segunda-feira, 29 de junho de 2020

Sarah Affonso, postais da Costa a Manuel Mendes (1930-1931)

Ainda na década de 1930, a Costa era um fervedouro de conversas e encontros entre os escritores Manuel Mendes e José Rodrigues Miguéis (amigos desde a juventude e companheiros da Seara Nova), e respectivas mulheres, Berta e Pola, os desenhadores e retratistas Sarah Affonso, José Tagarro e Alice Rey Colaço, o maestro e compositor Fernando Lopes-Graça, e o escultor Barata Feyo. 

Autorretrato (1927) e retrato de Manuel Mendes (1930), Sarah Affonso.
MNAC

As temporadas que Rodrigues Miguéis passou na vivenda Engrácia (Quinta de Santo António), alugada por Manuel Mendes, inspiraram algumas passagens da sua obra, como esta de O Milagre Segundo Salomé, em que a "criadinha pacóvia e sem lábia", Dores dos Santos, vai com o senhor Tesouras à Costa da Caparica: "Ela nunca tinha ido a uma praia de verdade, co 'mar' para ela era o Tejo, aquilo que se avistava de Algés e Dafundo..." (1)

3 de agosto de 1930

Receia que o assunto, que lhe interessa, não esteja resolvido. Regressa a Lisboa...

Costa da Caparica, Partida para a pesca, ed. Acção Bíblica (Aliança Bíblica), c. 1930.
Casa Comum

14 de agosto de 1931

Envia cumprimentos, esperando a sua visita...

Costa da Caparica, A Praia do Sol, A faina, ed. Acção Bíblica Casa da Bíblia, c. 1930.
Casa Comum

12 de outubro de 1931

Informa-o sobre a partida para Lisboa...

A Praia do Sol, Costa Caparica, ed. Acção Bíblica Casa da Bíblia, c. 1930.
Casa Comum


(1) Costa da Caparica: de Pina Manique a Mário Domingues, revista Sabado 22 de agosto de 2019

Mais informação:
Museu Nacional de Arte Contemporânea
Museu Calouste Gulbenkien, Sarah Affonso
Almanaque Silva, Mariazinha africanista
Casa Comum, Sarah Affonso

sábado, 20 de junho de 2020

Os noivos (último canto de Bulhão Pato)

«Se passares pelo adro,
No dia do meu enterro,
Pede á terra que não gaste
As tranças do meu cabello.»
Canção Popular.

I

A aldea é de pescadores.
Por essas costas do mar,
Quando as tormentas começam,
Aquillo é que é labutar!

Desenho da Costa antiga, autor António Lopes Martins, Col. Particular.
Rui Manuel Mesquita Mendes (fb)


Ás vezes um mez a fio,
O vento sem acalmar,
E os vagalhões dia e noite
Nas rochas a rebentar!

Algum remedio, e bem pouco,
Que tanto custa a juntar,
Pois basta um mez de invernia,
Nem tanto, para o levar!

Que vida a da pobre gente,
Quando começa a lutar
O vento bravó co'as ondas,
Por essas costas do mar!

II

Ha quatro casas e a ermida
De pedra e cal, o demais
Choças de colmo que ás vezes
Destroem os vendavaes.

Mas quando chega o bom tempo,
E a pesca não escaceia,
Respira toda alegria,
Apesar de pobre, a aldea.

Daniel é moço e forte; 
Ninguém com elle compete, 
Já no saber, já no arrojo 
Com que a todo o mar se mette!

Vê-se uma negra de peixe —
Ás vezes mal se tem visto: 
Lá vae co'a sua companha 
Por esses mares de Christo. 

Tem fé co'a Virgem do Amparo, 
E alguém diz qne a devoção 
É por ser Amparo o nome 
De certa rosa em botão. 

D'entre as demais raparigas 
Só ella não é trigueira, 
Também não se expõe ao tempo, 
Trabalha como rendeira. 

Lidar de noite e de dia, 
Com tanto affinco, é bem raro!
Esteio da mãe velhinha, 
Bem posto o nome de Amparo!

Daniel, n'aquella aldeia 
Onde o viver é tão parco,
Já tem um barco, e tem redes, 
Quo valem mais do que o barco.

III

A mutua affeição dos dois,
Que era na infância amisade,
Tomou-se em amor, depois
Que entraram em certa idade.

Elle quiz-se declarar,
E com voz entrecortada,
A custo poude fallar:
Ella é que não disse nada!

