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quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Sarah Affonso por Mário Domingues e com Fernanda de Castro

Sarah Affonso, embora ao primeiro golpe de vista nos recorde imediatamente a pintura mole de Columbano, possui, entretanto, qualidades suas que deve lutar por conservar ou desenvolver. Os retratos que apresenta são tecnicamente bem feitos — academicamente falando. Possuem, entretanto, um quê de impalpável que só consegue fixar nas obras de arte quem tem alma para sentir. Desses retratos ressalta ainda uma qualidade que não se assimila: o carácter. Há um certo à-vontade que só obtêm aqueles que têm um pensamento superior a nortear-lhes o pincel (...)

Autorretrato (detalhe), Sarah Affonso, 1927.
MNAC

D. Sarah Affonso devia — que nos seja permitido dar conselhos — fazer as malas, meter-se no Sud-Express e desembarcar em Paris (Sarah Affonso esteve em Paris, em 1923-1924 e em 1928-1929). Nessa cidade entregar-se-ia ao estudo dos pintores modernos e antigos, clássicos e bizarros. Veria tudo com olhos de ver, examinaria sem parti-pris, abriria a sua alma às mil almas de artista que, por intermédio da arte, pudesse conhecer (...) (1) 

Mário Domingues, revista Ilustração 16 de fevereiro de 1928 (detalhe).
Biblioteca Nacional de Portugal


Em 1924, Sarah parte para Paris o que não a impede de, no ano seguinte, em 1925, desenhar a capa e ilustrar a primeira edição de Mariazinha em África de Fernanda de Castro. A obra viria a ser reeditada 10 vezes com ilustrações de diferentes autoras: Sarah Afonso, Ofélia Marques e Inês Guerreiro que foi a única discípula de Sarah.

Em 1927, nasce o segundo filho de Maria Fernanda, Fernando Manuel; para a festa do baptizado realizado na Igreja dos Anjos em Lisboa, é convidado apenas, além da família mais chegada, um grupo restrito de amigos (Sarah Affonso, António e Narcisa de Meneses, os primos Pedro e Maria Helena Ferro da Cunha, Raul Feio, e outros).

Em 1928, Sarah imortaliza Fernanda de Castro com seu filho António, num óleo sobre madeira cuja reprodução viria a ilustrar a capa de Ao Fim da Memória I 1906-1939, de Fernanda de Castro, em 1988. Ao longo dos anos, Sarah vai fazendo desenhos para várias camisolas dos pequenos António e Fernando que, alternadamente com Fernanda de Castro, vai bordando.

Fernanda de Castro e Antoninho Gabriel por Sarah Affonso, 1928.
MNAC/Flickr

Em 1929, Janeiro, depois de uma estadia de cinco meses em Paris, Sarah recebe a notícia de que a sua mãe está muito doente e escreve a Maria Fernanda aconselhando-se sobre se deveria voltar a Portugal ou ficar em Paris. Pede-lhe que visite o médico da mãe para melhor poder entender o seu real quadro clínico pois

"Se deixo Paris agora todo o esforço será perdido. Sem receber uma resposta, não tenho coragem de tomar uma resolução. Se for só uma crise, a minha pobre mãe que tenha paciência mais uma vez, tenho lá duas irmãs que são já umas mulheres e podem tratá-la. Se for grave, irei então cheia de resignação… Peça conselho ao António."

Lamentavelmente, o estado de saúde da mãe de Sarah agrava-se o que a obriga a voltar para Portugal. Depois da morte da mãe e devido à ausência do pai, Sarah vê-se responsável pelos irmãos o que a impede de voltar para Paris.

Ilustra e desenha a capa para As Aventuras de Mariazinha, de Fernanda de Castro obra que viria a ser reeditada em 1935 com o título de As Aventuras de Mariazinha, Vicente e Comp.ia (romance para meninos) e, em 1959, com capa e desenhos de Viviane e o título de Novas Aventuras de Mariazinha.

