domingo, 11 de dezembro de 2022

Capuchos de Caparica

Como é sobejamente sabido, mas convém aqui resumir apenas para mais fácil enquadramento temporal, a criação da custódia (só mais tarde Província) da Arrábida teve a sua origem no eremitério na serra do mesmo nome, ocupado por Fr. Martinho de Santa Maria após doação do 1º duque de Aveiro, D. João de Lencastre, em 1539. A custódia afirmou‑se a partir de 1542 com a cedência, pelo mesmo duque, dos terrenos na encosta da serra da Arrábida, que contou com o acompanhamento inicial de Fr. Pedro de Alcântara, que aí viveu por 1541‑1542 – altura em que a ermida passou a convento – e em 1549‑1551.

Frei Martinho de Santa Maria (detalhe), Convento de Santa Maria da Arrábida.
IPTI


Esta criação veio, por um lado, despoletar um processo de aprofundamento e alargamento da influência desta «estreitíssima observância franciscana» e acabou por conduzir à instituição e aprovação canónica, em 1560, da Província da Arrábida, ao mesmo tempo que evidenciou a persistência de tensões que movimentos de reforma anteriores não tinham plenamente vencido, assim como a continuidade de anseios espirituais focados numa maior interioridade e menor expressão exterior (...)

De facto, a sua «Patente, em que ordenava ao nosso Custodio, e mais Religiosos seus súbditos, que tirassem os remendos, capuchos e corda, e guardassem na forma dos Habitos a mesma que os da Recoleição», provocou nos frades capuchos «grande desconsolação» e reação.

As polémicas que daí resultaram, as subsequentes nomeações de custódio e guardiães dos 3 conventos, o breve papal que impunha a mudança de hábito e a bem sucedida intercessão do Infante D. Luís para que mantivessem o seu hábito, remendos e capucho («ainda que este mais curto»), vieram a contribuir para o alargamento da custódia e subsequente passagem a Província.

Roque Gameiro

De facto, a resistência dos frades ao intento de Fr. André da Ínsua e ao breve papal, com a proteção do Infante D. Luís e de D. João de Lencastre, fê‑los vencedores do intento de manutenção do hábito e custódia. E porque o número de frades era já superior à capacidade dos três conventos, aceitaram a «oferta, que lhe fazia Lourenço de Sousa, Aposentador mor, para efeito de fundar um convento com o título de N. Sra da Conceição», numa quinta junto a Mofassem (Murfacém), em 1550.

Deste modo, o convento da Caparica veio a ser o quarto convento, a que se seguiram outros posteriormente. Recorrendo às palavras do mesmo cronista da Província, Fr. António da Piedade, na conhecida passagem do seu Espelho de Penitentes sobre esta fundação, «alguns religiosos da observância», quando Fr. André da Ínsua os obrigou a tirar os remendos e o capucho, quiseram manter‑se na custódia, «ou atraídos da suavidade que exalava a virtude neste ameno jardim da Santidade, ou para moderarem os Capuchos as desconsolaçõens que lhe causara o decreto...».

Convento dos Capuchos, Cruz Louro, 1933.
Delcampe

Contudo, como esse lugar em Mofassem (Murfacém) era «tão pobre e pequeno» e veio a revelar‑se também doentio (como se veio a revelar também o de Palhais) e de pouco sossego por ter próximo um poço de que se servia o povo, Lourenço Pires de Távora, «grande devoto e amante nosso, fidalgo tão ilustre», decidiu pôr «em execução», em 1558, a construção do convento – quando era custódio, pela segunda vez, Fr. Luis Delna –, «em pouca distancia do primeiro, em lugar porèm mais sadio».

E fê‑lo «à sua custa», conseguindo que ficasse pronto no mesmo ano. Todos estes factos são suficientemente conhecidos e divulgados nos estudos e informações sobre este convento, mas é importante tê‑los aqui presentes, para enquadrar alguns matizes das redes religiosas e culturais que de seguida apresentarei.

Além do conhecido patrocínio – e proteção – de Lourenço Pires de Távora na fundação do convento e dos seus frades, também conseguiu, quando foi embaixador de D. Sebastião em Roma, obter do Papa Pio IV, em 30 de setembro de 1560, um Breve que conferia aos fiéis que ouvissem missas celebradas no altar‑mor da Igreja do convento «graças e indulgências» como se as «ditas Missas se celebrassem nos Altares das Igrejas de S. Gregorio na cidade de Roma, de S. Lourenço e S. Sebastião extra muros...».