Sentindo agitado o seio,
Não raro diz a innocencia,
Com a mudez do receio,
Bem mais que a voz da eloquência!

Que importa o que os lábios calam,
Quando as palavras se prendem?
Também as flores não fallam,
E pelo aroma se entendem!

É que esse aroma, imagino
Que será, talvez, na flor
O mesmo effluvio divino
A que chamamos amor !

IV 

Amparo tínha no rosto
Uma expressão de ternura,
Que lhe dava mais encantos
Do que a própria formosura!

Os olhos azues purissimos,
E de transparência tal,
Que deixavam ler no fundo
Da sua alma virginal!

O cabello loiro-escuro,
Tão basto, tão annelado,
Que era um primor, posto em tranças,
É mn enlevo, desatado!

No tempo em que era creança,
E de génio folgasão,
Com as outras raparigas,
Pelas tardes de verão;

Andava a brincar na praia,
E a espreitar de quando em quando:
Os hombros nús, mais que os hombros...
Emfim, co'as ondas folgando.

N'isto vinham os rapazes
Mas o cabello era tanto.
Que sacudia a cabeça,
E servia-lhe de manto!

Ao amado da sua alma
Deu ella um dia, em secreto.
Um annel d'esses cabellos.
Penhor de sagrado affecto!

E elle, cheio de alvoroço,
Sem hesitar um momento,
Para pagar-lhe a fineza,
Foi pedil-a em casamento.

Fundíam-se aquellas almas
Em celestiaes alegrias:
Ha dias do ceu na terra!
Eu creio que ha d'esses dias!

V

Uma tarde, era nas vésperas
De se fazerem as bodas,
Os pescadores na costa
Largavam as redes todas.

O ceu estava sereno;
Era propicia a estação:
Logo em entradas de outono,
Dias como de verão.

Porém o vento levanta-se!
E quando menos se espera.
Seja verão, seja outono,
Seja inverno ou primavera.

Daniel, deixando os outros,
Com a companha a seu cargo,
Fez-se ao mar, largando as artes
A duas léguas de largo.

O peixe dava em cardumes;
Lidando não attentaram
No aspecto de certas nuvens
Que no ceu se agglomeraram. 

Dentro de pouco os relâmpagos
Nos ares a fuzilar,
E o vento a picar as ondas,
E as ondas a rebentar!

Podiam correr á popa,
Mas não sem todo o cuidado,
Que á popa, em caindo tempo,
É navegar arriscado.

A vela posta nos rizes
— O vendaval carregava —
Como um falcão corta os ares,
O barco as. ondas cortava!

Amparo, sobre um penhasco.
De mãos. postas a resar:
A morte no arfar do seio,
Ancias de morte no olhar

Elles já perto da costa,
E o povo junto a dizer:
«Se o barco vem aos cachopos
Só Deus lhes pode valer!»

Tentaram fazer-se ao largo,
Luctando co'a morte a braços;
Mas deram sobre os rochedos,
E o barco fez-se em pedaços!

Salvou-se toda a companha.
Daniel inda se ouviu 
Bradar: — «Ó Virgem do Amparo!»
E nisto não mais se viu...

A noiva soltara um grito;
Mas quem lhe fôra acudir,
Vira-lhe o rosto sereno,
E até a bocca a sorrir!

Aquelle grito estalara-Ihe
As fibras do coração
E a infeliz, nesse momento,
Tinha perdido a razão!

VI 

Passados dias, Amparo
Puiha-se á beira do mar,
A olhar — como quem espera
Por alguém que hade voltar!

E os que passavam ouviam-lhe,
Sem que ella desse por tal,
Repetir estas palavras
D'uma tristeasa mortal:

«Devem cumprir-se os pedidos
D'aquelles que vão morrer;
Uma só coisa te peço,
— Mas que tu me has de fazer:

«Se passares pelo adro.
No dia do meu enterro,
Pede á terra que não gaste
As tranças do meu cabello.»

E depois, soltando as tranças
A larga brisa do mar,
Repetia inda estes versos,
E desatava a chorar!

