quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Mar da Calha

Na grande fortaleza de S. Julião, que cruza os seus fogos com a do Bugio, e nesta torre, marcando e limitando ambas as entradas do porto de Lisboa, estão montados os competentes pharoes.


Uma chalupa armada emergindo da foz do Tejo passado o Bugio, Thomas Buttersworth (1768 – 1842).
Imagem: Bonhams

O pharol da torre de S. Julião data de 1785, e é de luz fixa e branca, com o alcance de 12 milhas. E de 4.a ordem, tem próximo um posto semaphorico, e fica á latitude N. de 38° 42' 22" e á longitude W. de 9° 19' 27" de Greenwich.

A estação semaphorica communica-se com a estação central de Lisboa e com a torre do Bugio por meio de telephone.

Veleiros no Tejo junto ao Bugio, Carlos Ramires, 2014.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Na torre está estabelecido um posto de soccorro a náufragos.

A SW. da fortaleza ha uma restinga chamada ponta da Lage, a qual entra pelo mar dentro, descobrindo na baixa-mar, e que tem cerca de meia amarra de comprimento [1 amarra eq. 120 braças; 1 braça eq. 8 palmos, c. 1,76m].

Plano hydrographico da barra do porto de Lisboa (detalhe), Francisco M. Pereira da Silva, 1857.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Quando, na entrada da barra, se enfia a guarita cylindrica de NE. da fortaleza com a parte leste da muralha da mesma fortaleza, é signal de estar passada a ponta da Lage, a que era mister dar resguardo, e pôde então a navegação seguir sem receio.

A torre do Bugio, ou fortaleza de S. Lourenço, é circular e levantou-se das aguas no século XVII, tendo desde 1755 montado um pharol, que é hoje de luz branca, fixa, com um clarão vermelho de 20'' em 20'', de 3.a ordem, e com o alcance de 15 milhas, illuminando 360°.

Bugio, Defesa maritima de Lisboa, gravura João Pedroso, Archivo Pittoresco, n 30, 1862.
Imagem: Hemeroteca Digital

Foi esta torre construída no logar da Cabeça Secca, separada da torre pela golada do Sul, ou do Bugio, que só dá passagem a pequenas embarcações. O seu apparelho dioptrieo está 26 metros acima do nivel do mar, na latitude N. de 38° 39' 31" e na longitude W. do 9° 17' 52" de Greenwich.

São estas luzes de capital importância para a navegação que demande o porto de Lisboa.

Desde este ponto continua a costa para o S. em uma larga curvatura, e é formada por um extenso areal, e limitada ao longe pela serra da Arrábida e de S. Luiz, que se estende para ENE. do cabo Espichel, e que termina no pico do Formozinho, 500 metros acima do mar.

Linha de costa da Torre do Bugio ao Cabo Espichel (fotomontagem).
Observam-se as elevações moinhos do Chibata, Monte Córdova (Serra de S. Luís) e Serra da Arrábida, conforme descrito no Plano hydrographico da barra do porto de Lisboa, Francisco Maria Pereira da Silva, 1857.
Imagem: AVM

Na serra de S. Luiz, o pico mais elevado é o Monte Córdova, que se apresenta de forma circular, quando é enfiado pela torre do Bugio.

No extremo mais occidental de terra, a partir do Bico da Calha, que é a ponta de areal em que termina a margem esquerda do Tejo, depara se primeiro, a 2 milhas para o S., o forte da Vigia, a 850 metros, e por E. 4 3/4 SE. do Bugio o reducto de Alpena [...]

Fragata HMS Lancaster (F229) na foz do Tejo.
Observam-se em 2° plano a Cova do Vapor e a rebentação das ondas fora da barra.
Imagem: Barcos no Tejo

Barra de Lisboa — A entrada do Tejo fica situada entre as torres de S. Julião e do Bugio, que distam 2:750 metros uma da outra, e entre o Bugio e o Bico da Calha, ou ponta do cabedelo do S. 

