Mostrar mensagens com a etiqueta Gentes. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Gentes. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Anjinhos da Costa

Perguntei, porque é que eles só tinham cabeça?

Pedestal da imagem da Nossa Senhora do Rosário colocada em nicho no Largo da Coroa.
Mar da Costa/Mar de Caparica


A minha mãe em tom de fim de conversa, para obviar a minha insistência, respondeu: — São anjinhos, e os anjinhos não têm corpo! — Então se não têm corpo, como é que têm cabeça? Mas a conversa ficou por ali, não fossem aqueles anjos decapitados, de olhar melado e triste, aparecer-me à noite durante o sono animados com expressões mais aterradoras, querendo vingar-se.

Com o passar do tempo apercebi-me que os anjinhos são mais de tropelias que malvados. Na única fotografia que consegui apenas eles ficaram focados. A Nossa Senhora do Rosário aparece por detrás do reflexo da vista que se lhe encontra devante.

Nossa Senhora do Rosário em nicho no Largo da Coroa.
Mar da Costa/Mar de Caparica

A Coroa do Largo, essa, fizeram-na desaparecer há muito...

Costa da Caparica, casa da coroa.
almaDalmada

Raul Higgs refere no livro, A nossa Costa, Nossa Senhora Conceição do Rosário padroeira da freguesia da Costa da Caparica, mas a imagem do largo da Coroa não lhe corresponde. A Senhora da Conceição não é representada o menino ao colo.

O padre Baltasar pregando à multidão na praia da Costa da Caparica, 1937.
Arquivo Nacional Torre do Tombo

Tanto na Costa como no Monte, a evocação da Senhora do Rosário foi progressivamente sendo ocupada pela da Senhora da Conceição, creio que no caso da Costa mais acentuadamente após a abertura da maternidade na Casa dos Pescadores, sendo que no Monte a transição foi ainda mais precoce (v. O inimigo). Creio que os anjinhos estiveram envolvidos.


oooOooo

Sobre a devoção da Senhora do Rosário da Costa há duas versões. António Correia regista que em 1863, na segunda quinzena de Setembro, os pescadores da companha do mestre Reguinga, depois de uma virada, foram salvos pelos pescadores da companha do mestre Vitorino José da Silva, depois de invocarem a dita Sra., passando estes mestres a fazer uma festa grande om dinheiro angariado na Ribeira Nova e nas lotas da praia, continuada pelos seus sucessores (cf. Praia do Sol, 1 de março de1955).

Já Manuel Lourenço Soares regista que o naufrágio do mestre Manuel Reguinga foi em 1 de Julho de 1824, passando as festas a realizarem-se em Setembro até 1929 e depois retomadas por mais alguns anos depois de 1937 (cf. Jornal de Almada, 10 de setembro de 1993).

Certo é que já em 1888 eram celebradas (cf. AHPL, SR 13.05: E144, rnçt 1888, 2 de novembro de 1888).

A origem desta devoção poderá estar relacionada Com a presença dos Missionários Dorninicanos Inglesinhos do Pe. Higgs (Hughes) na Costa, onde dirigiam o Colégio do Menino Jesus da Praia, também conhecido pelo Conventinho, fundado pelo mesmo padre em1870 (cf. Vieira Júnior, Villa e termo de Almada..., l897, p. 108). (1)


(1) Rui Manuel Mesquita Mendes, Fenómenos de Religiosidade Popular na Caparica dos Séculos XVIII e XIX, 2013

Artigos relacionados:
A procissão
O inimigo

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Leões na Costa

A nossa Costa de Caparica até parece a Costa... d'África! Está infestada de "leões"! Mas o que nos salva é que estas "feras" só são feras nos estádios desportivos e com uma bola nos pés. A nossa praia está fornecendo forças a uma grande quantidade de jogadores de futebol que a escolhem certos de encontrar o que tanto necessitam para retemperar o organismo de pau perado por urna época desportiva fatigante.

"Os Leões" na praia da Costa, Gonçalves, Travassos, Passos e Juca do Sporting Clube de Portugal. Ilustração de Natalino Melquíades.
Jornal Praia do Sol, 1 de agosto de 1956

Entre tantos destacamos hoje os jogadores leoninos que estão passando as suas férias na Costa. Passos, Gonçalves, Juca, e Travassos, internacionais conhecidos que trocaram Alvalade pelo areal da Praia da Costa que, não desfazendo, é também internacional... e muitíssimo conhecida!

Costa da Caparica, jogadores de Futebol Travassos e Juca do Sporting Clube de Portugal.
Delcampe Bosspostcard


Na próxima época, se o Sporting ganhar o campeonato, não será para admirar. Os jogadores estiveram na Costa de Caparica.

Onilatan (1)


(1) Jornal Praia do Sol, 1 de agosto de 1956

domingo, 9 de outubro de 2022

Árpád Szenes: Maria Helena na praia

Retratista virtuoso, Árpád capta sobretudo a essência dos traços de Maria Helena. Os primeiros retratos datam dos anos 30, início da vida a dois e, sem se perder em detalhes,

Caparica I (colecção Jorge de Brito), Arpad Szenes, sem data.
Vieira da Silva - Arpad Szenes nas colecções portuguesas, Casa de Serralves, Porto, 1989

Árpád realça, de forma inequívoca, os contornos que definem a pintora.

Caparica, Arpad Szenes, 1934.
Museu Fundação Árpád Szenes - Vieira da Silva


Não é óbvia nestes retratos a cegueira da paixão: Maria Helena não é perpetuada como uma beldade, chega a ser, em muitos casos, quase caricaturada e, no entanto, há uma dedicação quase obsessiva na quantidade de esquissos realizada. (1)

Caparica, Arpad Szenes, 1934.
Museu Fundação Árpád Szenes - Vieira da Silva

Árpád Szenes e Maria Helena encontram-se pela primeira vez na academia parisiense Grande Chaumière, em 1928. Casam em 1930, sem considerarem outra hipótese senão a de uma vida a dois, para sempre. Uma espécie de conto de fadas modernista, traçado a lápis, caneta ou pincel.

Caparica, Arpad Szenes, 1934.
Museu Fundação Árpád Szenes - Vieira da Silva

Companheiros de vida e de ofício, enredados numa pesquisa paralela e solitária, inspiram-se, partilham e discutem, numa sinergia contínua.

Baigneuse à Caparica, Arpad Szenes, 1934.
Museu Fundação Árpád Szenes - Vieira da Silva


Vieira foi o modelo dileto, invocado nos primeiros anos pela paixão e pelo desejo e, mais tarde, pelo conforto de um amor sempre disponível.