Janeiro, 1871 (1)


(1) Bulhão Pato, Cantos e satyras, Lisboa, Rolland & Semiond, 1873

terça-feira, 16 de junho de 2020

Bulhão Pato pelo visconde de Benalcanfôr


N'um esboço tocado de traços fugitivos não cabe de certo a minucia demorada, mas indispensavel no retrato para a semelhança perfeita das feições e das physionomias. Por mais sobrio de divagações que seja o escriptor, torna-se-lhe muito difficil, senão impossivel, contrahir na tela acanhada de um capitulo as magestosas ondulações de uma corrente de poesia que ha vinte e quatro annos* despraia pelas margens da nossa litteratura depon do n'ellas o nateiro abundante e riquissimo de suas creações poeticas.

Bulhão Pato (1828-1912)
(insp. Andy Warhol, Ten Lizes, 1963)

* Data de 1850 a apparição das primeiras poesias de Bulhão Pato. Seguem-se-lhe em 1857: Amor virgem n'uma peccadora, comedia-drama em um acto, prosa e verso 1862 ; Versos , 1 vol .  1864 : Digressões e novellas , 1 vol . , e Graziella , versão de Lamartine 1866 : Paquita ( poema ) , 1867 ; Canções da tarde , 1 vol . - 1869 ; Flôres agrestes , 1 vol .  1871 ; Paisagens ( prosa ) , 1 vol , 1873 ; Cantos e satyras , 1 volume. Editores , Rolland e Semiond , 1873, Lisboa ; Renan e os sabios da academia ( satyra ) , O cemiterio de Pisa , e a Vendetta , versões de Emilio Castellar , e de Balzac.

De feito , a indole primordial e as evoluções subsequentes do talento de um escriptor ou de um poeta qualquer , teem mais do que affinidade remota com as nascenças de um rio. Como este , o talento tambem brota modesto de suas origens , e engrossa depois a sua corrente , já derivando se reno , já correndo agitado , ora apertando-se em voltas caprichosas , ora alargando seu alveo e rolando magestoso até se metter no oceano ordinariamente tempestuoso da fama litteraria . Porque é que , aos 19 annos , apaixonado e ter no como um trovador , com a bocca ainda humida do ultimo beijo , a mente escandecida por visões encantadas e por sonhos voluptuosos que — sómente a aurora desfaz arroxeando o horisonte , para voltarem na noite immediata , — canta os amores juvenis , com seus enleios e suas malicias tam bem ?

Porque scisma dôcemente Bulhão Pato vendo os lirios e as boninas em que pousa o orvalho das manhãs de abril ? Porque aspira com embriaguez o aroma dos campos ? Porque escuta os mil rumores mysteriosos do bosque ? Porque se fica esquecido a contemplar as nuvemsinhas do poente e as sombras melancolicas do crepusculo da tarde ? E porque é tambem , que passados vinte annos , vêmos o mesmo poeta , outr ' ora rescendente das essencias mais fragrantes do lyrismo , despedir-se , pelo menos momentaneamente , das canções amorosas , arrancar as cordas do seu alaúde romantico para pulsar a lyra fremente da indignação vingadora de Juvenal , de Augusto Barbier e de Victor Hugo ?

É facil conciliar esta contradicção apparente , pois não é senão uma phase natural de sua indole poetica , lembrando-nos de que Bulhão Pato é um poeta essencialmente espontaneo ; que a sua poesia é o reflexo fiel da sua alma . Suas canções risonhas como uma alvorada de maio quando as illuminava o sol da primeira mocidade , assumiram nas satyras já a gravidade das paisagens severas , já o aspecto tragico das cataratas que se despenham no inverno com medonho estrepito , ou o das noites de procella cuja escuridão é apenas alumiada pelo fulgor livido dos relampagos.

É que a doçura das illusões juvenis cortou-lh'a o travo das decepções ; é que aos idyllios descuidosos da manhã da vida seguiu-se , no poeta , o drama viril da existencia com o seu cortejo de lutas , e de paixões acerbas.

Foi este pendor natural por onde o poeta foi levado das regiões tranquillas da poesia individual e lyrica aos espaços tempestuosos da poesia social e da satyra politica , aonde as coleras , os resentimentos e até as proprias aspirações do poeta , ou antes do partidario , é inevitavel que tumultuem com o fragor e a espuma das ondas irritadas. Se a Nemesis politica pode ser , como é sempre nas satyras de Bulbão Pato , elevada , decorosa e elo quente , nem por isso está isenta , em outros poe tas contemporaneos , das allucinações do furor , e dos rebates rancorosos.

