sexta-feira, 26 de julho de 2019

Bulhão Pato, a consagração da scena

LIVROS NOVOS

Ruy Blas — Traducção em verso de Bulhão Pato. — 

Sem ser um Shakespeare, Victor Hugo ha de viver largos seculos no theatro. Nos seus dramas não se reflecte o homem, mas reflecte-se a humanidade. Ruge nos seus dramas a paixão impessoal, pelas mascaras de bronze desses personagens titanicos. 

Retrato de Bulhão Pato (detalhe), Columbano Bordalo Pinheiro, 1883.
Imagem: MNAC

Nas peças de Shakespeare sente-se a carne que se contorce, os nervos que vibram, o sangue que corre por baixo da epiderme dos personagens; nas de Victor Hugo não se veem senão as grandes mascaras de bronze, de cujas bocas sae o grande sopro lyrico das paixões impetuosas. 

Ruy Blas é de todos os dramas aquelle em que mais se sente sua impersonalisação. Tudo está fora do real, desde a mascara demoniaca de D. Sallustio até á mascara silenica de D. Cezar de Bazan, mas as grandes paixões, que podem agitar a humanidade, trovejam, riem, ou soluçam em todos aquelles labios que teem, em vez da carnação rosada da vida, a rigidez metallica dos labios das estatuas.

Entre Sallustio e Iago ha um abysmo; lago é um infame, Sallustio é a infamia. Romeu é um apaixonado, Ruy Blas é a paixão. Fallstaff e um typo immortal de bebado jovial, fanfarrão, vadio. D. Cezar é a propria symbolisação de todos esses vicios alegres.

Por isso Victor Hugo ha de viver no theatro como Shakespeare, este para convulsionar eternamente as platéas pela verdade humana dos seus personagens, aquelle para as inflammar nos arrebatamentos lyricos e infaustos da sua linguagem apaixonada e candente.

Por isso o que se cita de Shakespeare? as scenas: a do jardim de Julieta, a de Othello e lago, a de Shylock e Antonio, a de Ricardo III e rainha Anna, a de Macbeth e de lady Macheth, do rei Lear e o bobo, a de Hamlet e a mãe ou de Hamlet e Ophelia.

O que se cita de Victor Hugo? monologos, o de Carlos V no "Hernani", o do marquez de Nansis na "Marion Delorme" e o de Barba Roxa nos "Burgraves", o de Ruy Blas aos grandes de Hespanha no drama de que nos occupanios agora.

Quem falla em Shakespeare são os personagens pela boca do poeta, e em Victor logo o poeta pela boca dos personagens. O genio de Sbakespeare faz vibrar com o seu magico sopro os nervos das suas creaturas, Victor Hugo dá ás suas os nervos de bronze da sua propria lyra.

Bulhão Pato, que já enriquecera a litteratura portugueza com duas magnificas traducçães de Shakespeare, quis tambem traduzir Victor Hugo e pôz em verso portuguez esse magnifico Ruy Blas, a que alludimos ha pouco.

Pôl-o em verso portuguez de lei, n'esse magnifico verso solto hoje trocado pelo alexandrino magestoso e massudo, que arrasta o dialogo ao passo cadenciado das suas rimas alternadas. Foi extraordinariamente feliz n'esta audaciosa tentativa. No verso solto parece que vibra mais livre o latego de Ruy Blas, que dança mais descuidosa a jovialidade de D. Cezar, que suspira mais melodiosamente o lyrismo amoroso da rainha.

Ruy Blas por Bulhão Pato, O António Maria, 13 novembro de 1884 (detalhe).
Hemeroteca Digital

Oiçam o final da objurgatoria de Ruy Blas aos ministros:

Teu auxilio, o teu braço, ó Carlos quinto; 
Porque surcumbe a flespanha, a Hespanha extingue-se!

Aquelle globo em tuas mãos robustas,
O sol deslumbrador, que n'outro tempo
Fazia acreditar ao mundo inteiro
Que era em Madrid que despontava o dia, 

Agora, astro sem vida, a pouco e pouco 
Vai-se sumindo, lua em seu minguante, 
Que de outro povo ha de apagar a aurora!

Nas mãos de vendilhões a tua herança! 
Fundiram em moeda a tua c'rôa! 
Conspurcam o. esplendor das tuas glorias! 
Ó gigante, é possível que tal durmas?