Dois grandes bancos se prolongam para o mar na direcção geral de NE.-SW., que se denominam Cachopo do N. e Cachopo do S., ou Alpeidão. 

Formam estes cachopos dois canaes, o do N., ou corredor do N., que fica entre o cachopo do N. e a torre de S. Julião da Barra, e o do S., ou Barra Grande, que fica entre os dois cachopos indicados.

Alem d'estes canaes ha um outro, estreito, pouco fundo e variável em planta, chamado Golada, entre a torre do Bugio e a terra.

O cachopo do N. estende-se naquelle rumo por 5:500 a 6:500 metros. 

O do S. é formado da cabeça do Pato, das coroas de Santa Catharina e do cachopo propriamente dito.

Sobre a primeira parte ha peio menos 10 a 12 metros de agua.

As coroas de Santa Catharina ficam entre a cabeça do cachopo e a do Pato. 

Este cachopo do S., ou Alpeidão. na extensão proximamente de 5:500 metros, é um banco de areia, que descobre em baixa-mar em diversos logares.

O banco, ou barra que liga os extremos dos cachopos pelo W., fica entre a cabeça do Pato e o Espigão, na máxima largura de 3:700 metros, e forma grande escarcéu com ventos do quadrante do SW., levantando ás vezes um rolo do mar, ou arrebentação, que fecha de um lado ao outro o canal da barra e offerece nessas occasiões perigo em arrostar com elle.


Esta barra é descripta pelo distincto hydrographo e geographo Franzini, no seu Roteiro das costas de Portugal, publicado em 1812, nos seguintes termos:
"A barra de Lisboa (a melhor e única da costa de Portugal, que admitte em todos os tempos a entrada dos maiores navios), é formada pelos baixos seguintes:

A S. 35° O. da fortaleza de S. Julião, na distancia de 280 braças, está situado o extremo NE. de um baixo de pedra, a que chamam o Dente do Cachopo cujo baixo se prolonga 2 milhas e 3 décimos a S. 65° O. com pouco fundo, tendo umas 300 varas de largura, e sobre o qual rebenta o mar, quando é agitado pelos ventos do 3.° e 4.° quadrantes.

Chamam Barra pequena, ou Corredor, o canal que fica entre o sobredito Cachopo e a costa do N., o qual tem sempre desde 8 até 10 braças de fundo na baixa-mar.


Plano hydrográfico do Porto de Lisboa e costa adjacente até ao cabo da Roca,
Marino Miguel Franzini, 1806.
Imagem: GEAEM Instituto Geográfico do Exército

Uma milha a SO. do extremo occidental d'este cachopo, e quasi N.-S. com a fortaleza de Santo António da Barra, está a Cabeça do Pato, que é um baixo-fundo, no qual se não encontra menos de 6 a 7 braças de agua em baixa-mar; mas que não obstante se deve evitar, especialmente em tempos borrascosos, podendo acontecer que na descida de uma grande vaga cheguem a tocar nelle as embarcações, que demandam muita agua.

Ao S. 55° E. de S. Julião, na distancia de uma milha e 4 décimos, está a Torre do Bugio, formada por dois corpos circulares concêntricos, no meio dos quaes se eleva uma pequena torre em que está o pharol, na altura de 63 pés.

Os dois recintos são edificados sobre um baixo de areia muito extenso, que se cobre no prea-mar, deixando a torre perfeitamente ilhada.

O dito baixo, ou Cachopo do Sul, denominado também da Alcáçova, ou Alpeidão, prolonga-se 2 milhas ao SO., e forma o do Norte, um grande canal, a que chamam a Barra Grande, cuja menor largura é de uma milha e um decimo, com 10 a 18 braças de bom fundo, a não ser perto dos dois mencionados cachopos, em que só ha 6 ou 7 braças, as quaes diminuem de repente.