Congratulação de Lourenço Pires de Távora ao Pontífice Pio IV.
Internet Archive

Não era pequeno privilégio – que também revela a capacidade de influência deste embaixador em Roma, nas palavras de Fr. António da Piedade, «com extremoso affecto venerava o Summo Pontifice a Lourenço Pires, pelas singulares virtudes de que era dotado».

Mas não deixa de ser relevante que estas «graças e indulgências» tenham sido requeridas precisamente para este pequeno convento dos capuchos da Caparica, para onde se retirou em 1569 e onde veio a ser sepultado em 1573.

Mas também se deve realçar o facto, igualmente referido pelo cronista Fr. António da Piedade no Espelho de Penitentes, que a «sua consorte dona Catharina de Távora» (filha de Rui Lourenço de Távora e Joana Ferrer de Acuña e dama da Rainha D. Catarina) era «tão grande amante, e devota nossa, que em sua casa tinha hábitos para os Religiosos vestirem enxutos, quando no tempo do Inverno chegassem molhados».

Ou seja, os frades frequentavam não só a casa destes nobres, como tinham um especial tratamento resultante da forte dedicação de D. Catarina de Távora. E tão forte era esta relação familiar que, pelo testemunho do mesmo cronista, «com a mesma devoção nos tratarão os seus des‑ cendentes, confessando alguns que o seu maior alívio era a nossa companhia».

Acresce ao destes nobres – casados – o, também sabido, «bom agasalho» que lhes deram outras figuras de grande relevo simultaneamente social, político e espiritual na época. Com destaque figuram – porque «neste merecimento se aven‑ tajàrão a todos» – Francisco de Sousa Tavares e sua mulher Dona Maria da Silva, «Fidalgos de conhecida nobreza, os quaes morando na Villa de Almada, apenas vião os Frades, jà os levavão para casa com alegres demonstraçoens do muito que os amavão», tendo mesmo, «para os não divertir dos seus virtuosos exercícios», mandado «fazer hum aposento particular, em que os recolhião».

Costa da Caparica Praia do Sol ed. desc. 56 Ruinas do Convento dos Capuchos.
Delcampe

Esta relação foi já objeto de especial destaque por Silva Dias (Correntes de sentimento religioso) e Pierre Civil (Image et dévotion dans l’Espagne du XVIe siècle: Le traité Norte de Ydiotas de Francisco de Monzón, 1563). Contudo, esta proximidade, uma certa intimidade «portas adentro», merece que nos detenhamos um pouco para, se possível, sobressaírem alguns matizes que, creio, não terão sido ainda explorados nos estudos anteriores que tenho referido.

Em primeiro lugar, a fundação do convento por um leigo casado. Apesar de não ser algo de novo – muitos outros conventos, antes e depois, foram fundados por leigos, casados, maioritariamente da nobreza – este era um nobre fortemente influente na corte, e mais tarde em Roma. À sua custa mandou fazer e viu construído no espaço de um ano o convento, com o título de Nª Senhora da Piedade, na Caparica.

Tê‑lo‑á feito pelo «desejo com que solicitava o nosso alivio e melhor commodo», já que no pequeno convento que lhes doara Lourenço de Sousa em Mofacém em 1550 «experimentarão grandes discommodos na saúde, por ser um lugar muito doentio, e também nos exercícios da Religião, pela vizinhança de hum poço que dava agua ao Povo, com a qual frequência se inquietavam», já que não podiam «evitar o tumulto» que lhes criava esta «vizinhança».

Costa da Caparica, Um pormenor dos Capuchos ed. Passaporte 37.
Delcampe


O silêncio era, como se sabe, uma condição essencial às práticas religiosas, aos exercícios espirituais, incluindo a meditação e a oração mental. Mais tarde, sendo embaixador em Roma, empenhou‑se na criação da Província, tal como o próprio Cardeal D. Henrique.

E talvez o Alvará que mais tarde «mandou passar» o próprio rei D. Sebastião «em que ordena que a prohibição de seus Pinhaes naquele terreno se não entenda connosco, e que possamos mandar cortar a lenha que nos for necessária» se deva à influência direta de Lourenço Pires de Távora... (1)


(1) Maria de Lurdes Correia Fernandes, Os capuchos da Caparica no Portugal de meados do século XVI: entre círculos aristocráticos devotos e (re)leituras espirituais, 2021

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etc.

Leitura relacionada:
Fr. Antonio da Piedade, Espelho de penitentes e chronica da Provincia de Santa Maria da Arrabida

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