Poeta de verdade , fiel ás vozes interiores da consciencia que o chamam a combater por uma causa em que vê o triumpho da justiça , ou a fulminar os que se lhe afiguram vicios e hypocrisias sociaes com os seus terriveis alexandrinos , verda deiros raios despedidos pela mão de Juvenal , Bulhão Pato é tão espontaneo e sincero hoje na explosão das paixões , que o abrazam , como o era d'antes nas effusões do seu adoravel lyrismo.

A sua musa , agora como sempre , não se envolve em roupagens theatraes , nem carece de lentejoulas para nos seduzir com os seus encantos . É essencialmente singela , desaffectada , natural . O seu culto é o do bello , idealisado pela arte . Se algumas superstições alimentar , como todos os cultos , serão as da sinceridade dos sentimentos , da espontaneidade das impressões.

Será esta a ultima e definitiva phase do seu talento poetico , affirmado por tantos monumentos , em que a sua phantasia ao mesmo tempo vigorosa e delicada gravou as suas creações como os esculptores mais afamados gravaram com o cinzel as suas no marmore antigo mais puro ?

Não o acreditamos . A natureza com as suas vozes mysteriosas ; o coração humano com os seus enleios , esperanças e amarguras ; os mil dramas commoventes da existencia ; as subtilezas e os arcanos psychologicos da alma ; as tragedias moraes da paixão , em que gemem e succumbem , duramente suppliciados , os affectos mais intimos ; eis a tela larga e permanente em que hão-de voltar a embeber-se as côres da palheta opulenta e admiravel do nosso eminente poeta . Ainda bem , que as apostrophes e as coleras partidarias são apenas na vida social , e na littera ria tambem , um ephemero accidente.

Especie de relampagos que atravessam a atmosphera , sua claridade é momentanea , como momentaneo é tambem o ribombo do trovão que os acompanha.

Afastados os negrumes da procella , o céo recobra a antiga transparencia etherea , semelhante á superficie azul de um lago immenso que nenhuma aragem encrespa.

Quaes são as feições salientes do genio poetico de Bulhão Pato ? a imaginação , a sensibilidade , a perfeição inimitavel da fórma , e o gosto sem igual.

Em todo o poeta , que o é deveras , ha forçosamente a coexistencia da imaginação , que cria as ficções , as scenas , os personagens , com a sensibilidade que o domina , antes de nos commover , e com a melodia do rythmo cujas cadencia , sonoridade ou valentia formam a linguagem sublime da linguagem da poesia . A todo este conjuncto feliz de qualidades devem presidir as leis soberanas do gosto que lhe dão relevo , vigor , graça e harmonia.

Quando o poeta melodioso da "Harpa do crente" e da "Voz do propheta" [Alexandre Herculano] escreveu no prologo da Paquita que "Bulhão Pato é sobre tudo um homem de gosto e que o homem de gosto é sobre tudo singelo" , resumiu n 'um traço a physionomia inteira do author dos Cantos e satyras.

Alexandre Herculano (1810-1877).
Retrato por Francisca de Almeida Furtado, 1852.
 MNAA, Obras em reserva, O museu que não se vê.

Adivinha-se n'elle a sua predilecção pela singeleza de Garrett , desespero de tantos que inutilmente a teem procurado na poesia e na prosa . Nas "Digressões e novellas" , bem como nas "Paisagens" , digamos , ha contos e episodios narrados e descriptos com tal suavidade de linguagem e tal frescura de tintas , o colorido é ao mesmo tempo tão sobrio e acertado , a trama da prosa tão finamente tecida , o dizer tão caloroso e casto , que acabando de lêr aquellas paginas , nos sentimos consolados , não só com a certeza de não haver desapparecido com o visconde d'Almeida Garrett o estylo elegante , singelo e sobrio das Viagens na minha terra , mas até de o vêrmos luzir na simplicidade das suas roupagens , tão animado como d'antes , flexivel , eloquente.

Voltando á sua poesia , podemos dizer que Bulhão Pato canta suavemente , ternamente , quer o enlevem as scenas da natureza , quer o commovam as dôres profundas ou as miserias dilacerantes dos supremos infortunios . Nas cordas da sua lyra resốam-lhe espontaneos os canticos , como o vento na harpa eolia , desferindo por si mesma as notas e as estrophes . A melodia , a tristeza e o amor divagam pelas cordas do seu alaúde como o luar de uma noite de outono pelas campinas , avel ludando - as com sua doce e pallida claridade.

O seu ideal poetico nem é o naturalismo exagerado de Goethe  nem a ironia desesperada de Byron. 