Vendem teu sceptro a pezo; anões disformes, 
Do teu manto de rei talham as vestes. 
Tua águia imperial, que doutros tempos 
De raios e fulgor enchia o mundo, 
Pobre ave já sem penas, os famelicos 
Vão devoral-a na marmita infame.

Ah! como o nosso bom verso endecasyllabo, manejojado por mãos vigorosas, serve ainda para tudo! como elle zurze! como silva nos ares! como substitue pela amplitude do rhytmuo a amplitude syllabica do alexandrino:

De raios e fulgor enchia o mundo!

Afinal Victor Hugo com todo o seu genio para ter um alexandrino com esta idéa não poude fazer mais de que metter um adjectivo perfeitamente dispensavel:

Couvrait le monde entier de tonnere et de flammes.

Para isso, bem o sabemos, é indispensavel que o traductor se chame Bocage, ou Castilho, ou Bulhão Pato, é necessario que se tenha no ouvido, para segurança melodica, o segredo do rhythmo, que dispensa o diapasão da rima, de que sempre carecem as cantores mediocres, é indispensavel que se tenham boas pernas nervosas, como Bulhão Pato tem em caçadas e em poesia, para acompanhar as passadas de gigante de Victor Hugo sem se empoleirar uma pessoa nas andas dodecasylabicas do alexandrino portuguez.

Six personnages de Victor Hugo Louis Boulanger, 1853 (musée des beaux-arts de Dijon).
Sont représentés, de gauche à droite en commençant par le haut Don Ruy Gomez, Don César de Bazan, Don Salluste, Hernani, Esméralda, De Saverny.
Wikipédia

Pois no celebre monologo de que demos um trecho, e que é enorme, Bulhão Pato, vertendo escrupulosamente, só precisou de mais uns dez ou onze versos do que os que tem Victor Hugo no original, e n'esse longo trecho apenas teremos de notar uma phrase em que a traducção não é rigorosamente a que nos parece verdadeira. "Depuis Philippe quatre" deveria traduzir-ie "Desde Philippe IV" e não "Após de Philippe IV, como o sentido historico indica, porque Victor Hugo diz, peta boca de Ruy Blas, primeiro ministro do rei de Hespenha: 

"Nous avons, depuis Philippe Quatre, 
Perdu le Portugal, le Brésil..."

Ora como foi exactamente no tempo de Philippe IV que a Hespanha perdeu Portugal e Brazil, vê-se que "depuis" não pôde ter outra significação senão a que tem realmente e lexicologicamente "desde".

Fizemos esta pequeníssima observação, para pôr em relevo a fidelidade maravilhosa com que Bulhão Pato acompanha o texto do grande poeta, chegando até a não o emendar, quando Victor Hugo perpetra a respeito de coisas portuguezas um d'aquelles disparates, que elle atira com uma serenidade olympica do alto de um alexandrino recheiado de erudição: 

"Perdu Ie Portugal, le Brésil, sans combatre?"

Para dizer isto nas bochechas dos vencidas de Montes-Claros, de que ainda se havia de lembrar amargamente algum dos velhotes do conselho, era necessario que Ruy Blas tivesse urgentimima necessidade de encontrar uma rima para "Philippe Quatre". Bulhão Pato, com urna fidelidade a toda a prova escreve: 

Portugal e Brazil "sem um combate"
Deixámos ir por mão. 

A proposito da sem cerimonia com que Victor Hugo trata a historia portugueza, sempre nos ha-de lembrar aquelle disparate que Hernani atira magestosamentc a Carlos V na crypta d'Aix-la-Chapelle:

"Je suis Jean d'Aragon, grand-mailre d'Avis né..."

Voltemos ao Ruy Blas, e á magnifica tradução de Bulhão Pato. Para acabarmos do provar como o nosso eminente poeta é fidelissinio na traducção, basta dizermos que, só porque se afastou ligeirissimamen-te do original, na esplendida versão do canto das lavadeiras, chamou-lhe logo imitação. 

Comparem e vejam como se espelham no crystal sonoro dos versos de Bulhão Pato as graciosas e frescas imagens dos versos de Victor Hugo:

À quoi bon entendre
Les oiseaux des bois?
L'oiscau le plus tendre
Chante dans ta voix. 


Que Dieu montra ou voile 
Les astres des cieux! 
La plus pure étoile 
Brille dans tes yeux.