Caparica V (colecção particular), Arpad Szenes, 1934 1936.
Museu Arpad Szenes - Vieira da Silva: elementos para um projecto de uma visita virtual

Quieta sem nunca se tornar ausente, Vieira da Silva é desenhada e pintada pelo marido inúmeras vezes, numa variedade de registos que oscilam entre o repouso e a atividade artística (...) (2)

Caparica, Arpad Szenes, 1935-1936.
Museu Fundação Árpád Szenes - Vieira da Silva


(1) Sandra Santos, "Le couple" de Árpád Szenes e de Maria Helena Vieira da Silva
(1) Sandra Santos, idem

Informação relacionada:
Fundação Árpád Szenes - Vieira da Silva
Árpád Szenes (Fundação Calouste Gulbenkian)
Jeanne Bucher Jaeger: Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992)
Jeanne Bucher Jaeger: Árpád Szenes (1897-1985)
Museu Arpad Szenes - Vieira da Silva: elementos para um projecto de uma visita virtual
Véronique Jaeger: The Arcana of the Heart
Vieira da Silva - Arpad Szenes nas colecções portuguesas, Casa de Serralves, Porto, 1989,

Media:
Visita guiada: Casa-atelier de Vieira da Silva e de Arpad Szenes

Ma femme chamada Bicho (filme documental de 1978 de José Alvaro de Morais sobre o casal de pintores Maria Helena Vieira da Silva e Árpád Szenes)


sábado, 17 de setembro de 2022

Retratos som Bá e Manuel Mendes, Ofélia e Bernardo Marques

Bernardo Marques (1898-1962)

Bernardo Marques inicia os seus estudos no liceu de Faro, matriculando-se, em 1918, na Faculdade de Letras de Lisboa para cursar Filologia Românica. Aí conhece a sua futura mulher, também artista, Ofélia Marques. A vinda para Lisboa possibilitou-lhe o contacto com a vida boémia da capital, realizando nestes anos estudantis os seus primeiros desenhos. Expõe pela primeira vez em 1920, no III Salão de Humoristas. Em 1921, abandona o curso de Letras, optando em definitivo pela carreira artística. Dedica-se com especial afinco ao desenho, vertente que nunca abandonaria ao longo dos seus 40 anos de carreira, numa opção em parte motivada pela alergia aos materiais da pintura a óleo.

Pedro, romance de Manuel Mendes publicado em 1954 com ilustrações de Bernardo Marques e dedicado à memória de Bento de Jesus Caraça.
(exemplar anotado pelo autor para uma segunda edição)

Casa Comum

Em 1924, casa-se com Ofélia e passam a viver no mesmo prédio no Bairro Alto onde António Ferro e Fernanda de Castro (v. apontamento relacionado: Ao fim da memória) habitavam à época. Esta vizinhança torna-se o ponto de partida para uma longa amizade entre Marques e Ferro. (1)

Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930.
A partir da esquerda: Berta Mendes, Fernando Lopes Graça
(1906-1994), Ofélia Marques (1902-1952), Bernardo Marques (1898-1962), Manuel Mendes (1906-1969)
, Bento de Jesus Caraça, e Cândida Caraça (e os cães Anica e Maigret).
Casa Comum

No caso que estamos a analisar, sendo verdade que Bernardo pertence às especificidades da geração de 20, e à de 30, e à de 40 pelo lado da estética oficial, é também verdade - e mais produtiva - que ele está nelas com uma distância, irónica e bastante atormentada, e que essa distância lhe permitiu autonomizar-se nos anos 50, quando o modernismo se encerrava e eclodiam novas problemáticas plásticas.

Retrato imaginado enquanto criança,
Bernardo Marques.
Ofélia Marques (1902-1952), CAM, Gulbenkian

E, se esta evolução pessoal não lhe deu lugar na cena artística contemporânea, tal aconteceu também por que a época era de inevitáveis e excessivos con­frontos e Bernardo iniciara um percurso de imensa solidão de que a morte voluntária foi o desfecho em 1962. (2)

Ofélia Marques (1902-1952)

(v. artigo dedicado em Eventualmente Lisboa e o Tejo)


(1) Bernardo Marques (Centro de Arte Moderna Gulbenkian)
(2) Bernardo Marques, Homenagens cruzadas, MNAC

Artigos relacionados:
Sarah Affonso, postais da Costa a Manuel Mendes (1930-1931)
Retratos com Bá e Manuel Mendes
Retratos com Guida Lami e Bá e Manuel Mendes, Cândida e Bento Caraça

RTP Arquivos:
Bernardo Marques
Exposição sobre Bernardo Marques (Casa de Serralves))

Mais informação:
Bernardo Marques, pesquisa em Cabral Moncada leilões
Bernardo Marques em MutualArt
Manuel Mendes, Bernardo Marques e o drama da sua obra, revista Eva nº1090, novembro de 1962
Marina Bairrão Ruivo, Bernardo Marques, Os traços de um sentimental, Revista de Cultura, Instituto Cultural de Macau, ano V, 5° vol.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Retratos com Guida Lami e Bá e Manuel Mendes, Cândida e Bento Caraça

Bento de Jesus Caraça (1901-1948)

Partiu para Lisboa com 13 anos para estudar no muito afamado Liceu Pedro Nunes, onde concluiu com distinção o ensino secundário em 1918. Neste mesmo ano matriculou-se no Instituto Superior de Comércio, hoje Instituto Superior de Economia e Gestão, e um ano depois é nomeado 2º assistente pelo professor Mira Fernandes. A sua carreira académica tornava-se notória. Em 1924, é assistente e em 1927 professor extraordinário.

Costa da Caparica, 1934.
A partir da esquerda: Adriana Lami Costa, Guida Lami, Bento de Jesus Caraça e Maria Alice Lami.
Casa Comum


Chegou a professor catedrático em 1929. A seu cargo ficou a cadeira de “Matemáticas Superiores” – Álgebra Superior, Princípios da Análise Infinitesimal e Geometria Analítica. A seu cargo ficou a cadeira de “Matemáticas Superiores” – Álgebra Superior, Princípios da Análise Infinitesimal e Geometria Analítica...

A sua actividade não se restringiu à prática lectiva. Foi membro do Núcleo de Matemática, Física e Química, criou o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas à Economia, fundou a Gazeta da Matemática e foi presidente da Direcção da Sociedade Portuguesa de Matemática...