A frota francesa commandada por Roussin força a entrada do Tejo, Pierre-Julien Gilbert, 1837.
Imagem: Fortificações da foz do Tejo

A torre do Bugio deve considerar-se como o extremo SO. do Rio Tejo, por que ainda existe, entre ella e a costa da Trafaria, um pequeno canal (que sempre conserva alguma profundidade, e cuja direcção soffre muitas alteracoes); comtudo, é tão estreito, que na baixa-mar quasi se juntam as areias da costa com as do baixo, formando uma vasta praia, até a sobredita torre.

Este grande baixo forma uma semelhança de enseada aberta ao 3., na qual se acham 5 a 7 braças de fundo.

Estes dois cachopos podem considerar-se reunidos por uma espécie de banco, situado 3 milhas e meia ao SO. das torres de S. Julião e Bugio, o qual corre em direcção perpendicular á barra; porem, como o seu menor fundo é de 8 para 9 braças, segue-se que qualquer embarcação poderá navegar afoitamente por elle em todas as circunstancias.

Logo para dentro d'este banco cresce o fundo regularmente de 15 até 20 braças, que conserva pelo meio da mesma barra".

Esta descripção, muito precisa e exacta, é perfeitamente applicavel á actualidade, em que a profundidade da barra e a disposição dos canaes e dos bancos submarinos teem sido modificadas muito pouco, como terei occasião de mostrar [...]

Costa da Caparica, Bairro de Santo António e Foz do Tejo, ed. Passaporte, 2, década de 1960.
Imagem: Delcampe, Oliveira

Na margem esquerda do Tejo, que principia na ponta da costa, ou bico da Calha, existe um grupo de pedras, conhecido pelo nome de Calhaus do Mar, que fica a duas e meia amarras do areal da Trafaria, que é uma povoação de pescadores, hoje muito concorrida na época balnear.

Trafaria — Vista geral da praia, ed. J. Quirino Rocha, 06, década de 1900.
Imagem: Delcampe

O seu bello areal estende-se até o bico da Calha, continuando para o S. na costa oceânica.


(1) Loureiro, Adolfo, Os portos maritimos de Portugal e ilhas adjacentes, Vol III parte 1, Lisboa, Imprensa Nacional, 1906

Leitura relacionada:
Erosion policy options for the Costa da Caparica

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Arte xávega na Costa da Caparica a Património Imaterial

A Arte-Xávega é uma técnica de pesca tradicional que consiste na utilização de uma rede de cerco envolvente que é lançada no mar e depois puxada para terra.


O mar como patrimonio, exposicão: arte-xávega na Costa da Caparica, 2015.
Imagem: Francisco Silva

A Arte, como é designado o conjunto constituído por cordas, alares e saco, é lançada ao mar a partir de uma embarcação, deixando em terra a ponta da corda designada por banda panda. Depois de largar a rede, a embarcação regressa à praia trazendo a outra ponta de corda, designada por banda barca.

Logo que a segunda corda chega à praia inicia-se o processo de alagem em simultâneo de ambas as cordas, puxando para a praia a rede cuja boca do saco se mantém aberta através da utilização de boias e de pesos.

Praia do Sol, C. Caparica, ed. José Nunes da Silva, s/n
Imagem: Delcampe

Esta técnica de pesca, praticada também em outras regiões do país, foi trazida para a Costa da Caparica por comunidades piscatórias de Ílhavo e Olhão, responsáveis pelo povoamento do lugar. 

Adaptando-se às praias e ao mar da Costa da Caparica, a Arte-Xávega adquiriu características específicas que a distinguem de práticas semelhantes utilizadas em outras regiões do país.

Considerada como arte de cerco envolvente de puxar para terra a Arte-Xávega tem uma origem remota que segundo alguns autores remonta à pré-história, estando documentada em diversas regiões do Mediterrâneo mas também no Índico. 

Barco lua na praia de Cox's Bazar, baía de Bengala, Bangladesh.
Imagem: WATEVER

Em Portugal a utilização das redes da Arte-Xávega nos moldes que atualmente se conhecem remontam ao século XVIII e terão sido introduzidas por armadores andaluzes e catalães nas praias do Algarve e da Costa Nova, na sequência da proibição em 1725 da pesca de arrasto nas praias da Catalunha.

