quinta-feira, 1 de julho de 2021

A construção do Barco do Mar por Manuel Fidalgo

A obra “Barco Xávega – Tecnologia da sua construção” de Manuel Fidalgo descreve com pormenor todas as fases de construção do Barco-do-Mar, uma embarcação que não tem leme, e que é orientada por remos, e está preparado para fazer até 5 viagens por dia. É utilizado por uma companha constituída por 8 a 12 homens.

Proa e ré do Barco do Mar.
Manuel Fidalgo, Barco da Xávega: Tecnologia da sua Construção...

(legenda da imagem acima)
1) Bica 2) Painel 3) Golfiões [mâozinhas] 4) Coberta [cachulo, céu da proa] 5) Boçardas 6) Arganéu 7) Lavaças 8) Escalamão [tolete] 9) Descanso da muleta 10) Armelas.

Estes barcos são utilizados essencialmente no verão e outono, indo ao mar raramente durante os meses de inverno.

A construção deste barco é uma cadeia operatória constituída por 18 fases. Contudo, esta cadeia foi revista com a motorização do barco. O motor necessário para este barco era diferente dos utilizados até então, foi necessário um rombo até à ré para o encaixar sem existir risco da água entrar. Este motor é a gasolina ou gasóleo e debita de 40 a 60 HP. Os remos do barco são assentes em labaças, colocados perto da proa de modo a deixar mais espaço livre para manear a rede.

Os estaleiros onde estes barcos são construídos mudaram-se de junto à praia para locais onde existisse a matéria-prima necessária para a construção dos barcos, isto é, a madeira. Cada barco demora cerca de um mês a ser construído sem a pintura.

O barco é feito de pinheiro bravo ou manso e alguns construtores utilizam ainda o carvalho para a roda da ré. O pinheiro bravo é fundamental para as tábuas de fora e do fundo do barco. As árvores de onde esta madeira é reti-rada devem ter, pelo menos 3 mil quilos, e devem possibilitar tirar tábuas de, pelo menos, 10 metros. São também feitas de pinheiro bravo a roda da proa, o forcado da proa, o forcado da ré e os bancos.

Pormenor da praia da Caparica, ed. Fotex, 144
Delcampe

1º. Escolha, serração e transportes das madeiras

De pinheiro manso são feitas as 16 cavernas e a roda da popa para os que não utilizam o carvalho. O pinheiro manso é escolhido quanto mais tortas forem as suas raízes e o tronco, este deve ter, pelo menos, 2 mil quilos. Do tronco do pinheiro são feitas as dragas, os bordos, as falcas, entre outras peças mais pequenas.

2º. Pregar as estacas

Num barco de 10 metros são necessárias 7 estacas de eucalipto para assentar a tábua da quilha e dos fundos. Estas têm comprimentos diferentes e são cortadas com base no “pau de pontos”, instrumento primordial na sua construção. São adicionadas ainda pequenas ripas ou tábuas para auxiliar esta construção. O comprimento do barco é que vai determinar a sua largura e a quantidade de estacas necessárias, como as suas dimensões e a distância entre estas e o tesado do barco. As tábuas da quilha e do fundo devem ser resistentes e ter a espessura necessária para suportarem dez anos de desgaste e corrosão. A utilização da chapa metálica para cobrir o fundo do barco não tem sido uma boa opção porque a areia que se acumula entre o metal e a madeira diminui a duração de vida do casco.

"Um dos instrumentos mais importantes na construção de um barco Xávega é o “pau de pontos”, um aparelho, que substitui o metro ou a fita métrica, sendo que todos os componentes do barco têm obrigatoriamente de obedecer ao pau de pontos. Usualmente, um pau de pontos consiste numa vara de metro e meio, de quatro faces iguais, aplainada, com cortes, ou ranhuras quase impercetíveis em todos os lados e a alturas diferentes de leitura só acessível aos carpinteiros navais da mesma arte. Associados, às ranhuras, há traços a lápis, com (ou sem) números, que também entram na medição das peças a construir."

Mestre Gadelha no estaleiro do Seixo segura o pau dos pontos.
Ricardo Salomão

3º. Pregar as tábuas da quilha, dos fundos, e respetivos braços

Início da construção do Saveiro, Paul Johnstone.
An unusual portuguese fishing boat

As tábuas da quilha e de aresta devem ter 10 metros de comprimento e 5 ou mais centímetros de espessura. Nas tábuas é exercida uma forte tensão de modo a estas atingirem a curvatura necessária, isto é feito com base no macaco, grampos e gatas. Aqui é necessário um elevado esforço físico. As dimensões das três cavernas da proa não são iguais às três da ré e as do meio são todas diferentes. Para a realização das cavernas é necessário limpar o pinheiro e as raízes, desmancha-las com a motosserra, fazer a medição com o pau de pontos e cortar e afarizar até esta estar concluída. Quando as 16 cavernas estiverem concluídas, a roda da proa e a da ré, os forcados e os braços também já devem estar operacionais para de seguida o Mestre dar início à construção, pregando as cavernas da proa e da ré à tábua da quilha e às tábuas do fundo, e posteriormente as cavernas do meio, os braços e a roda da quilha e da ré.