Costa da Caparica (detalhe), Bento de Jesus Caraça,  1935.
Casa Comum

Finalmente, em 1941 publicou a sua obra mais emblemática “Os Conceitos Fundamentais da Matemática”, cuja versão integral foi publicada apenas em 1951.

O seu mérito foi reconhecido internacionalmente, uma vez que foi o delegado representante da Sociedade Portuguesa de Matemática nos Congressos da Associação Luso-Espanhola para o Progresso das Ciências em 1942, 1944 e 1946.

A Cultura foi uma das outras grandes paixões de Bento de Jesus Caraça, a cultura que deveria ser adquirida por todos para que se conquistasse a liberdade. Na Universidade Popular, de que também fez parte profere a famosíssima conferência “A Cultura Integral do Indivíduo – Problema Central do Nosso tempo”. Com o mesmo objectivo em mente colaborou nas revistas Seara Nova, Técnica, Vértice (v. Revistas de Ideias e Cultura) e em outros tantos jornais como O Diabo, Liberdade e o Jornal Globo, fundado por si, mas infelizmente eliminado pela censura.

Olhando para a cultura como um “despertar das almas”, fundou a Biblioteca Cosmos (v. Obras editadas na Biblioteca Cosmos), que editou centenas de livros de divulgação científica e trabalhou na reanimação da Universidade Popular, que entretanto se tinha visto enfraquecida pela acção da sempre atenta censura, tornando-se mesmo Presidente do Conselho Administrativo.

Defensor da liberdade que definitivamente não existia, Bento de Jesus Caraça foi também um interessado pela “questão feminina” e sempre incentivou a intervenção das mulheres na sociedade. Quando em 1943, onze raparigas se matricularam no ISCEF e uma vez que o sistema de coeducação era proibido pelo regime, apoiou a criação de um núcleo cultural por elas formado... (1)

Uma ave que os ares esclarece
Sobre nossas cabeças aparece.
Costa da Caparica, Guida Lami, legenda de Bento de Jesus Caraça, 1933.
Casa Comum

A ligação de Bento Caraça ao PCP, não terá sido uniforme através dos anos nem acrítica. A reacção ironicamente amarga ao pacto de não agressão germânico soviético, celebrado entre Hitler e Estaline, surge numa carta a Guida Lamy, uma das suas mais queridas amigas, discípula e colaboradora, nos estudos matemáticos e, nomeadamente no apoio aos prisioneiros dos campos. No início dos anos 40, encontra-se de tal modo desiludido, nomeadamente dada a situação no PCP, que pensa seriamente emigrar como se evidencia na correspondência com Rodrigues Miguéis.

O trabalho na Cosmos e a emergência de novas perspectivas de unidade na luta contra o regime, reforçada com a evoluir da guerra mundial, reanimam-lhe a esperança e retomará a ligação ao PCP. Surge como um dos mais destacados fundadores do MUNAF, Movimento de Unidade Nacional Antifascista, em 1942, e do MUD, Movimento de Unidade Democrática, em 1945, de cuja comissão central será vice-presidente.

A adesão popular ao MUD excede todas as expectativas: até 24 de outubro de 1945, recolhem-se 50.000 assinaturas de apoio, só na cidade de Lisboa. Perante tal movimentação, o governo salazarista suspende toda a actividade do MUD, acusado de constituir um “elemento de subversão social”, um “movimento passional” que pretende derrubar o governo e restaurar o modelo político da primeira República.

Bento Caraça é atingido por um processo disciplinar a 10 de setembro de 1946, instaurado pelo Ministério da Educação Nacional sob a acusação de antipatriotismo do manifesto “O MUD perante a admissão de Portugal na ONU”, subscrito por muitos democratas e do qual Bento Caraça, Vice-Presidente da Comissão Central do MUD, fora co-autor com Mário Azevedo Gomes, Presidente da mesma Comissão.

Em outubro de 1946, Bento Caraça é demitido compulsivamente da função de Professor Catedrático, afastado de uma actividade docente e pedagógica brilhante.

Por este envolvimento, no qual produz importantes documentos de análise política, alguns ainda de espantosa actualidade, sofrerá diversos interrogatórios e detenções ainda que breves dado a agravamento progressivo do seu estado de saúde. Em 1946, a 3 de abril, é sujeito a interrogatório na Pide; a 13 de Outubro, interroga-o e coloca-o incomunicável durante cinco dias numa esquadra; a 13 de Dezembro, é preso de novo, desta vez no Aljube donde sai sob fiança.

Em 1948, sofre prisão domiciliária em virtude “de correr grave risco de saúde e de vida se for obrigado a sair de casa e submetido a regime prisional“ como atesta em atestado médico, o professor Francisco Pulido Valente, estado comprovado pelo médico da PIDE, Mira da Silva que se desloca a sua casa; a 23 de Fevereiro é interrogado pela PIDE no seu domicílio; a 19 de Março, a PIDE convoca-o para a a sua sede e notifica-lhe a ilegalização do MUD.

A Leitura, 1955, Abel Manta (1888-1982)
(grupo do consultório do professor Francisco Pulido Valente, representados (cf. Estrolabio): da esquerda para direita, sentados, Aquilino Ribeiro, Ramada Curto, Carlos Olavo, Pulido Valente, Alberto Caidera, em pé, Ribeiro Santos, Mário Alenquer, Lopes Graça, Manuel Mendes, Sebastião Costa, Câmara Reis e Abel Manta).
Museu de Lisboa

Bento Caraça é já então casado com a segunda mulher, Cândida Gaspar, a aluna que o levou a abandonar a longa viuvez do breve casamento com Maria Octávia, que durara menos de um ano. Com Cândida, que lhe devolve a paixão e a ternura, será também breve a vida. Ele sabe-o. A doença cardíaca, já de longa data, agravava-se. Por isso o olhar de profunda ternura com que segue os primeiros passos vacilantes de João, o seu filho, é um olhar pleno de nostalgia. Nostalgia do futuro. E nas últimas fotografias antes da morte, a 25 de julho de 1948, Bento Caraça devolve-nos o sorriso magoado dos que sabem que vão morrer.

Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930.
A partir de cima da esquerda:
Bento de Jesus Caraça, Sílvia Manta, Manuel Mendes, Cândida Caraça e Berta Mendes.
Casa Comum

O processo disciplinar, movido pelo governo de Salazar, que o afasta do ensino universitário, traz dificuldades económicas à família. Cândida, ela própria também perseguida, enfrenta, corajosamente, a situação. Licenciada em economia, lecciona, corre entre as aulas e a casa onde vive com Bento, o filho e o sobrinho, João, adolescente vindo do Alentejo por iniciativa do tio. Bento Caraça passa a dar lições em sua casa, como meio de subsistência.