Respira-se nos seus poemas o perfume do lyrismo de Garrett e de Lamartine , interrompido a espaços pela toada doudejante de Musset , mas illuminado e aquecido pelas chammas do sol da peninsula que lhe dourou o berço.

Almeida Garrett (1799-1854)
Retrato por Manuel Araujo Porto-Alegre, 1833.
Instituto Camões

Abundam na harpa do poeta as notas sentidas da elegia , e alguns dos seus poemetos , entre elles a "Rosa do monte" e "Os Noivos" , são deliciosos pelo interesse dramatico que os anima , pela paixão intensa que respiram e pela perfeição dos moldes poeticos.

Em ambas estas composições, admiraveis de fórma , o poeta elevou-se á mais alta sensibilidade, orvalhando-as de lagrimas e commovendo-nos. Que sobriedade de traços na pintura da aldea, nos Noivos, e que sympathia contagiosa pela vida aspera dos pobres pescadores !

A aldea é de pescadores .
Por essas costas do mar ,
Quando as tormentas começam ,
Aquillo é que é labutar !

Ás vezes um mez a fio ,
O vento sem acalmar ,
E os vagalhões dia e noite
Nas rochas a rebentar !

Algum remedio , e bem pouco ,
Que tanto custa a juntar ,
Pois basta um mez de invernia ,
Nem tanto , para o levar !

Que vida a da pobre gente ,
Quando começa a lutar
O vento bravó co ' as ondas ,
Por essas costas do mar !

Ha quatro casas e a ermida
De pedra e cal , o demais
Choças de colmo que ás vezes
Destroem os vendavaes.

Mas quando chega o bom tempo ,
E a pesca não escaceia ,
Respira toda alegria ,
Apesar de pobre , a aldea.

A pintura da noiva de Daniel, o arrojado pescador , é um modelo de poesia, e de naturalidade, em que se reproduzem as altas faculdades do poeta, a imaginação viva, a singeleza graciosa, a ternura tocante e o atticismo da fórma :

Amparo tinha no rosto
Uma expressão de ternura ,
Que lhe daya mais encantos
Do que a propria formosura !

Os olhos azues purissimos , 
E de transparencia tal , 
Que deixavam lêr no fundo 
Da sua alma virginal ! 

O cabello louro - escuro , 
Tão basto , tảo annelado , 
Que era um primor , posto em tranças , 
E um enlevo , desatado !

No tempo em que era criança 
E de genio folgazão , 
Com as outras raparigas , 
Pelas tardes de verão , 

Andava a brincar na praia , 
E a espreitar de quando em quando 
Os hombros nús , mais que os hombros . . . 
Em fim co ' as ondas folgando.

N ' isto vinham os rapazes — 
Mas o cabello era tanto , 
Que sacudia a cabeça , 
E servia - lhe de manto !

E que vêa dramatica lateja na rapida scena do temporal que de repente se levanta !

O céo estava sereno ; 
Era propicia a estação : 
Logo em entradas de outono , 
Dias como de verão. 

Porém o vento levanta - se 
E quando menos se espera , 
Seja verão , seja outono , 
Seja inverno ou primavera.

Daniel , deixando os outros , 
Com a companha a seu cargo , 
Fez - se ao mar , largando as artes 
A duas leguas de largo. 

O peixe dava em cardumes ; 
Lidando não attentaram 
No aspecto de certas nuvens 
Que no céo se agglomeraram. 

Dentro de pouco os relampagos 
Nos ares a fuzilar , 
E o vento a picar as ondas , 
E as ondas a rebentar !

Podiam correr á pôpa 
Mas não sem todo o cuidado 
Que á pôpa , em cahindo tempo , 
E ' navegar arriscado. 

A véla posta nos rizes — 
O vendaval carregava — 
Como um falcão corta os ares , 
O barco as ondas cortava ! 

Amparo , sobre um penhasco , 
De mãos postas a rezar : 
A morte no arfar do seio , 
Ancias de morte no olhar.

Elles já perto da costa , 
E o povo junto a dizer : 
« Se o barco vem aos cachopos 
Só Deus lhes póde valer ! » 

Tentaram fazer - se ao largo , 
Lutando co ’ a morte a braços ; 
Mas deram sobre os rochedos , 
E o barco fez - se em pedaços !

Com que saudade nos apartamos dos vergeis amenos , das solidões melancolicas ou das campinas risonbas por onde divagam alternadamente os folgares e as tristezas do seu lyrismo , lagrima crystallina em que por instante brinca um raio de sol !