Qu'Avril renouvelle 
Le jardin en fleur! 
La fleur la plus belle 
Fleurit dans tom coeur. 

Cet oiscau de flamme, 
Cet astro du jour, 
Cette fleur de l'âme 
S'appelle l'Amour 

Vejamos agora na versão portugueza:

Ruy Blas por Bulhão Pato, O António Maria, 13 novembro de 1884 (detalhe).
Hemeroteca Digital

Para que — ouvir das aves 
A voz na selva copada, 
tem notas mais suaves 
A tua voz encantada! 

Para que — ver a mais bella 
D'essas estrellas dc Deus, 
Se mais peregrina estrella 
Refulge nos olhos teus!

Para que — abril em rosa 
Vai transformar um botão, 
Se outra flor, e mais formosa, 
Sorri no teu coração. 

Ave, flor, astro do dia, 
Canto, perfume, esplendor, 
Formam a mesma harmonia 
E tem um só nome: Amor! 

Pois que ha n'estes versos mais do que a refracção que tem a luz ao passar de um para outro meio, da transparencia do ar para a limpidez da agua, e a imagem ao passar do sonoro francez de Victor Hugo para o harmonioso portuguez dc Bulhão Pato?

Lisboa, Teatro D. Maria II, c. 1890.
Arquivo Municipal de Lisboa

Em resumo, a traducção de Ruy Blas por Bulhão Pato é uma verdadeira obra prima. que deve ter, que esperamos que tenha, a consagração da scena. 

Obras assim devem engastar-se no reportorio dramatico nacional.

P. C. [Manuel Pinheiro Chagas] (1)


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*     *

No final da ultima scena, Bulhão Pato foi chamado ao proscenio pelo publico que queria victorial-o, mas o illustre poeta não appareceu porque andava, segundo ouvimos, lá pela Outra Banda, de espingarda ao hombro, a caçar nos seus homonymos bravos.

Bulhão Pato, Rafael Bordalo Pinheiro,
Album Glórias, 1902
Biblioteca Nacional de Portugal

O publico, desesperado por não lhe apparecer o Pato que pedia em D. Maria, foi para a cervejaria da rua do Principe, onde se vingou pedindo pato com macarrão! (2)


(1) Jornal do Domingo, Revista Universal, Anno I n° 42, 4 de dezembro de 1881
(2) O António Maria, 13 novembro 1884

Informação relacionada:
Bulhão Pato (1829-1912): no Centenário da sua Morte

Leitura relacionada:
Victor Hugo, Ruy Blas, traducção em verso por Bulhão Pato, Lisboa, David Corazzi, 1881

domingo, 21 de julho de 2019

A janela de José Cardoso Pires

A 4 de novembro de 1998, o Jornal de Letras dedicava um número especial à figura e obra de José Cardoso Pires, de quem nos tínhamos despedido poucos dias antes, na Biblioteca das Galveias. Para esse número, José Carlos de Vasconcelos convidou amigos e admiradores para escreverem sobre aquele que partia mas deixava uma obra única para a posteridade.

José Cardoso Pires no apartamento da Costa da Caparica.
Jornal de Letras, 4 de novembro de 1998.
Hemeroteca Digital

Sentei-me então à mesa e escrevi um texto com a memória recente, e a paixão viva, pela sua pessoa de perfil inconfundível como nunca mais encontraria na vida [...] (1)

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*     *

A conversa [com Filipa Melo] fez-se a seguir ao almoço. Tom um de dois interlocutores que se conhecem ao ponto de não aceitarem o disfarce. Tema, dentro do possível: José Cardoso Pires troca Lisboa pela Costa de Caparica: o seu dia-a-dia; se o trabalho rende ou não; por exemplo, e para começar, que lugar preenchem os amigos na vida do romancista [...]

— Neste semi-exílio da Caparica passas boa parte da semana sozinho é?

— Sozinho, sim. Sempre. A maior parte do tempo [...]

— Este teu apartamento, compraste-o com os direitos autorais?

— Não, não. Eu tinha dinheiro de várias coisas, e algum também dos direitos autorais, mas que não foi a base [...]

— Antes de vires para a Caparica escrevias em Lisboa?