Várias as provas de solidariedade prestadas por amigos conhecidos e desconhecidos. Em Novembro de 1946, um grupo de democratas de Lourenço Marques, perante a demissão de Caraça, cotiza-se e presta-se a enviar-lhe mensalmente a importância do seu salário como professor universitário, sublinhando que não é uma ajuda pessoal mas antes o símbolo da “sua solidariedade para com os companheiros da Metrópole equiparando-a ao ganha-pão que V. Exª conscientemente arriscara e perdera ou proporcionando-lhe a oportunidade de empregar o dinheiro na luta antifascista a bem de todos”.

A 24 de janeiro de 1947, Caraça responde grato pelo apoio moral e material, sendo que opta por “empregar o dinheiro na luta antifascista”. Em outubro de 1947, agradece a José Maria Coelho “a extrema gentileza que quis ter para comigo, da principesca oferta de um frigorífico”. Os amigos procuram mimá-lo. Ildefonso Nóvoa, que fora seu aluno no Instituto, carrega uma grafonola para que Bento ouça a música clássica que o levava, apaixonadamente, aos concertos.

Em sua casa reúnem-se democratas, debate-se a vivência política, planeiam-se estratégias da oposição. Estuda ainda. Escreve. Incessantemente. Adoece mais e mais. Amigos de longa data, vêm de longe, para o que sabem ser eles e ele – a despedida.

Bento de Jesus Caraça,
r
etrato imaginado enquanto criança

Ofélia Marques (1902-1952), CAM, Gulbenkian


Porque este homem de tão intenso comprometimento político cultivou sempre o encontro com os outros. É, uma relação umbilical entre cultura e política que orienta otrajecto pessoal de Bento de Jesus Caraça e do seu grupo de amigos, onde se encontram os mais notáveis intelectuais e lutadores do seu tempo. Entre eles, o médico e professor Luís Ernâni Dias Amado, companheiro desde o liceu.

Também colega de liceu, amigo profundo, Carlos Botelho que lhe (nos) devolverá os olhares mais belos da pintura portuguesa sobre a cidade e o rio, esse corpo amante de Lisboa, Rodrigues Miguéis, Abel Salazar, Câmara Reys, Ferreira de Macedo. E ainda António Lobo Vilela, companheiro desde os bancos da escola primária.

Surgem depois Manuel Mendes, um dos seus mais íntimos confidentes e Berta Mendes que serão os padrinhos de João Gaspar Caraça, filho do segundo casamento.

Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930.
A partir da esquerda: Berta Mendes, Fernando Lopes Graça
(1906-1994), Ofélia Marques (1902-1952), Bernardo Marques (1898-1962), Manuel Mendes (1906-1969)
, Bento de Jesus Caraça, e Cândida Caraça (e os cães Anica e Maigret).
Casa Comum

Artistas como Avelino Cunhal, Huertas Lobo que lhe traça o perfil esvanescente, Abel Manta que esboçara o seu retrato póstumo, Mário Dionísio, Francisco Keil do Amaral, Maria Keil, Lopes Graça, Alice Manta, João Abel Manta, que lhe desenhará o perfil, Guida Lamy fazem parte do seu grupo de amigos. (2)


(1) Associação Bento de Jesus Caraça
(2) Bento de Jesus Caraça: Cultura e emancipação, um problema ainda do nosso tempo

Artigos relacionados:
Sarah Affonso, postais da Costa a Manuel Mendes (1930-1931)
Retratos com Bá e Manuel Mendes

Mais informação:
Escola Profissional Bento de Jesus Caraça (Porto)
Manuel Mendes (Fundação Mário Soares e Maria Barroso/Casa Comum)

Século XX português: Os Caminhos da Democracia (Fundação Mário Soares e Maria Barroso)
Obras editadas na Biblioteca Cosmos
Bento Jesus Caraça - Testemunho de Alvaro Cunhal (PCP)
Bento de Jesus Caraça: Cultura e emancipação, um problema ainda do nosso tempo
Revistas de Ideias e Cultura

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Retratos com Bá e Manuel Mendes

Manuel Mendes (1906-1969)

Escritor, jornalista, crítico de arte e tradutor, Manuel Mendes nasceu em Lisboa, em 1906, e faleceu na mesma cidade, em 1969. Cultivou também a escultura, sendo que a «sua escultura vai para além do amadorismo […]. Os bustos e as cabeças de Manuel Mendes acusam, na verdade, uma grande serenidade e severidade que os dignificam.» (Margarida Marques Matias). Colaborador da Seara Nova, conviveu desde cedo com Raúl Proença, Câmara Reis e António Sérgio e Raul Brandão, «seu mestre e paradigma literário» (Mário Soares), de quem foi um divulgador empenhado.

Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930.
A partir da esquerda: Berta Mendes, Fernando Lopes Graça
(1906-1994), Ofélia Marques (1902-1952), Bernardo Marques (1898-1962), Manuel Mendes (1906-1969)
, Bento de Jesus Caraça, e Cândida Caraça (e os cães Anica e Maigret).
Casa Comum

Como aluno da Faculdade de Letras participou na greve académica de 1931, tendo, a partir desta data, tomado parte em, praticamente, «todas as conspirações, revoluções e tentativas revolucionárias contra a ditadura […]. Libertou, de armas na mão, um companheiro preso que estava a ser torturado, num assalto bem sucedido à esquadra da polícia do rego.» (Mário Soares) Fez parte da efémera Frente Popular, do MUNAF, da Resistência Republicana e da Acção Socialista Portuguesa; foi um dos promotores do MUD, tendo sido membro da sua comissão central, e integrou as candidaturas de Norton de Matos e de Humberto Delgado à Presidência da República.

Costa da Caparica, década de 1930.
A partir da esquerda:
Fernando Pires, Berta Mendes, Manuel Mendes, Abílio Pires, Jaqueline Pires, Afonso Costa (filho), Irene Worm e seu filho João Worm.
Casa Comum

A sua obra mais conhecida, Pedro: romance de um vagabundo (1954), foi adaptada ao cinema, por Alfredo Tropa, com o título de Pedro Só (1972). Bairro (1945), Estradas (1952), Alvorada (1955), Segundo livro do Bairro (1958), Terceiro livro do Bairro (1959), Assombros (1962), Roteiro sentimental (1965-1967) e História natural (1968) são outros títulos de sua autoria. No campo das artes plásticas escreveu monografias sobre Machado de Castro (1942), Rodin (1945), Dordio Gomes (1958), Abel Manta (1958), Carlos Botelho (1959), Diogo de Macedo (1959), Jorge Barradas (1962) e Francisco Smith (1962), para além Considerações sobre as artes plásticas (1944), Lembranças de um amador de escultura (1955) e Raúl Brandão e Columbano (1959).

Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930.
A partir de cima da esquerda:
Bento de Jesus Caraça, Sílvia Manta, Manuel Mendes, Cândida Caraça e Berta Mendes.
Casa Comum

Debruçou-se ainda sobre as biografias de Antero de Quental (1942), Herculano, (1945), Oliveira Martins (1947) e Aquilino Ribeiro (1960). Deixou colaboração em vários jornais e revistas, como República, Seara Nova, Revista de Portugal e Vértice. (1)

Na Caparica, Pinhal, Abel Manta, 1942.
MNAC/Casa Comum

Historicamente lembrado pela militância política antifascista, o legado deste intelectual oposicionista, integrado na Seara Nova, alcançou notoriedade pública pela obra de jornalista, romancista, contista e ensaísta, e pela criação de grupos de resistência, cidadania e defesa de artistas.

Desenho em Caricaturas portuguesas dos anos de Salazar, João Abel Manta, ed. O Jornal, 1978.
Exposição "A Máquina de Imagens", João Abel Manta, Fundação D. Luís


A clandestinidade e as prisões políticas que resultaram desta articulação do combate político com a produção literária ofuscaram, porém, a importância do seu envolvimento inicial com a escultura e o desenho, mantidos de modo irregular, e do papel pioneiro como crítico e teórico da arte plástica moderna em Portugal... (2)

Retrato imaginado enquanto crianças de Manuel e Berta Mendes.
Ofélia Marques (1902-1952), CAM, Gulbenkian

... Casa Museu Manuel Mendes (nunca aberta ao público e hoje extinta), no Restelo. (3)


(1) Biblioteca Nacional de Portugal
(2) Centro de Arte Moderna Gulbenkian
(3) Moda & Moda, Museu do Chiado, A Sedução do retrato

Artigo relacionado:
Sarah Affonso, postais da Costa a Manuel Mendes (1930-1931)

RTP Arquivos:
Manuel Mendes: o Melhor de Todos Nós
... depoimento do político José Magalhães Godinho sobre o pensamento do escritor Manuel Mendes, lamentando este não ter vivido para assistir ao 25 de Abril; busto de Manuel Mendes do escultor Barata Feyo; fotografias de homens das Letras; retrato do escritor pintado por Dórdio Gomes; Casa Museu Manuel Mendes no Restelo...

Mais informação:
Casa Museu Manuel Mendes (Google search)
Colecção Manuel Mendes (MNAC)
Manuel Mendes (Fundação Mário Soares e Maria Barroso/Casa Comum)

Século XX português: Os Caminhos da Democracia (Fundação Mário Soares e Maria Barroso)
Obras editadas na Biblioteca Cosmos

domingo, 28 de agosto de 2022

Meditação de Silva-Nabokov na Praia de Santo António

E ainda uma "meditação de Silva-Nabokov na Praia de Santo António", escrita "en l'an presque quarantième de mon âge" (1959), que descreve, demolidor, o ambiente de praia de lolitas, senhoritas de familia e "quarentonas fenomenologistas": (1)

A praia é um pavor.
Mantém o desacor
Do entre nós e nós.
Sereio, ergo a voz
(serei-o só depois?)
E silvo, com os dois
Dedos na boca roxa
De frio, fraca e frouxa.
Só conquistei hoje duas —
que me chamaram "tio"
Nem se envergonhan nuas
(consideram-me tio)
Só se queixam do frio.

Daqui me carpo, pois,
Com chiças eloquentes.
Turistas aos montões
Soldadas nos pontões
A querer parar o mar
Como se fosse um rio
(Que desaforo — tio!)
Regagardam as banhistas
Mormente as quarentonas
Fenomelogistas.
Ricaças, indigentes,
A mesma sorte iguala:
Tremer no banho gélido;
Sair do hotel e do cubículo alugado
Pró elemento aguado
— ou aquoso — e frio
(Eu lhes darei o "tio"
Com as batatas fritas
As caço, as mais catitas).


Costa da Caparica, Russell Reeve, Valverde.
artnet


Á tarde, no pinhal
Há o parece-mal
Das senhoras janotas
Como o peixe em lotas
Decentes, decrescentes;
Que estas sim estão quentes
Por mês quatro semanas
Mas não despertam brio
(Avuncular, o tanas!)
Aceno um braço palio
E, palido, sorrio.
E fujo pró desvio
Mal pubescente, cálido
(Raios as partam, "tio")
Da meninada alheia.


Costa da Caparica, Bar Valverde na Mata, ed. Passaporte, 26, década de 1950.

Á noite, na boîte
Proibido a menores
— Cachorro e hot dog —
O corpo se chateia
Que o capiilé a afogue!
E que o vestido o ate
Ou não, monotoniza:
Já todas tão maiores!
Daí só vem certezas
Sem keeper nas balizas
Nem escopo no remate
Às abertas burguesas de dervirgados mares.
Blasé e Silva, rio
Num riso turvo e surdo
(Com catorze barquilhos abrirei novos trilhos)
E saio ao arrepio
Do noite-a-noite absurdo
Até raiar o mar
Até se ouvir o dia
Até nascer no meio
Do mar rachando o dia
O silvo do sereio
Que apita e alicia
.

Cá estão batatas fritas
Paro as meninas cruas!
Cá estão verdades nuas
Prás nimphets bonitas!
Eis Silva-Nabokav —
Vinde todas as nove
Chegai-vos cá, lolitas! (2)


(1) Luísa Costa Gomes, Da Costa, um flanar pelas praias e montes da Caparica... Dom Quixote, 2018.
(2) José Sesinando (José Palla e Carmo) cit. em Luísa Costa Gomes, Da Costa, um flanar pelas praias e montes da Caparica...

quinta-feira, 30 de junho de 2022

Pesca de Espinho

La costa portuguesa en este distrito de Aveiro, al Sur de Oporto, es de una triste monotonía. Una larga playa baja, de ñna arena, y cadenas de dunas coronadas á veces por los pinos, que llegan á mirarse en las aguas. Trechos hay, como este de Espinho, en que el mar avanza, ó, mejor, la costa se hunde. A este pueblecito se le está tragando el mar, y muy de prisa.