4º. Acavernar, pregar a roda da proa e a roda da ré os forcados e os braços
5º. Cintar o barco com as tábuas de verdegar
6º. Pregar os foliamentos no bico da proa e no bico da ré

Alves Redol e José Cardoso Pires, Fonte da Telha, 1957.
Hemeroteca Digital

Após essa operação vão ser pregadas às cavernas as primeiras tábuas do lado, as tábuas de verdegar. Depois o foliamento que é uma tábua de bico que se prega às cavernas e ao bico da proa e à roda da ré.

7º. Pregar os bordos, a capa da proa, as tábuas de fechar e a entre dois 

No final deste processo é necessário revestir o barco com tábua com as medidas dadas pelo pau de pontos. Primeiramente são pregadas as tábuas dos bordos, de seguida a capa da proa, as tábuas de fechar e as entre-dois.

8º. Dragar, pregar bancos e a entre dois do fundo
9º. Pregar as falcas

É necessário dragar o barco, isto é, pregar as tábuas de dentro, assentar os bancos e a tábua entre-dois do fundo. A draga é colocada acima das tábuas dos lados e dos foliamentos e abaixo das tábuas de forro. Para uma embarcação de 10 metros a dra-ga deve ter 7,5 metros por 25 centímetros de largura e 3 centímetros de espessura. O banco de remar possui duas partes, o banco e o grosso.

10º.Pregar os forros

De seguida são presos os forros, isto é, duas tábuas que se prendem às cavernas acima das dragas. Estes têm 8 metros de comprimento, 16 centímetros de largura e 2,5 de espessura. É aqui que são presas as labaças ou remadouros de metal onde irão depois assentar os remos.

11º. Pregar as labaças
12º. Pregar a capa da proa
13º. Fechar o barco

O passo seguinte é pregar as labaças e a capa da proa que serve para tapar os últimos buracos desta. Ao assentamento das últimas tábuas dá-se o nome de fechar o barco. Este fica pronto para a calafetagem e para pintura.

14º. Calafetar
15º. Abrir o buraco do motor

Em seguida é aberto o buraco onde irá encaixar o motor e é feita a calafetagem. As zonas calafeadas são enchidas por breu. As ferragens utilizadas no barco são os pregos e as cavilhas de ferro e madeira.

16º. Pintar
17º. Transportar para a praia

Por fim, o barco é pintado, por norma de três cores à escolha, o branco deve estar sempre presente nos costados, na proa e na ré. Os barcos possuem símbolos relativos à companha a que pertencem.

18º. Remos

Os remos são feitos de eucalipto e servem para equilibrar o barco quando as ondas são de maior dimensão. Servem, também, para substituir o motor quando falha. O remo tem 8,4 metros, tendo a pá menos de 20 centímetros

Construído o barco-do-mar e antes de começar a operar era necessário proceder à sua bênção e para esse feito, e para além do Padre da freguesia que se deslocava à praia e dentro do barco fazia a pequena cerimónia religiosa da bênção, era escolhida uma jovem de famílias de pescadores como madrinha da embarcação. (1)


(1)  O Barco do Mar, Museu de Espinho [Manuel Fidalgo, Barcos da Xávega: Tecnologia da sua Construção. Lisboa: Edições Colibri e INATEL, 2000]

Artigos relacionados:
Barcos meia-lua (Aveiros, não Saveiros...)
A construção do Barco do Mar por Manuel Leitão
A construção do Barco do Mar por Paul Johnstone
Os nomes dos barcos (1 de 3)

Leitura relacionada:
Andreia Leite, Estaleiros e embarcações, A salvaguarda do património, 2004
Manuel Leitão cf. Hernâni A. Xavier, A Ascendência dos barcos tradicionais portugueses, 2008

Paul Johnstone/A. F. Tilley, An Unusual Portuguese Fishing Boat, Mariner’s Mirror, Vol 62, no. 1, 1976, p. 15 e seg. cf. Hernâni A. Xavier, A Ascendência dos barcos tradicionais portugueses, 2008

A construção do Barco do Mar (apontamentos diversos):
Paul Johnstone, The Sea-Craft of Prehistory, 1988
Hernâni A. Xavier, A Ascendência dos barcos tradicionais portugueses, 2008
Octávio Lixa Filgueiras, Barcos de Portugal, obras selecionadas
Senos da Fonseca, Embarcações que tiveram berço na laguna
O meu barco da Arte Xávega
Terras de Antuã - Histórias e Memórias do Concelho de Estarreja
Arte Xávega em Espinho