Em Julho de 1930, da Costa da Caparica, volta a escrever à amiga:

"Está aqui muita gente, relações antigas e outras recentes. Eu trouxe grande conhecimento de livros, materiais de pintura. Para encher o tempo faço bolos, experimento receitas de petiscos e o tempo há-de passar… Apesar de tudo sempre é melhor estar aqui que em Lisboa. E você como vai com as suas costuras? Grande sucesso na exposição? Lembra-se de que me prometeu uma visita?"

A Praia do Sol, Costa Caparica, ed. Acção Bíblica Casa da Bíblia, c. 1930.
Casa Comum


"Venha com os seus pequenos. Mas venham de manhã, almoçam connosco. O vapor é em Belém. Na Trafaria tem camioneta para aqui. A nossa casa é à entrada da povoação. Traga costura. Se quiser traga um vestido dos de Grés que eu bordo-o e depois levo-lho."

O alar das redes por Sarah Affonso.
Jornal Praia do Sol, 15 de Março de 1950

Ainda nesse Verão, a 4 de Setembro, escreve de novo, num grito de desespero, o espírito quase quebrado:

"Há dias em que nas 24 horas, estou 15 na cama! Pouco a pouco vou perdendo as ilusões que por vezes me levavam a fazer perguntas, há falta de melhor, estou sem grande gosto pelo trabalho e vai-me faltando a força para reagir. Sinto que isto já deu o que tinha a dar, e a Sarah Afonso ficará na história (?) como uma risonha esperança (...)" (2)


(1) Mario Domingues, Os trabalhos dos alunos da Academia de Belas Artes, Revista Portugueza, 1923 cit. em Emília Ferreira, Forte, para resistir, Sarah Affonso, um percurso ímpar no modernismo português, 1999
(2) Sarah Affonso e Fernanda de Castro, Uma história de duas vidas por Mafalda Ferro

Artigos relacionados:
Sarah Affonso, postais da Costa a Manuel Mendes (1930-1931)
Sarah Affonso
Mário Domingues (1899-1977), escritor
Ao fim da memória
A casa cor-de-rosa

RTP Arquivos:
Sarah Afonso: Biografia do Centenário 1899-1999

Mais informação:
O primitivismo na pintura portuguesa (1905-1940)
Programa de exposição de Sarah Afonso no Salão Bobonne, em Lisboa. Nota introdutória de António Ferro, 18 de Janeiro de 1928
Arte e Género, Mulheres e Criação Artística, Faculdade de Belas-Artes
Emília Ferreira, Forte, para resistir, Sarah Affonso, um percurso ímpar no modernismo português, 1999
Maria João Gomes Pedro, Sarah Affonso, vida e obra, 2004 (3 vols.)
Sarah Affonso (Google Arts & Culture)
Sarah Affonso (MNAC)
Sarah Affonso (Centro de Arte Moderna Gulbenkian)
Sarah Affonso (Fundação Mário Soares e Maria Barroso/Casa Comum)
Almanak Silva: Mariazinha africanista



Sobre o percurso de Sarah Affonso, ver (cf. A. Santos Silva, Ofélia Marques (1902-1952)...);
CONDE, Idalina, «Sarah Affonso, mulher (de) artista», in Análise Social, vol. XXX (131-132. 2º-3º), p. 459-487;
CONDE, Idalina, «Reencontro com Sarah Affonso», in LEANDRO, Sandra, SILVA, Raquel Henriques da (coord.), Mulheres Pintoras em Portugal: de Josefa d’Óbidos a Paula Rego, p.129-161;
NEGREIROS, José de Almada, «Sarah Affonso», in CASTRO, Zília Osório de, ESTEVES, João Gomes (dir.), Dicionário no Feminino (séculos XIX-XX), p. 850-851;
PEDRO, Maria João Gomes, Sarah Affonso – vida e obra, vol. I. 

terça-feira, 26 de março de 2019

Rosa Costa, A minha paixão

Irmã da laureada cantadeira Ercilia Costa, como esta nasceu à beira do Oceano, embalada pelo doce murmúrio das ondas que a ensinou a cantar o Fado. 