Na Costa da Caparica as condições naturais necessárias à utilização da Xávega: praia aberta e sem obstáculos, fundos de areia sem rocha e abundância de peixe, associada à proximidade da foz e estuário do Tejo, atraíram companhas de pescadores oriundos de Ílhavo e Olhão que aqui vinham pescar sazonalmente tirando partido do mar mais calmo e da proximidade do mercado da capital para o escoamento do pescado, principalmente sardinha.

Costa da Caparica, Entrando no mar, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, cliché João Martins

A partir de 1770 ter-se-ão fixado definitivamente na Costa as primeiras companhas oriundas de Ílhavo dando início ao povoamento do lugar, até então despovoado e desprezado pelas populações locais, em parte devido à insalubridade derivada da existência de pântanos e juncais que dominavam a paisagem de areal da costa atlântica da freguesia de Caparica.

Como forma de dar resposta a algumas das necessidades da população que então passou a constituir a povoação da Costa os mestres das companhas organizaram o "Cofre dos Quinhões das Companhas", para o qual cada companha contribuía conforme o pescado vendido, com o rendimento do cofre se pagava anualmente ao “cirurgião”, ao padre e ao escrivão.

Costa da Caparica, Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Mário Novais, 1946.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

O muro de cemitério e a sua pequena capela, assim como o poço que abastecia a população de água potável, foram igualmente pagos com dinheiro do "Cofre", que financiava as festas em honra da padroeira, Nossa Senhora do Rosário, a manutenção da capela e o apoio aos mais desvalidos da comunidade.

Praia do Sol, C. Caparica, ed. José Nunes da Silva, s/n, Poço de Bomba.
Imagem: Delcampe

A organização social destas primeiras comunidades locais baseava-se em laços familiares e laborais, sendo que cada companha constituía como que uma família alargada, num segundo nível.

Os locais de origem marcavam de forma mais profunda a separação social entre ílhavos e algarvios, que ocupavam espaços territoriais diferenciados, cuja linha divisória (atual Rua dos Pescadores) separava os descendentes dos ilhavenses, a norte, dos algarvios, a sul.

Identificam-se entre alguns pescadores e pescadoras indivíduos oriundos do Alentejo que se fixaram na Costa da Caparica e desenvolveram a sua atividade em torno da pesca.

Costa da Caparica, Almada, Passaporte, 69, Pescadores transportando as redes.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Acerca da origem dos membros da comunidade piscatória importa ainda referir que a necessidade de força de trabalho utilizada na Arte-Xávega contribuiu para integrar na comunidade muitos indivíduos de origens desconhecidas que procuravam abrigo e trabalho nas companhas da Arte-Xávega.

Eram chamados barraqueiros por habitarem nas barracas da companha, utilizadas para guardar as redes e outros apetrechos de pesca. Esta realidade mantém-se atual, sendo que continuam a habitar nos alvéolos dos pescadores da Costa vários pescadores de origem africana.

A Praia do Sol, O transporte da rede e a faina, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 105.
Imagem: Delcampe

Contudo, na sua maioria, os membros da comunidade piscatória são naturais da Costa da Caparica, sendo a pesca uma atividade que se mantém no âmbito das famílias e um recurso perante a falta de outras oportunidades de ocupação profissional.

A Arte-Xávega seria então o principal método de pesca utilizado de entre outras artes tradicionais de cerco e alar para terra como o Chinchorro, a Rede-Pé, a Mugeira ou o Estremalho, artes que foram proibidas por terem malhagens reduzidas sendo por isso consideradas muito predatórias.

A pesca com a Arte-Xávega, mais precisamente a condução das redes, fazia-se com recurso a embarcações designadas Saveiros ou Barcos de Mar, trazidos pelos pescadores da Beira Litoral (Mira, Torreira, por exemplo onde ainda hoje são utilizados).