— Na minha casa de Lisboa? Não. Escerevi de um modo geral noutros sítios, em casas de amigos. Em Lisboa não, porque tinha problemas, havia as miúdas, havia sempre umas lutas bestiais. Eu gosto muito do silêncio, gosto da solidão, não sou capaz de escrever diante de ninguém [...]

Costa da Caparica, José Cardoso Pires.
Jornal Público, 27 de outubro de 1998.
Hemeroteca Digital

Escrevo em longos períodos, por vezes sou capaz de estar oito a dez horas sentado a escrever. Sou muito anarca. Quase sempre anda por volta dos três anos o tempo que demoro a escrever um romance. E quase todos os livros que faço têm mais que uma versão. (2)


(1) Lídia Jorge
(2) Jornal de Letras, 4 de novembro de 1998

Artigo relacionado:
Costa da Caparica de José Cardoso Pires

Leitura relacionada:
Dossier digital José Cardoso Pires (1925-1998)
Dossier digital José Cardoso Pires (1925-1998): entrevistas
Dossier digital José Cardoso Pires (1925-1998): fotogaleria

sexta-feira, 5 de julho de 2019

A tragédia do Pensativo por Norberto de Araújo

Aqui há uns trinta e tal anos deu-se na Caparica o naufrágio de um barco de pesca em que morreram (pois) dez ou doze homens à vista da praia, à vista daquela gente toda, das familias... foi uma coisa tremenda. Alberto de Araújo fora designado para fazer a reportagem da Caparica, e escolheu-me para o acompanhar e para o ajudar. Eu que nesse tempo sabia pouco ajudar e muito menos um mestre. Ficou lá uns vinte minutos, ele, viveu o ambiente de tragédia, aquelas pobres familias, alanceadas, mulheres que já eram viúvas, crianças que já eram órfãs... encarregou-me de tomar nome dos mortos, o nome do barco etc. E viemos para o jornal.

O jornalista Maurício de Oliveira fala de Norberto de Araújo e da sua reportagem aos 15"45' em
Sabe quem foi Norberto de Araújo? 1971, RTP Arquivos

Ele, em vinte minutos, escreveu uma página, das dimensões de um vespertino nosso, aqui da cidade. Ele perguntou-me duas ou três coisas, mas apenas o nome do barco, o nome dos homens, e quando terminou disse: — Pronto, está feito!

Umgrupo de náufragos posando para o nosso jornal.
Diário de Lisboa, 12 de dezembro de 1929

Olhou para mim e verifiquei que os seus olhos estavam vermelhos, não de fadiga, mas de umas lágrimas, que começavam, que começavam a saltar: a saltar das pálpebras. Percebeu, ele percebeu que eu entendia a sua emoção, e então disse-me (aquilo foi terrível... foi uma coisa terrível), o homem que era Norberto Araújo, profundamente humano, sentimental, coração generoso, tinha sido tomado de assalto pela própria emanação do seu talento, e estava a chorar a desgraça que ele acabava de descrever com verdadeiro génio. (1)

*
*     *

No Oceano, defronte da Costa de Caparica, que acabamos de contemplar envolta de azul e de luminosidade transparente, com um mar de crianças inocente das suas traiçõezinhas, a praia quietíssima e as figuras tisnadas das gentes sucumbidas ao peso da desgraça — desenrolou-se esta manhã, em rápidos minutos, ainda era lusco-fusco, urna tragedia, que põe de luto muitos lares e arrebatou á vida onze homens, alguns quasi crianças, a maioria na força da vida — entre os 16 e os 30 anos. 

Diário de Lisboa, 12 de dezembro de 1929

A população local e dos arredores encontra-se consternadíssima. Uma vaga de tristeza. que se não traduz em palavras, mas no silencio que quasi toda a gente mantém, paira sobre a ridente povoação da Costa, primitiva praia de pescadores, onde ha ainda um ou outro traço selvagem, e onde a civilização ha anos para cá vem entrando, pé ante pé, já com os seus ares e as suas aspirações, que, contudo não afastam da linda praia o seu caracter original e o seu encanto de grande praia piscatória, de rudimentares artes e atrevidas fainas do mar. 

Alguns sobreviventes do naufrágio na Costa da Caparica.
Torre do Tombo

Na casa da companha está estendido um cadáver; o mar guarda por enquanto, para demorar. a posse, mais dez, e nove sobreviventes, alguns como tontos. andam por ali... a ver o mar — que parece que não foi nada com ele. 

