano passado, houve um que, depois de estar no sal quarenta e oito horas, ainda tornou a si... (1)
Ao lado do areal onde se finca a povoação de Mira, há um resto da ria de Aveiro, que teve aqui noutros tempos uma saída para o mar e que se chama ainda hoje a Barrinha. É uma gota de água pensativa a cinquenta passos do mar. Canaviais e areias... (2)
(1) Raul Brandão, Os Pescadores, Paris, Ailland, 1923, 326 págs, 127,7 MB
(2) Idem
Leitura relacionada:
Manuel Resende, Praia de Mira aldeia de pescadores, Panorama n° 21, Junho de 1944
RTP Arquivos:
Onde os Bois Lavram o Mar
Artigos relacionados:
Barco da xávega de mestre Gadelha
Os pescadores de Raúl Brandão
etc.
Leitura adicional:
Henrique Souto, Comunidades de pesca artesanal na costa portuguesa... 1998
Maria João Marques, Arte Xávega em Portugal
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