Barco de Mar, companha de S. José, praia de Mira.
Imagem: ahcravo's Blog

Eram movidos a remos por tripulações com cerca de vinte remadores a bordo, contudo as condições do mar da Costa da Caparica levaram à transformação dos Saveiros em embarcações mais pequenas e com um desenho ligeiramente diferente a que se chamou Meia-lua (por apresentarem as bicas simétricas enquanto o Saveiro apresenta a bica da proa mais elevada do que a da popa) ou Saveiro da Costa.


Em comum ambas as embarcações apresentavam o fundo plano, que permitia a manobra deslisando sobre a areia, bem como a popa e a proa elevadas para vencer a rebentação das ondas quer à vante quer à ré adaptando-se ao vale da onda.

O meia-lua, de dimensões variáveis consoante o número de remos que levava: dez, oito ou seis, embarcava uma tripulação composta pelo arrais, espadilheiro (manobrava o remo da espadilha colocado à popa que servia de leme), calador (responsável por "meter" e largar a rede), rapaz do pau da corda e os remadores, um por cada remo, conforme a dimensão da embarcação.

Pormenor da praia da Caparica, ed. Fotex, 144
Imagem: Delcampe

A partir de meados do século XX os meias-luas vão sendo substituídos por embarcações mais pequenas designados por "barco de duas bicas", que apresentavam ainda a popa e a proa levantadas mas com as bicas mais baixas, ainda movido a remos mas de mais fácil manobra e adaptado a outros tipos de pesca para além da Arte-Xávega.

Costa da Caparica, Saindo para o mar, ed. Centro de Caridade N. Sra. do Perpétuo Socorro, 173.
Imagem: Delcampe

Na Costa da Caparica a adaptação de motores aos barcos da Arte-Xávega iniciou-se na década de setenta do século XX. Fazia-se nos meia-lua através de um "poço" à popa, onde o motor era introduzido na vertical. Isso obrigava a que, na chegada à praia, o motor tivesse de ser levantado para não bater no fundo.

No sentido de aumentar a segurança e a estabilidade da embarcação, bem como torná-la mais versátil para outros tipos de pesca, foram sendo introduzidas as Lanchas ou Chatas.

Costa da Caparica, Puxando a barca para a pesca,
ed. Centro de Caridade N. Sra. do Perpétuo Socorro, 613.
Imagem: Delcampe - Bosspostcard

A mecanização da alagem através da adaptação de aladores à tomada de força dos tratores, introduzidos na década de setenta do século XX para apoiar as manobras das embarcações e o transporte do peixe, resulta de várias experiências realizadas por alguns armadores locais e generaliza-se a partir de finais da década de oitenta do século XX.

Costa da Caparica, Companha São José, de volta à faina, 2015.
Imagem: Francisco Silva no Facebook

Segundo a opinião de alguns pescadores, recolhida em contexto de diálogo informal, a mecanização dos barcos, do transporte do peixe e da alagem da rede é condição determinante para a sobrevivência da Arte-Xávega na Costa da Caparica, pois já ninguém se sujeitaria ao esforço necessário para realizar manualmente e à força de músculos todas as tarefas necessárias durante uma jornada de pesca.

Costa da Caparica, Pôr do Sol, ed. Passaporte, s/n.
Imagem: Delcampe

A faina da pesca realizada através da Arte-Xávega na Costa da Caparica, sendo praticada no mar e na praia constitui uma atração turística que cativa muitos dos frequentadores da praia nomeadamente banhistas que principalmente durante os meses de verão acorrem em grande número para observar a chegada à praia da rede e a escolha do peixe.

Nesse sentido apesar da proibição desta prática da pesca nas áreas concessionadas entre 09:00 e 19:00 horas, imposta durante a época balnear, alguns concessionários viabilizam o acesso dos tratores através das concessões no sentido de possibilitar a prática da Arte-Xávega.

A possibilidade de comprar peixe na praia diretamente aos pescadores constitui outro atrativo que contribui para a valorização da Arte-Xávega na Costa da Caparica enquanto recurso turístico, para além de favorecer o rendimento das companhas.