As companhas do "Mestre Chico"

Na Costa da Caparica a actividade piscatória, de processos primitivos como dizemos, tal qual em outras praias do litoral português do Norte ao Sul do país banhado pelo Atlântico, exerce-se entre o começo da primavera e o principio do inverno. 

Diário de Lisboa, 12 de dezembro de 1929

Ás vezes, audaciosamente, os pescadores entram pelo inverno. Por enquanto o mar não "puxa" ainda muito.

As campanhas que ali trabalham não são agora muitas. Três ou quatro, cada uma com seu barco, cada barco com a sua gente, um arrais, um espadilheiro, e aí vinte homens que remam, lançam as redes, trazem o barco para terra e puxam as duas cordas, uma, a "panda", que fica presa em terra logo quando o barco sai, e a outra que o barco trás consigo, quando, largadas as redes ao largo, ai a cerca de uma milha, volta á praia, nos braços das ondas.

"Mestre Chico", figura simpática e prestigiosa da terra, ali nado e criado, que foi pescador e chegou a proprietário de varias "artes", tem hoje três barcos com suas companhas, que todas as manhãs e todas as tardes, quando o mar permite, vão ao mar, fazer os seus lances, alguns dos quais repetem, quando no primeiro matam muito peixe. 

"Mestre Chico", o sr. Francisco José da Silva, casado, ali proprietário tambem de um estabelecimento de mercearia, tem ao seu trabalho assim uns setenta homens, entregues aos três arrais, que escolhem a hora oportuna e o sitio apropriado para lançar as redes, que ás vezes, após duras canseiras, quasi de condenados, trazem apenas caranguejo reles, para estrume. 

Esta temporada não tem sido má de todo. Têm "matado" bem, e lances tem havido que se aproximam de uma dezena de contos. Contudo, estes lances felizes mal chegam para compensar as companhas da centena de vezes que inutilmente vão ao mar, ou das semanas em que o rigor do tempo os obriga á imobilidade, estendidos debaixo das redes ou acolhidos ás palhotas ou ás casitas já de pedra e madeira. 

Vida de heroísmo e de sacrifício ignorados...

Três barcos no mar

Esta manhã os arrais de "Mestre Chico" resolveram que fossem para o mar o "Pensativo" e o "S. Francisco". Tambem iria o "S. José", de outro proprietário, o "Júlio da Filipa". Em terra ficou encalhado o "Portugal", tambem do dono do "Pensativo". Era escuro, e os homens andaram pela terra a gritar: "pró mar!" Foram-se chegando para a praia as companhas, vultos escuros deslizando pela areia, ainda no negrume da noite.

Naufrágio na Costa da Caparica, ao centro o arrais do barco naufragado.
Torre do Tombo
E aí cérca das cinco horas, mal dealbava, saíram os três barcos, de altas proas, cada um com seu espadilheiro à popa, guiando "aquilo", e trinta e seis e braços puxando pelos remos ciclópicos.

Dos três, o "Pensativo" foi o ultimo a sair. Ferrou a "panda" na areia, os homens empurraram-no á agua (já lá andavam os outros dois) saltaram para dentro, tomaram a seu lugar, vá de puxar com força, e foram-se afastando, afastando. 

O mar não estava alvoroçado; não havia neblina, e piscavam ainda o seu olho vermelho e branco os faróis da Espichel e do Bugio. As familias dormiam descansadas: uma faina como tantas... 

Levanta-se nevoeiro

Menos de urna hora andou o "Pensativo" ao largo, já o "S. Francisco?" seu irmão, e o "S. José" vinham para terra. Começava a cair uma neblina leve.

Alguns sobreviventes do naufrágio na Costa da Caparica.
Torre do Tombo

O arrais Vitorino escolheu o sitio que lhe pareceu — ás vezes por palpite — mais sujeito a peixe, e mandou largar as pesadas e grandes redes, cujo saco há de recolher o peixe que por ali anda, aos cardumes, as "brancas" de sardinha ou de carapau que vão de longada para o Sul.

Começava a clarear, vagamente. Os faróis mal brilhavam. Fazia frio; o mar não dava de si "para mal", mas a neblina fez-se nevoeiro, e fechava-se, em "treva branca". 