Praia de Espinho, Faustino António Martins, F. A. Martins, FAM Martins & Silva, MS, 1113 c. 1900.
Aveiro Cultura

El canal tiene aquí, por otra parte, algo de campesino ; parece como que se ruraliza. Sus lindes se confunden en muchas partes ; penetra en la tierra por lenguas de agua. Hacia Estarreja suelen verse velámenes de barcas cruzando un maizal, y en éste, al pie de los árboles, junto á los bueyes, remiendan y arreglan las redes de pesca las mujeres.

Espinho. Barco da pesca e costume, ed. Alberto Malva, década de 1900.
Aveiro Cultura

El campo y el mar verdes, como que se abrazan y mezclan bajo el cielo azul, ofreciéndonos la más fiel imagen de este Portugal campesino y marinero que con los leños de sus bosques aró los más remotos océanos. Y estas sus largas odiseas,


Espinho. Apparelhando o barco de pesca, ed. Violeta Primorosa (reimpressão n° 17), c. 1910.
Delcampe

Por mares d'antes nunca navegados

empezaron, sin duda, por las pesquerías. A los pescadores fué á quienes enseñaron á marear los genoveses, maestros en el arte de los rumbos.

Hay algo de dulce y de manso en este mar, que, aunque á menudo bravio, viene blandamente á besar la tierra y á mezclarse con ella, que no le opone erguidas rocas ni abruptos acantilados. Desembocan en él ríos mansos como el Vouga, y recueida uno el atrevidamente poético rasgo de Tomás Ribeiro cuando, en su lamentable D. Jayme, decía que el mar viene á ahogar su sed angustiosa en el sabroso néctar de los ríos portugueses.

O mar na terna lida porfiosa,
cansado de correr largos desvios,
vem aposar á sede angustiosa
no saboroso néctar de teus ríos.


En esta parte de la costa portuguesa, junten al labrador vive el pescador. Aquél siembra el lino y hace las cuerdas de las redes con que éste pesca, le provee de las maderas para sus barcas.

Espinho. Preparando o barco de pesca, ed. Violeta Primorosa (reimpressão n° 20), c. 1910.
Delcampe

Aquí, en las arenas de esta playa de Espinho, se ven descansar, de proa al mar, las barcas pescadoras. Recuérdanme lo que debieron ser las naves con que los aqueos arribaron á Troya, las naves homéricas. Son, de hecho, como ejemplares sobrevivientes de una especie ya en otras partes extinguida.

Espinho. Preparando barcos de pesca, ed. Violeta Primorosa, c. 1910.
Aveiro Cultura

Tienen, en efecto, algo de primitivo estas barcas sin quilla, fondo plano como el de las chalanas con su apuntada proa al modo de las góndolas, y en ella una cruz de remate. Viéndolas en tropa, cual extraña bandada de aves en reposo, diseñarse sobre el cielo, acuérdase uno de aquellos

esqueletos de galeras
que foram descobrir mundos é mares.


Hay algo de solemne en la suprema sencillez de esta visión para quien lo mira con ojos que recorrieron la historia trágicomarítima de este

Jardim da Europa á beira-mar plantado.

Luego son puestas las barcas en movimiento. Liénanlas con las redes, y, haciéndolas resbalar sobre rodillos, las empujan á las espumosas olas, playa abajo. Los tostados dorsos van apretando contra los costillares de las barcas. Dejan sujeto en la arena el cabo de una de las dos cuerdas de la red. Montan en cada barca unos treinta tripulantes, media docena para tender la red y demás menesteres, y diez ó doce á cada uno de los dos grandes remos.

Espinho. Barco de pesca, Ao Leão d'Ouro, ed. Joaquim Sequeira Lopes, c. 1910.
Aveiro Cultura

Pues dos tiene cada barca, como dos aletas, con un gran ensanchamiento central que hace de estrobo. Y allá van, bogando á alta mar, para arrancarle su sustento, brillando al sol sus bronceadas espaldas, cogidos del remo, como los galeotes, dándose cara media á media docena de hombres en cada uno de los dos remos. Aléjanse de uno á dos kilómetros — en invierno más, pues en verano la sardina se acerca á la costa — , y antes de char la red rezan todos piadosamente. En otro tiempo, los tripulantes de las diversas barcas se peleaban por el sitio en que habían de tender la red, y volvían algunos descalabrados de la refriega.

Espinho. Sahida para a pesca da sardinha, ed. Violeta Primorosa, c. 1910.
Delcampe

A las tres horais de haber salido, vuelven, trayendo el cabo de la otra cuerda. Y es un espectáculo emocionante, y á las veces solemne, ver á las barcas de levantada proa esperar, con el cuello erguido, olas favorables y embes- tir luego á la arena entre cascadas de espuma y gritería de los que las esperan. Y luego, á tirar de las dos cuerdas de la red para recogerla. Tiran desde la playa con parejas de bueyes.

Esto de sacar las redes con parejas de bueyes es lo que más carácter da á la pesca en Espinho, asemejándola á una labor agrícola y prestando asidero á la imaginación para cotejar con la labor de los campos en esta región en gue, como digo, el mar parece se ruraliza.

Espinho. A caminho da rede, ed. Emilio Biel & Ca. n° 134, c. 1900.
Delcampe

En otro tiempo sacaban las redes á brazo, y los que del campo bajaban á esta penosísi- ma labor, estaban exentos del servicio militar. Bien decía el que dijo : « Bendigamos al que primero domó el caballo ; pues, si no, la mitad del género humano estaría llevando á cuestas á la otra mitad. » (Y á pesar del caballo, algo así sucede.)

Durante cosa de dos horas tiran, pues, de cada una de las dos cuerdas de cada red unas diez parejas de bueyecitos rubios, de larga y abierta cornamenta, ocho tirando á la vez y dos de reveza. Y allá los veis caminar pausados por la fina arena que se les hunde bajo las hendidas pezuñas, mansos y sufridos, aguijados por estas mujeres descalzas con su ceñidor á medio vientre y su sombrerito de labradoras, un rodete.

Espinho. Regresso do local da pesca, Ao Leão d'Ouro, ed. Joaquim Sequeira Lopes, c. 1910.
Aveiro Cultura

Ese ceñidor, una faja que se ponen sobre el vientre, bajo la cintura, es característico de las mujeres del Aveiro ; sírveles acaso de apoyo en sus esfuerzos. Y el sombrero responde á la costumbre de llevar las cargas sobre la cabeza.