Com que pena dizemos adeus aos lagos transparentes em que o vêmos espanejar suas azas brancas de cysne , para seguirmos embora por poucos instantes o poeta ás regiões tempestuosas da satyra , onde os jambos de Archilocho fuzilam como raios por entre as nuvens negras de procella e os alexandrinos esplendidos do nosso poeta ullulam , encapellando - se , como vagas enfurecidas , e possessas do demonio da tormenta !

Ouçam esse brado , em que renascem as mofas e o desprezo de Juvenal :

Lá vai correndo as ruas da cidade , 
A quatro , um titular da grande sociedade . 
Que apparatoso trem , que fardas d ’ espavento ! 
Pasma o futil vulgacho em face do portento ! 
Quem é ? sabem quem é : conhece - o todo o mundo : 
Um nobre , um par do reino , um sapo nauseabundo , 
Que á plena luz do sol , viscoso e repellente , 
Ou na praça ou na rua enoja a toda a gente ! 

Este illustre varão , poço de iniquidades , 
Tem — faculta - lhe a lei — varias immunidades : 
Póde até legislar ! ó povo desgraçado , 
Decide - te da sorte o voto d ’ um forçado , 
Que , se houvesse moral , já não seria estranho 
Vêl - o com a braga ao pé a trabalhar no banho !

A satyra que tem por titulo "Dalila" reune , a meu vêr , quantos predicados se exigem da satyra , para que ella nem na grandeza , nem na magestade , nem na eloquencia , nem na indignação , nem na ironia , desça das alturas em que deve pairar , sob pena de deixar de ser à musa terrivel do sarcasmo e transformar - se na collareja desbragada e plebêa dos mercados.

Este é o perigo supremo , a catastrophe séria que ameaça a maior parte das imprecações poeticas da actualidade . A satyra ha - de ser mais do que um aggregado de epithetos deprimentes e de injurias villăs , embora ligados n ' um feixe poetico pelo laço prestigioso de um rythmo sonoro e opulento.

É preciso sobre tudo que a satyra não perca nunca a elevação da idéa , a finura subtil da analyse , o cambiante feliz e inesperado nos traços incisivos e rapidos das suas ironias e que a colera , que a domina , não a afunde no charco das obscenidades grosseiras nem a rebaixe ás indecencias avinhadas de uma bacchante meio despida.

Eis um trecho da satyra a que nos referimos :

Que singular mulher ! 
que estranha formosura ! 
Tem tudo — o andar , o gesto , a graça da figura ! 
No purissimo azul dos olhos crystallinos 
A luz que nos transporta aos extasis divinos . 
Casando - lhe a altivez co ’ a timida innocencia , 
Deu - lhe ao rosto o ideal a mão da Providencia. 
O devoto dirá , vendo - a rezar no templo : 
« Não pode ser do mundo aquella que eu contemplo ; 
Se és anjo implora a Deus o bem da humanidade ! » 
Tal assombro produz a magica beldade !

Pois bem , esta mulher — mulher unicamente — 
Enreda , calumnia , infama a toda a gente.
No livro de orações á margem tem marcado 
O dia da entrevista , o ponto combinado. 
Uma vez escondeu , por ser o caso instante , 
No berço d ' uma filha as cartas d ’ um amante. 
Profanando , sem alma , o coração do lar , 
Profana tudo mais : a prol ' , o templo , o altar ; 
Mas como entra no mundo apparatosa e rica , 
Co ' as virtudes da santa o mundo se edifica !

Esta magnifica satyra , recheada , como vêem , de contrastes felizes , de antitheses de hypocrisia e de devassidão , de perfidia e de cynismo , prosegue sempre variada nos tons , acertada nos cambiantes e nas gradações . Na ultima parte d'ella , o poeta figura uma infeliz trahida nos seus amores pelo homem de quem teve uma filha . A sociedade mostra - se indifferente a tão grande infortunio.

Perante este egoismo revoltante do corpo social o poeta exclama :

O mundo que applaudiu as galas deslumbrantes 
Da perfida ao marido e perfida aos amantes 
Co ' a implacavel moral que inflamma a gente séria 
Desampara a infeliz prostrada na miseria.

Bemdito seja Deus ! — os que mais fazem d ' isto 
Andam sempre a invocar teu santo nome , ó Christo. 