Lançada a rede, já no isolamento dos outros barcos dos camaradas, o "Pensativo" deu ainda umas dúzias de remadas duras, entre o balanço das ondas, que mais cresce quanto mais o barco se aproxima da terra. E aproava á praia. 

Já tinham "abicado" o "S. José" e "S. Francisco", este do arrais Cavalinho, e pertença tambem de "Mestre Chico".

E na praia os grupos indistintos dos peixeiros vendedores, que vão para ali com seus cabazes e cêstas de carga, andavam de um lado para o outro "a ver o que vinha", á espera da lota. Os guardas-fiscais e os cabos do mar misturavam-se na mancha sempre escura, do gentio comprador: E tudo envolto num nevoeiro densíssimo.

Uma traição do mar

— Ouvia-se apenas as pancadas secas dos remos pesados na agua do mar, que começava "puxando". Havia já débil claridade. Nada que fizesse prever traição. Os homens puxavam, puxavam, e alguns pensariam se a rede traria esta manhã ou não traria peixe.

Naufrágio na Costa da Caparica, o rimeiro cadáver que deu à costa.
Torre do Tombo

Aí a vinte "cordas" de terra, e cada corda tem 18 praças — ou seja á distancia de multo menos de um quilometro — o barco é sacudido por um vagalhão, destes que andam "perdidos". Sacode o "Pensativo" pela popa, e fé-lo estremecer todo, como uma casca de noz. Que ondas!

Mas é costume... O espadilheiro aguentou. O barco preso pela espia segura-se e a onda há de passar. Novo vagalhão, já os remos custam a segurar. A meia lua, que o barco com suas pontas reviradas desenha ao lume de agua, no fundo de um nevoeiro que parece ocultá-lo do resto do mundo, afunda-se e logo ressurge, intacto. 

Mas a espia quebra!

A tripulação percebeu o golpe; entendeu o perigo. Estavam perdidos! E não houve mais pensar e o leme tornou-se inútil. O barco, tornado frágil, eleva-se das ondas uns metros e cai ao peso de si proprio, volta-se, como um barquinho de crianças.

— Acudam-nos! Acudam-nos! — gritam para terra. E enrodilha-se tudo. O barco fica de fundo para o ar, e sob ele lutam desesperadamente, aqueles vinte homens. 

A tragedia não tem descrição possivel. Uns nadam, vigorosamente, não sabendo para que lado está a terra. Outros saltam ao barco, pretendendo ultimo apoio. Outros, enrodilhados nos remos, não se teriam, por ventura, podido mover. 

E os gritos, dos que conseguem gritar confundem-se com gemidos dos teriam sido atingidos pelas madeiras, pelos apetrechos pesados bordo. Agarram-se alguns a outros numa ansia de salvação. O desespero da salvação! A ansia de viver! 

A maioria daqueles homens não tem 30 anos [...]


Um balanço sinistro

Reúnem-se os homens. Um grito de um que manda calar. Uma voz de outro que interrompe o silencio.

Naufrágio na Costa da Caparica, Francisco Pinto de 14 anos que se salvou a custo.
Torre do Tombo

Um pranto uma mulher que vem fazer a ultima pergunta: 

O meu filho? Mas só o meu filho que não volta?! 

Ninguem responde. E levam-na.

"Mestre Chico" — parece uma sombra. Ele não diz nada. São os seus homens. Foi a sua "arte". Foi o seu barco. E um mais valoroso aventa: 

— Vamos a contar... Vamos a contar...

E contam. Um vai escrevendo, numa garatuja de alfabeto primitivo. Nós recompomos.

Desaparecidos, sem esperança de qualquer salvação, e mortos, portanto:

—  Agostinho Coelho, o "Bexiga" — ali estendido numa esteira da Casa da. Companha — 29 anos, solteiro, de familia. em Lisboa. 

— João dos Santos Quintino, de 39 anos, de Belém. Casado e com dois filhos. 

— Francisco Saloio, de 14 anos, do Bombarral, mas criado e vivido na Costa da Caparica. A criança da companha. 

— Manuel Agostinho, de 30 anos, de fóra da Costa, onde não tinha familia. Era o mais moderno da companha, e fôra para o mar contra vontade da familia. 

— Joaquim Monarte, o "Cabinho", de 28 anos, casado e com um filho, natural da Costa, onde tem tambem pai e irmãos. 