Espinho. Praia da pesca, Ao Leão d'Ouro, ed. Joaquim Sequeira Lopes, c. 1910.
Aveiro Cultura

Y allá van los bueyes, arando el mar — y así le llaman, lavrar o mar — , uncidos con estos curiosos yugos del Norte y Centro de Portugal. No tiran con la testuz como en Castilla, sino con el cuello y la cruz de las espaldas, sobre las cuales se inclina el yugo, una pieza cuadrangular, de madera de alcornoque, llena de dibujos y tallados decorativos, en cuyo centro se destacan á menudo las armas de Portugal pesando sobre los bueyes.

Tales yugos son una de las cosas más curiosas que hay que ver por aquí. Varían sus motivos ornamentales, de trazado geométrico casi siempre, y en los que el señor Joaquín de Vasconcellos quiere ver un reflejo de la decoración romántica de las portadas de los templos. En Oporto vi el otro día que ha empezado á formarse una colección de estos yugos, lo cual es muy plausible, pero tiene á la larga un peligro, y es que, empezando á coleccionarse yugos en un museo, se acabe por construir nuevos modelos de ellos con destino á el ¿ No se hace acaso, con ocasión de un centenario, sellos para los coleccionistas ? En cuanto el hombre da en coleccionar algo, ya este algo tiende á hacerse artificial y destinado á colecciones, sin que falte quien suponga si habrá un oculto dios marino entretenido en fraguar nuevos tipos de diatomeas para los que las coleccionan, ó un dios Silvano fabricando nuevos insectos para los entomólogos. ¿ No se hacen acaso tipos de perros para los "aperrados"?

Y, entre tanto, los bueyecitos rubios, cabizbajos al peso de sus ornamentados yugos, soportando las armas de Portugal, siguen playa arriba, trillando la arena y tirando de las cuerdas de la red.

Espinho. Tiragem da rede e costumes, ed. Casa Primorosa c. 1910.
Delcampe

Cuando ésta aparece ya á la vista, aflorando las cercanas olas sus flotadores, empieza un vocerío rítmico y se van reuniendo hombres y mujeres. El vocerío éste tiene, como el que levantan ai botar al mar las barcas, algo de rítmico, en efecto. Oyéndolo, y oyendo sobre todo el canto con que acompañan el remo, he llegado á sospechar si el "fado", ese melancólico y quejumbroso canto portugués, que parece pedido de limosna al Todopoderoso, nació al compás del golpe del remo sobre las olas del "saudoso" mar.

Por fin aparece la red sobre la arena, arremolínanse en su torno, y al abrirla chispea al sol la plateada masa, palpitante más que de vida, de agonía.

Y es un espectáculo trágico el de aquel montón de vidas expirantes que se agitan al sol, junto á las olas de que salieron, al rumor del fado eterno del mar. Traen sustento de vida á los hombres, y una vez más se nos aparece como un vasto cementerio ese océano donde acaso se inició la vida y en cuyo seno palpita pode- rosa. ¿ Pero es que estas arenas mismas, lecho 'de muerte, no son en su mayor parte, acaso, restos de caparazones de seres en un tiempo vivos ?

La arena misma, ¿ no es un vasto cementerio ? ¿ No lo es el mar ?

Y como hombre que lee, lleva, quieras que no, un pedante dentro, recordaba yo las teorías de Quintón sobre la cuna de la vida y cómo del mar salimos. ¿ Volveremos al mar ?

Métense hombres en la masa palpitante, hundiendo en ella sus bronceados pies, y á paladas, separando acá y allá algún pescado, van llenando los rapicheles ó redaños, especie de cestos de red en que dos hombres para cada uno llevan la cosecha á tenderla en la arena, donde se hace el cernimiento por mujeres.

No puede ser mayor la analogía con una labor agrícola. Los bueyes sacaron del mar la mies del pescado, apareció en la arena como en la era la parva, y ahora viene el aventarla.

Espinho. Sacco de rede com sardinhaed. Violeta Primorosa (reimpressão n° 10), c. 1910.
Delcampe

Sentadas en la arena van las mujeres haciendo el apartado. Lo más de lo que sacan es espadilla mezclada de cangrejos, y no vale más que para abono de las tierras ; de veinticinco á treinta mil reis la redada, es decir, de 130 á 160 pesetas.

Si es sardina, llega á valer hasta 300.000 reis, esto es, unas 1.600 pesetas.

Y como cosa extraordinaria, de esas que se recuerdan diciéndose, «en tal día de tal año... » se habla de alguna redada que valió un contó, mil duros.

Las gentes que del interior de Portugal y de España vienen á baños, escudriñan maravilladas la cosecha del mar, admirando las extrañas cataduras de tantos peces que nunca vieron, por lo menos vivos. Son de oir los comentarios de los de tierra adentro.

La multiformidad de la vida es un espectáculo de interés inagotable, y un placer de los más puros ver al natural, y en vivo, lo que acaso se vio en estampa, sin acabar de dar crédito á su existencia.

Hacen la selección de la pesca, y luego se subasta allí mismo, en la playa, y en el momento de la subasta aparece el hombre fatídico de uniforme, el odiado ministro del Estado, el implacable representante del Fisco. Lo que cuesta ser nación, y nación pobre !

Espinho. Costumes portugueses. Venda de sardinha, ed. Violeta Primorosa, c. 1910.
Aveiro Cultura


En una charla que tuve con uno de los pescadores, las dos palabras que más se le venían á los labios eran las de contribución y la de hambre. Por dondequiera les persigue el Fisco, forma la más concreta que para ellos toma el Estado.

Parte de la pesca va á la fábrica de conservas, y allí se les ve descabezando y destripando sardinas, cuyos sanguinolentos despojos quedan en la arena para las gaviotas, parte va á la venta al detalle y una parte mayor en carretas celtas para abono de los campos. Los cangrejos no tienen otro destino. Y aquellos mismos bueyecitos rubios, de larga y abierta cornamenta, que tiraron de la red, llevan á los campos, en unos carritos del más antiguo tipo, en unos carritos célticos, de ruedas macizas, haciendo una sola pieza con el eje, y con dos aberturas para aliviarlas del peso, el abono sacado al mar.

Así vuelve la muerte á dar vida, y así devuelve el mar á la tierra algo de lo mucho, de lo muchísimo que de ella los ríos llevan á su seno. Y luego veis en el campo, junto á un maizal, ó junto á un linar de donde salen las redes, un montón de cangrejos ó de espadillas, pudriéndose al sol para enriquecer la tierra. Días pasados estaba yo en la playa viendo sacar las redes á la hora en que iba el sol á acostarse en sábanas de niebla sobre las aguas. Me aparté un poco del sitio donde vaciaban la red, para mejor gozar de la puesta del sol. Una puesta de una solemne majestad religiosa. Al ir á acostarse entre las leves brumas del ocaso, iba cambiando de forma el globo de fuego, como bajo el toque 6.c los dedos de algún invisible alfarero.