Costa da Caparica. Um aspecto das festas à Senhora da Boa Viagem, 1929.
Arquivo Nacional Torre do Tombo

Rosa Costa apareceu como cantadeira profissional em 1927, numa festa de beneficência organizada por sua irmã Ercilia a favor dos náufragos da Costa de Caparica, no Teatro de S. Luiz, obtendo desde logo um retumbante êxito. 

Sabendo dizer e cantar, os versos saem-lhe dos lábios como preces impregnadas de sentimento. 

Depois dessa auspiciosa estreia, que a imprensa sublinhou com justas apreciações, Rosa Costa cantou em outras festas de caridade no Salão Artístico de Fados, Solar da Alegria, Arcádia, Coliseu, Capitólio, teatros do Gimnásio, Apolo e Trindade, nos cinemas Palatino, Portugal, Oriente e Salão de festas da Promotora.

Rosa Costa no Solar da Alegria, Diário de Lisboa, 1937.
Fadistando

Em digressão artística com sua irmã, Alberto Costa e Alfredo Duarte "Marceneiro" [Troupe Guitarra de Portugal], percorreu todo o Norte, Beiras, Estremadura e Alentejo, obtendo grandes triunfos. 

Troupe Guitarra de Portugal.
Em pé: João Fernandes, Rosa Costa e Santos Moreira. Sentados: Alfredo D. Marceneiro, Ercília Costa e Alberto Costa.
Fadoteca

Quando da sua passagem por Vila Nova da Baronia, foi convidada a ir a casa duma senhora entrevada que, não podendo ir ao teatro, assim lhe manifestou o seu grande empenho em ouvi-la cantar o Fado, pedido a que Rosa Costa gentilmente acedeu, cantando para essa ilustre dama as melhores leiras do seu repertório. 

Gravou em discos, na casa Castelo Lopes, os seguintes fados: "A fiandeira", "Fado Corrido" e "Fado menor", e têm-lhe sido oferecidos contratos para ir cantar à Ilha da Madeira, os quais não tem aceitado por não querer afastar se do seu lar. 

Desde que nasceu sua filha que se encontrava retirada, tendo reaparecido recentemente a cantar, com o mesmo sucesso de outrora, no Rádio Clube Português, nos Cafés Luso e Mondégo e em várias sessões de Fado promovidas por alguns colegas seus. 

Rosa Costa.
Ídolos do fado

Rosa Costa, que gentilmente nos distinguiu acedendo a esta entrevista — a primeira que concede, não obstante por mais duma vez ter sido assediada por colegas nossos — com a mesma gentileza nos autorizou a transcrever a letra que mais gosta de cantar e que é da autoria do poeta popular José dos Santos:

A minha paixão

(na música do "Fado da Paixão")

Eu vivo triste,
Triste sem ti, vilão,
Olhas p'ra mim e ris-te
Desta cruel paixão;
Não tens amor
Á nossa filha qu'rida
E só te ris, traidor,
Por me deixares perdida.

Mas eu só peço a Deus,
Já que sou tão triste mãi,
Que me leve lá p'ra os cens
Com minha filha também;
Eu juro a morte.
Morte sim, por salvação,
E a quem Deus criou tal sorte
Que Deus lhe pague a traição.

Essa mulher
Que hoje em teus braços ri,
Talvez p'lo vil prazer
De eu só chorar por li;
Que não se ria
Do meu tormento assim,
Que o seu amor, um dia,
Pôde sofrer mau fim.



Tive um viver bendito,
Tão feliz como ela ou mais.
Mas por ésse amor maldito
De mágoa matei meus pais.
Oh, altos ceus!
Se a morte é supremo bem,
Dou minha filhinha a Deus,
P'ra depois, morrer também. (1)


(1) A Victor Machado, Ídolos do fado, Lisboa, Tip. Gonçalves, 1937

Artigos relacionados:
Ercília Costa (1902-1985)
Caparicanas