Encontram-se jovens de ambos os sexos integrados nas companhas da Arte-Xávega, tendo como principal objetivo auferir de algum rendimento monetário. 

Apesar de se observar alguma falta de interesse por parte das novas gerações em dar continuidade à atividade piscatória na Costa da Caparica, observa-se uma renovação das companhas entre as quais se encontram atualmente três governadas por “donos” com idades na casa dos quarenta anos ou menos.

Nesse sentido considera-se que os conhecimentos e experiência necessária ao governo da Arte, principalmente no que diz respeito à construção e manutenção das redes imprescindíveis à continuidade da prática da Arte-Xávega e sem qualquer viabilidade de produção industrial, se encontram minimamente salvaguardados e com possibilidade de terem continuidade e viabilidade económica.

Costa da Caparica, As redes, aguarela de Manuel Tavares, 1965.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

O património imóvel associado à comunidade piscatória da Costa da Caparica e por inerência à prática da Arte-Xávega relaciona-se com os locais de arrumação dos aparelhos e artes de pesca, bem como a habitação.

Contudo, em virtude do crescimento urbano da cidade da Costa da Caparica, observaram-se a partir da primeira metade do século XX transformações profundas que condicionaram a atual concentração habitacional da comunidade piscatória.

Os primeiros locais de fixação de população na Costa da Caparica dividiam-se em dois núcleos separados pelo traçado da atual Rua dos Pescadores — as famílias de pescadores oriundos do Algarve a norte, e as de Ílhavo a sul.

Costa da Caparica, Vista parcial e Rua dos Pescadores, ed. Passaporte, 72, década de 1960.
Imagem: Delcampe

As habitações primitivas da Costa eram construídas em tábuas e estorno (gramínea que se desenvolve nas dunas).

O primeiro bairro em alvenaria foi construído a norte da Rua dos Pescadores em 1884 por iniciativa do deputado Jaime Artur da Costa Pinto, com a finalidade de alojar as famílias de pescadores cujas habitações haviam sido destruídas por um incêndio.

Costa da Caparica, As novas edificações, 1887, desenho de João Ribeiro Cristino
Imagem: Hemeroteca Digital

Contudo, a partir do primeiro quartel do século XX, com o desenvolvimento da Costa da Caparica enquanto estância balnear e subsequente urbanização da zona norte da povoação as famílias dos pescadores que se aí se haviam instalado foram de alguma forma "empurradas" para sul, onde surgiu o bairro de barracas designado por "Rua 15".

Aspecto do bairro piscatório da Costa da Caparica, 1938.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

A partir da década de sessenta do século XX, com a construção do Bairro dos Pescadores, integrada nas medidas de fomento da pesca tradicional promovidas pelo Estado Novo através do almirante Henrique Tenreiro e da Junta Central da Casa dos Pescadores, sedeada na Costa da Caparica, a maioria dos pescadores da Costa da Caparica passa a dispor de habitação no bairro cuja construção se desenvolverá em três fases.

Acerca da habitação dos pescadores foi possível perceber que a proximidade da habitação ao mar é uma condição determinante para a viabilidade da atividade da pesca, pois a decisão acerca da saída para a faina depende da observação do estado do mar, pelo que a proximidade da praia é determinante na decisão dos mestres e na possibilidade de chamar os camaradas para a faina.

Importa referir que tradicionalmente um dos elementos da companha, geralmente uma criança, tinha a função de "chamador": percorria as habitações dos pescadores gritando "chama o arrais" convocando assim os pescadores para a faina.

Uma das zonas referidas pelos pescadores mais idosos, como local de referência para a comunidade piscatória da Costa da Caparica situa-se onde se encontra o Hotel Praia do Sol.

A Praia do Sol - O Hotel, década de 1930
ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia.
Imagem: Delcampe

Esse local era designado "o Alto" onde se concentrava um núcleo habitacional e onde se via o mar. Quando os alcatrazes caiam mergulhando no mar era sinal de sardinha.

Em data não determinada, quatro famílias da Costa da Caparica foram fundar a povoação da Fonte da Telha, onde se juntam também duas famílias da Charneca.

