domingo, 19 de janeiro de 2020

Os nomes dos barcos (1 de 3)

Sob o mote: "Gratas recordações. O recorte da silhueta do meia-lua sobre as ondas do mar prateado numa tarde de julho distante,

Pormenor da Praia de Caparica, ed Fotex 149 .
Delcampe

ou, no cole, reflectindo no espelho da vaza..."

Delcampe

Saveiro

Num apontamento anterior, Barcos meia-lua (Aveiros, não Saveiros...), referimos a Mesa do Tragamalho, e a maneira como as embarcações ílhavas aí são referidas.

Embarcações registadas e avençadas na repartição do Tramagalho, Lisboa, 1860.
Hemeroteca Digital

Saveiro é, genéricamente, a corruptela de Aveiro e não refere como é comumente aceite um tipo de embarcação em madeira, de fundo chato, para a pesca do sável etc. mas sim a embarcação típica da região de Aveiro.

Barco no Tejo com mau tempo, Emeric Essex Vidal (1791-1861), 1833.
artnet

Do mesmo modo, por exemplo, ovarina, mulher natural de Ovar, vendedeira ou vendedora de peixe, por via da espressão popular Ò varina! derivou no termo varina, e a naturalidade dos ílhavos nos ilhos, os aveiros se mudaram em saveiros.

Recomenda-nos atenção e reflexão a Dr.ª Ana Maria Lopes [Barco do mar "versus" barca da arte xávega], cujo trabalho muito apreciamos e a quem, não raras vezes, recorremos. Tomando nota prosseguimos.

Se alguém designa o bote, a chata, a lancha etc. como saveiro, não nos interessa. Para nós, saveiro, ou aveiro, é uma embarcação de pesca artesanal de mar ou de ria (fluvial), típica da região de Aveiro,  construída em madeira, de fundo chato, com rodas de prôa e de popa acentuadas, propulsionada a remos na faina da pesca, ou a remos e a vela de pendão, e no caso com leme de xarolo provisório, noutras deslocações.

Saveiro, alijo e savara, gravura, João Pedroso, 1860.
Hemeroteca Digital

Saveiro, refere a origem da embarcação, independentemente de outros significados: registos nas capitanias e delegações, tradição, opiniões. Só assim o termo saveiro tem sentido definido, consistente, imutável.

Saveiro da Costa.
Caderno de Todos os Barcos do Tejo, tanto de Carga e transporte como d'Pesca, por Joao de Souza, 1785.

Portanto, para nós, o termo saveiro (s.m.) é sinónimo de aveiro (s.m., neste caso), e é nesse sentido que o iremos utilizar.

Meia-lua

A designação de meia-lua (adj.) refere a forma do barco independentemente da sua origem. Conhecemo-lo construido nos mais diversos materiais, naturais, segundo a civilização e a região onde é utilizado, normalmente na pesca oceânica com as mais diversas técnicas e artes.

Setubal, Castello de S Filippe, diferentes prôas de barcos de mar ílhavos na praia, c. 1868.
Hemeroteca Digital

Coincidentemente, na costa portuguesa o meia-lua é originário da região Aveiro, daí o uso da expressão saveiro meia-lua para designar um certo tipo de embarcações. 

Costa da Caparica (detalhe), Penha Lopes, 1918-1922.
Arquivo Municipal de Lisboa

Segundo alguns autores [p. ex. J. A. Neves Cabral, Meia-Lua da Costa de Caparica..., Junta Distrital de Setúbal, 1969], o que diferencia o meia-lua do saveiro que não tem essa forma é a curvatura do casco do primeiro, que se desenvolve ao longo do comprimento da embarcação e que se funde gradualmente na altura das rodas de proa e de popa, simetrica ou assimetricamente conforme a região do país e o mar a que se destina, dando-lhe um tosado imponente e gracioso, inatingível pelo saveiros de fundo e verdugos planos na quase totalidade do comprimento da embarcação.

Será o anterior válido para embarcações pequenas mas, segundo nós, não para todas as de mais de 10 metros, pois quando varado no areal, o sustentáculo da arqueação recorre à resistência dos materiais, e o peso permanente da proa e da popa e do casco não assente, nas embarcações mais frágeis, acabaria por arruiná-las.

A forma do meia-lua é o que hoje se refere como design funcional. O arqueado, reverte em estrutura, aumentando a resistência da embarcação distribuindo e minimizando a força dos impactos das ondas e do peso da própria embarcação nos momentos em que esta não é suportada pela água num mar agitado. O mesmo arqueado aumenta a navegabilidade na ondulação junto à praia mantendo a embarcação sempre acima da rebentação das ondas.

J. A. Neves Cabral, Meia-Lua da Costa de Caparica..., Junta Distrital de Setúbal, 1969

Com isto a quantidade de materiais usados na contrução do meia-lua são adaptados, por um lado, ao tamanho do mesmo, para suportar a sua própria estrutura, e, por outro lado, ás condições em que é utilizado, para resistir ás condições externas, tanto em repouso como em actividade. 

Saveiro da costa norte, "Sempre vim", 1920.
Museu de Marinha

A forma e o tosado nos meia-lua, que se acentua de norte para sul de Portugal, atingiu na Costa da Caparica o máximo da sua expressão, resultando na elegante embarcação cujos arqueado, verticalidade, e quase igualdade da altura das bicas a torna inconfundível, mas não exclusiva.

Barco de mar

Quanto à funcionalidade, o típico barco de mar, ou da arte (se referirmo a xávega), no caso, é uma embarcação de uma certa robustez com morfologia adaptada à pesca no mar e às manobras adequadas a essa actividade segundo as características do litoral onde é executada.

Arrais Ançã perscrutando o mar.
200 anos da Costa-Nova

Este, barco de mar, na costa portuguesa, é um saveiro. E se quisermos ser breves, desde as bateiras da costa vareira até à barca da arte xávega do Algarve, temos meias-lua de norte a sul de Portugal.

Costa da Caparica, meia-lua na vaza ao pôr-do-sol.
Delcampe

Portanto os barcos típicos tradicionais da Costa da Caparica são, ou foram, barcos de mar, saveiros na maior parte, e meias-lua se construidos com a arqueação típica até à década de 1910, com golfiões à ré, e depois, cerca de 15 a 20 anos, quando as dimensões se reduzem e aproximam dos oito metros de comprimento.

(Instantaneos do sr. Alberto Lima)
Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, pescadores lançando uma embarcação ao mar, década de 1900.
Arquivo Municipal de Lisboa

Os maiores, de pouco mais de 10 metros, construídos na segunda década do século 20 e mesmo depois, têm o tosado mas não o arqueamento.

Costa da Caparica, Saíndo para a pesca, ed. Lif , 2
Delcampe

Os menores, de cerca de 5 metros, mais recentes, meias-lua ditos "de bicas curtas" ou "sem proa adunca",  são variantes dos meias-lua que tentamos definir no nosso purismo, que apesar de sincero arrisca ignorância.

Costa da Caparica, colecção Passaporte-Loty n° 66, Pescadores arrastando o seu barco, c. 1960.
Delcampre

Poderiamos dizer, os primeiros antecipam-no. Os segundas dele descendem. Mas seria falso.


 Rui Granadeiro, 19 de janeiro de 2020


Tema:
Saveiro meia lua

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