— Manuel da Grama Santos, de 18 anos, da Costa da Caparica. Muito simpático e alegre. Vivia com sua mãe, de quem era o amparo. Ontem á noite andou a cantar na fonte da povoação, e foi a cantar para o mar. 

— João Nozes Júnior, tambem da Costa, 30 anos, vivia com seu pai, que tambem foi pescador. 

— Merceano da Silva, natural da Costa, de 22 anos. Casado há pouco tempo, deixa sua mulher gravida. Tinha tambem sua mãe em casa. 

— Delfim, um rapazinho que fazia hoje 16 anos, e que foi ajudante do banheiro Ivandro. Natural do Cruzeiro da Ajuda. 

— António Davina, de 25 anos, casou há 15 dias na Costa, onde tinha tambem mãe e irmãs. 

— José Martins, de 24 anos, solteiro, o amparo de sua casa, pois tem o pai e a mãe tuberculosos, e era ele o sustentáculo da casa. 

Eis a lista sinistra.

Os sobreviventes

São, como dissemos, nove. Não atribuem o facto de se salvarem á circunstancia de saberem nadar. "Ficaram lá alguns que sabiam mais do que nós". São eles:

Alguns sobreviventes do naufrágio na Costa da Caparica.
Torre do Tombo

Vitorino José Galinho, o arrais, de 24 anos; José Raimundo, filho, que era o espadilheiro; Eduardo Ribeiro; Pedro Manarte, Pina Setubalão, Francisco Capote, sobrinho; Raimundo Gonçalves, Antonio Isidoro e Alberto Martins, que foi o primeiro a chegar a terra.

As causas da catástrofe

As descrições dos sobreviventes, que têm animo para falar, é que nos permitem reconstituir a tragedia como acima a damos. 

Mestre Francisco da Silva limita-se a dizer-nos, em resumo:

— Esta desgraça só a podemos atribuir a uma traição do destino. Quantas vezes, com temporal, e mar "a puxar" as minhas companhas iam ao mar. Porque não sou eu, mas os arrais que mandam. E o mar hoje estava bom. Não era um mar de senhoras. Era um mar de pescadores. Veio aquele puxão de agua, e o barco não nos dava [...] os homens sabe do seu oficio. Mas a espia quebrou, e esta é que foi a desgraça. Com o mar que súbito embravecera e sem aquele apoio, voltou-se. Não sabemos como aquilo foi. A corda era nova. Talvez tivesse "desabuçado", quer dizer, talvez um dos nós se tivesse desatado com o puxão. Nunca sucedeu. Foi a desgraça. 

E numa grande e sincera lastima: 

— Pobres rapazes! Tudo gente nova! Alguns eram crianças! E todos bons homens, coitados. E Mestre Chico custa-lhe a suster as lagrimas.

O "Pensativo na praia"

Poucas horas depois da tragedia, o "Pensativo", que continuava boiando, indiferente, vitima tambem do mar, foi arrastado para terra. Estava quasi esfrangalhado. Os remos, que são pesados braços de madeira, alguns dos quais têm de ser manejados por dois homens, estavam quasi todos quebrados. 

O barco que naufragou, depois de recolhido e varado em terra.
Torre do Tombo

A proa e a popa desfeitas. Os bancos partidos. É um farrapo de si proprio, o pobre barco, T122F, que largos invernos resistiu aos temporais e sempre muito cuidado, estava como novo, com suas pinturas frescas e a sua elegância esbelta de cortador das ondas. 

Dentro dele ainda está roupa, barretes e calçado dos náufragos, que trabalham descalços. Tem sete metros de comprimento e apesar de ser agora uma ruina, ainda avulta ao lado do "S. Francisco" e do "S. José". 

A rede ficou no fundo do mar, e está-se tentando conseguir um barco que a levante, visto a vida dos pescadores não poder parar. O "Pensativo" é que ficará na praia muito tempo, encalhado, a ver os outros partirem, os outros chegarem [...] (1)


(1) Sabe quem foi Norberto de Araújo?, 1971, RTP Arquivos
(2) Diário de Lisboa, 12 de dezembro de 1929

Artigo relacionado:
O naufrágio do Pensativo

Mais informação:
Sabe quem foi Norberto de Araújo?, 1971, RTP Arquivos (aos 15"45' o jornalista Maurício de Oliveira fala de Norberto de Araújo e da sua reportagem)