A Fonte da Telha (Costa da Caparica, Praia do Sol), Cruz Louro, 1937.
Imagem: Cruz Louro

A transformação determinante na história da Costa da Caparica e da sua comunidade piscatória opera-se a partir da década de vinte do século passado com a classificação de estância balnear.

As famílias de pescadores passam então a alugar as suas casas aos "banhistas" habitando durante o verão nas barracas de apoio à pesca, alguns pescadores durante esse período passam a trabalhar como banheiros nas praias concessionadas.

A Arte-Xávega, os seus pescadores e principalmente os barcos meia-lua, constitui uma atração turística, passando a imagem do pescador e do barco meia-lua a estar ligada à promoção turística da Costa como "imagem de marca".

Costa da Caparica, barco meia-lua, Adriano Sousa Lopes, década de 1930.
Imagem: Flickr

Diversos fotógrafos registaram imagens da faina piscatória na Costa da Caparica, sendo que algumas dessas imagens foram publicadas em postais e folhetos turísticos.

Artistas plásticos e fotógrafos, entre os quais se destacam José António Passaporte, João Martins e Júlio Dinis, registaram os métodos de pesca então utilizados na Arte-Xávega constituindo um acervo que permite documentar a Costa da Caparica e das suas gentes durante a primeira metade do século XX.

Importa ainda referir que não se realizou nenhum recenseamento da comunidade piscatória, havendo contudo indícios de que algumas pessoas que trabalham na pesca habitem em outras localidades do concelho, nomeadamente a Charneca e o Monte de Caparica, sem esquecer a Trafaria, povoação piscatória cuja ocupação antecede a Costa da Caparica e onde residem muitos pescadores que também pescam e integram as companhas da Costa.

As novas tecnologias de comunicação e a facilidade das deslocações com recurso a meios de transporte próprios terá introduzido algumas alterações ao nível dos locais de habitação dos pescadores, contudo o caracter familiar da atividade contribui para que na sua maioria a classe piscatória habite na Costa da Caparica.

As principais manifestações religiosas da comunidade piscatória da Costa da Caparica já não se realizam, contudo permanecem na memória coletiva das populações locais demonstrando a religiosidade própria dos pescadores que, não frequentando a igreja, possuem uma forte devoção associada à proteção que esperam receber.

As principais celebrações consistiam numa procissão em honra de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da Costa da Caparica, durante a qual era transportada uma miniatura de meia-lua cuja tripulação é composta por Jesus Cristo e os apóstolos (imagem conservada na primitiva igreja paroquial).

Costa da Caparica, Procissão da Senhora do Rosário, Revista Ilustração, 1937.

A Nossa Senhora do Cabo Espichel constituiu outra das devoções da comunidade piscatória da Costa que, até às primeiras décadas do século XX participava regularmente no Círio do Cabo, percorrendo parte do percurso pela praia.

As práticas de pesca tradicional utilizadas na Costa da Caparica estão dependentes de um conjunto de fatores naturais que condicionam o sucesso da atividade e os riscos associados à navegação que podem colocar em perigo a integridade física dos pescadores.

Costa da Caparica, Almada, Passaporte, 60, Arribação dos pescadores após o lançamento das redes

Nesse sentido, embora seja difícil aferir as crenças e devoções particulares de cada pescador, alguns dos aspetos referidos no Anexo I em 19.3. [ver anexos], nomeadamente a pintura de um olho de cada lado da proa de algumas embarcações assim como os nomes que lhes são atribuídos, constituem no nosso entender aspetos que caraterizam as manifestações de Património Imaterial associadas à Arte-Xávega na Costa da Caparica. (1)



(1) MatrizPCI: Arte-Xávega na Costa da Caparica

Anexos:
MatrizPCI — Chata
MatrizPCI — Arte
MatrizPCI — Bibliografia
MatrizPCI — Multimédia

Temas:
Arte xávega
Saveiro meia Lua
Costa da Caparica