A moralidade que respira esta composição , o caracter impessoal com que fecham estes versos esplendidos , irreprehensiveis , aonde , além do ar tista que inventa , ha o lapidario paciente que pule os prismas do diamante , o Benvenuto Cellini que lavra com um buril privilegiado e unico os pri mores da phantasia , tornam admiravel a satyra de Dalila ; e provam a elevação artistica a que póde attingir , nas mãos de um poeta eminente e sabedor da arte , um genero aliás tão perigoso e cercado de precipicios.

As suas satyras , até hoje publicadas , respiram pela maior parte a punição das apostasias e a au dacia generosa das aspirações da liberdade , sem os doestos e as represalias sanguinolentas que ge ralmente , seja qual fôr o paiz e o talento do es criptor , salpicam a satyra , e por vezes a fazem rojar pelos tremedaes , desgrenhada , odienta , plebêa.

Quando nos lembra que Barbier , o notavel e fogoso poeta , que em plena monarchia de julho fez lampejar em todo o seu fulgor os raios da satyra antiga , descrevia a liberdade como uma mulher robusta ,

Qui ne prends ses amants que dans la populace 
Qui ne prête ses larges flancs 
Qu ' a des gens forts comme elle , et qui veut qu ' on l ' embrasse 
Avec des mains rouges de sang , 

e se extasiava com o fanatismo servil de um li berto de Claudio diante das escorias sociaes , ani . madas de odios profundos ás quaes elle chama

La grande populace et la sainte canaille 

é facil prever a quantas aberrações , a quantos desregramentos póde arrastar , quando manejada por mãos imprudentes ou inhabeis , esta arma litteraria em que , se por um lado , respiram as paixões nobres e viris , por outro fermentam , não raro , os sentimentos baixos , as vinganças biliosas , e a licença deshonesta das maximas torpezas.

Ainda bem que a satyra de Bulbảo Pato é sempre elevada . Que outros não a prostituam aos convicios das encruzilhadas e não a manchem com o lodo das infamias partidarias , é o nosso voto mais sincero.

Oxalá que não se vulgarize um genero litterario que , pela sua mesma natureza , não pode ser na arte senão uma manifestação excepcional , tendo - se em conta a exaltação febril e as paixões acerbas , necessarias para a sua gestação , e de que ella vive infelizmente como da sua vida natural e permanente.

Sente - se porém admiração espontanea , irresistivel , bemdiz - se até o jambo de Archilocho e o latego de Juvenal , quando n ' elles trôa a eloquencia vingadora de "Victor Hugo no Calvario" , e da "Velhice do Seculo" . É que então a arte reveste - se , deslumbrando - nos , de todos os esplendores das auroras boreaes.

Quando a musa sobe tão alto na indignação e na eloquencia , e dos seus pincaros de luz e de chammas , ao mesmo tempo magestosa e terrivel , dardeja raios ardentes , que alumiam e abrazam quanto tocam , a grandeza solemne da scena asso berba o espectador , e subjuga - lhe por tal forma as faculdades da analyse e da critica , que estas co mo que se paralysam , para só viverem as do en thusiasmo e as da admiração.

Ouçamos o poeta [cf. Victor Hugo no Calvario ( Cantos e Satyras ) , pag . 160]:

Já um dia em Paris a honrada burguezia 
Fraternizou tambem co ' a santa clerezia , 
Protegeu a matança , e depois d ' esso horror 
Assentou sobre o throno um certo imperador. 
Veio à paz , engordou - - embora amordaçada , 
— O clero a dominar a plebe fascinada ; 
Nos campos a nudez , nas côrtes a opulencia ; 
Os excessos do luxo a darem na demencia ; 
Censura ao pensador , licença ao imbecil , 
Ao zombeteiro estulto , ao escriptor mais vil . 
Que succedeu depois ? - o tronco derrancado 
O fructo que produz é fructo desgraçado.

O direito era a força , e julgando - a tamanha 
Claudio ousou provocar os brios da Allemanha . 
O clero abençoava o protector de Roma : 
Rugia o seu leão e sacudia a coma . 
De repente a panthera atira - se ao leão , 
Mas encontra na garra um Cesar charlatão.