Era, en efecto, como cuando la masa de arcilla va transformándose dentro de un tipo general de vasija, al toque del alfarero. Luego empezó á hundirse en las aguas, y cuando parecía flotar sobre éstas un pequeño lago de oro encendido, reco- rríanlo de extremo á extremo vagas sombras. Cruzaban el cielo, sobre las olas, algunets gaviotas avizorando los despojos de la cosecha, y en la arena tendidas las parejas de bueyes, mientras los hombres subastaban la pesca, rumiando aquéllos, afanándose éstos, veían indiferentes, sin mirar, la puesta del sol en el seno del Océano. En sus grandes ojos mansos, ojos homéricos, se ponía también el sol en un mar tenebroso.

Espinho. Arrasto das redes de pesca, ed. Reis (Aurélio Paz dos?) & Dias, c. 1910
Delcampe

¡ Hermosa evocación ! El sol muriendo en las aguas eternas y los peces en la arena, los hombres mercando su cosecha marina, el mar can- tando su perdurable fado, los bueyes rumiando lentamente bajo aus ornamentados yugos, y, allá á lo lejos, las oscuras copas de los pinos empezando á diluirse en el cielo de la extrema tarde. Y junto á los pinos, en la costa, unos cuantos molinos de viento, sobrevivientes tam- bién de una especie industrial que empieza á ser fósil, moviendo lenta y tristemente sus cuatro brazos de lienzo.

Esta contemplación de la puesta del sol marino brisado por la canción oceánica, es una de las más puras refrigeraciones del espíritu ; pero, al detenerme así á mirarle con interés, temo que saque de entre las olas un brazo de luz y, extendiéndomelo, exclame quejumbroso: dez reísinhos, senhore!

Espinho. Pequenos vendedores de sardinha, ed. Grandes Armazens Herminios.
Delcampe

No he presenciado, gracias á Dios, tormenta alguna que haya cogido á los pescadores en el mar, pero me dicen que es imponente espectáculo. Las mujeres chillan y lloran — aquí el canto es lloro y el lloro chillido — , acuden á la ermita de Nuestra Señora de la Ayuda y allí, de rodillas ante el templo cerrado, mezclan ruegos con imprecaciones.

¡ Cuán diferente el espectáculo de la pesca aquí y en la costa de mi tierra, en la brava costa cantábrica ! La botadura al mar de estas barcas seculares y la salida de las traineras de Bermeo, v. gr., son dos cosas que apenas se parecen. Como no se parece aquella costa de ásperas rocas á esta de blanda arena.

Espinho. A caminho da pesca, ed. Violeta Primorosa.
Delcampe

Del siglo XII al XVI progresó la industria pesquera en Portugal. De las colmenas de pescadores salieron los navegantes, y las grandes navegaciones acabaron con las pesquerías. A mediados del siglo XIV, las ciudades de Lisboa y Oporto celebraban con Eduardo III de Inglaterra un tratado para el derecho recíproco de pesca en ambos países durante cincuenta años. Eran tiempos en que iban á la pesca de la ballena.

A principios del siglo XVI se acusa la decadencia, como efecto de los grandes y gloriosísimos viajes. De ochenta barcas de pesca que había en Vianna en 1580, no quedaba ni una sola en 1619 : todo lo arrastró la navegación al Brasil. Lo único que estas navegaciones les trajo para la industria pesquera fué el ir á los mares del Norte á pescar bacalao, lo cual perdieron luego, recobrándolo posteriormente.

Iban los navios portugueses en el siglo xvi á pescar bacalao en Terranova, y según el Tratado das ilhas novas, escrito por Francisco de Sousa en 1570, cuando esos navios fueron entre 1520 y 1525 por primera vez allá, se perdieron sin que se supiera de ellos sino por via de biscainhos que continuam na dita costa á buscar e á rescatar niuitas cousas que na dita costa ha.

Hay quien dice — el P. Carvalho en su Chorographia portuguesa por lo menos — que los portugueses descubrieron Terranova ; en mi tierra se oye decir que los balleneros vascos llegaban allá antes del primer viaje de Colón á América.

Espinho. Consertando as redes de pesca, ed. Violeta Primorosa, c.1910.
Delcampe

¡ Qué tristeza infunde, después de recorrer con la memoria la espléndida historia de las glorias marinas de Portugal, la patria de los más grandes navegantes, ñjar ln vista en estos pobres mansos bueyecitos rubios tirando playa arriba las cuerdas de las redes, sumisas sus astadas testuces bajo los ornamentados yugos en cuyo centro brilla el blasón, un tiempo resplandeciente de gloria, de Portugal !

Espinho, Agosto 1908. (1)


(1) Miguel de Unamuno (1864-1936), Pesca de Espinho, Por tierras de Portugal y de España, 1911

Artigo relacionado:
A procura da arte e da xávega (em Espinho)
 
Museu de Espinho:
Museu Municipal de Espinho (esposições permanentes): Arte-Xávega
Museu Municipal de Espinho (blogspot): As origens da pesca com Arte-Xávega
Arte-xávega
As origens da pesca com arte-xávega
A fixação permanente dos núcleos piscatórios
A pesca com arte-xávega
O "barco-do-mar"
O pescado
As companhas

Padre André de Lima, Espinho: breves apontamentos para a sua história, 1903:
Espinho: boletim cultural. Vol. 1 n.º 1 (1979)
Espinho: boletim cultural. Vol. 1 n.º 2 (1979)
Espinho: boletim cultural. Vol. 1 n.º 3 (1979)
Espinho: boletim cultural. Vol. 1 n.º 4 (1979)

Mais informação:
Carlos de Passos, Barcos de pesca, Terra Portuguesa n° 35/36, dezembro 1922
Alfredo Pinheiro Marques, A arte-xávega da Beira Litoral e as suas embarcações, Revista da Armada n° 555, setembro-outubro de 2000
Jorge Branco, Pesca Tradicional na Laguna de Aveiro: Cais, Embarcações e Artes

Leitura adicional:
Raul Brandão, Os Pescadores, Paris, Ailland, 1923, 326 págs, 127,7 MB
Clara Sarmento, Práticas, discursos e representações da cultura popular portuguesa, 2007
Henrique Souto, Comunidades de pesca artesanal na costa portuguesa... 1998
Adolpho Loureiro, Os portos maritimos de Portugal e ilhas adjacentes, 1904
Maria João Marques, Arte Xávega em Portugal