Não podem apagar - se versos como estes . Fundidos em bronze , teem a solidez e hão - de ter a duração e o relevo das moedas e das estatuas d ' aquelle metal . A posteridade ha - de sentir para estas composições a mesma admiração que sente para as satyras de Persio e de Juvenal , de Barthelemy e de Augusto Barbier ; porque nas satyras de Bulhão Pato fundem - se com primor igual a grandeza e a elevação da invectiva na pureza inexcedivel , perfeitissima do rythmo , — nos mais sonoros e va lentes alexandrinos , em que pode esculpir - se a linguagem de um poeta portuguez.

Troveje elle muito embora na satyra e folgue , por momentos , de sé nos revelar por entre os fulgores do raio e o graniso de fogo dos coriscos dos seus alexandrinos ; mas , por Deus lh ' o pedimos , não se despeça das regiões do seu lyrismo encantador. 

Não diga para sempre adeus á musa travessa e de vaneadora da Paquita , — d ' esse poema que lhe con quistou os fóros de eminente poeta , — d ' esse poema , que é um monumento indestructivel como já é também o tormento dos seus detractores ; por que bem sabe elle que a corôa da gloria litteraria é desgraçadamente cravada , por dentro , dos espinhos da inveja , que , por baixo das folhas de lou ro estão de continuo ensanguentando a fronte dos infelizes que a cingem!

Em resumo : eloquente , magestoso , por vezés terrivel , vibrando o sarcasmo , manejando a iro nia , nunca descahindo nas vulgaridades grosseiras , nem se atolando nos paúes da injuria torpe ( escolho dos talentos pouco delicados que confundem o vo zear das feiras com as imprecações nobres ) , Bulbão Pato sabe dar ás suas satyras as mais altas condições de decoro , de pudor , e de grandeza , de que é susceptivel esta fórma de poesia.

As suas invectivas teem a magestade classica . Assumem proporções epicas , os sacrificios , as he catombes , em que supplicía as suas victimas . Inspiram - no porém , sem nunca o desamparar , senti mentos nobres , propositos generosos , amor arden te da justiça , da liberdade , do progresso humano e social.

É por isso que , percebendo as intenções puras do poeta , sem desconhecermos as exagerações a que aliás póde levar tal genero de poesia , o applaudimos por esta brilhantissima manifestação do seu talento , onde alcançou victoria não menos assignalada e decisiva do que nos canticos da poesia lyrica , nos carmes da elegia , e principalmente nas ficções graciosas da Paquita , em que com felicidade summa seguiu entre nós as pisadas do Ariosto e de Casti , affirmando sempre a sua individualidade.

D'essa Paquita , de quem o snr. Alexandre Heculano escreveu "que a amou desde o berço porque representa na litteratura actual uma res tauração , e nega um progresso: restauração santa e progresso mentido", esperamos com avidez que não se demore a contar-nos o seguimento das aventuras que correu com o seu Pepe.

Está a pular-nos na memoria a lembrança d'aquella ermida, em que ao repontar do sol nos outeiros, Angelita se encontra com Pepe, enleados de se verem aquella hora da manhã. E o pasmo de Pepe quando em sitiaes ouve que Angelita pretende casal-o ? E a ingleza que n'esse momento se aproxima dos dous ? E as questões acaloradas entre o marido de Herminia e o da consuleza ? E o desafio dos dous apaziguado pelo mofino do Pepe, cujos amores esvoaçam sobre as tres adoraveis creaturas que o cercam, como borboletas sobre flôres ? E aquella walsa do baile, cuja descripção tem a vi vacidade calorosa da do Amaury ? E a viagem da despeitada Herminia para Athenas ? a febre mortal de Pepe quando se vê abandonado por ella ? a solicitude de Angelita correndo de noite a visitar o joven andaluz moribundo ? e o encontro d'ella com a formosa Adelina, a ingleza dos olhos azues, junto do leito do enfermo ?

Quando nos ha-de elle desenvencilhar toda esta meada intrincadissima ?

Ricardo Augusto Pereira Guimarães (1830-1889), Visconde de Benalcanfôr.

Os lances enredam-se alli n'um tal labyrintho vertiginoso de aventuras, de malicias, d'enganos, de paixões, que só poderemos alcançar o fio de Ariadna na continuação do poema, de que o author (esperamol-o ) não abrirá mão, sem primeiro satisfazer a nossa curiosidade, rematando ao mesmo tempo o monumento da sua gloria de poeta, monumento que ha-de avultar para o futuro entre os mais bellos e originaes da nossa poosia contemporanea. (1)


(1) Ricardo Augusto Pereira Guimarães, Phantasias e escriptores contemporaneos, 1874

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