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domingo, 9 de outubro de 2022

Árpád Szenes: Maria Helena na praia

Retratista virtuoso, Árpád capta sobretudo a essência dos traços de Maria Helena. Os primeiros retratos datam dos anos 30, início da vida a dois e, sem se perder em detalhes,

Caparica I (colecção Jorge de Brito), Arpad Szenes, sem data.
Vieira da Silva - Arpad Szenes nas colecções portuguesas, Casa de Serralves, Porto, 1989

Árpád realça, de forma inequívoca, os contornos que definem a pintora.

Caparica, Arpad Szenes, 1934.
Museu Fundação Árpád Szenes - Vieira da Silva


Não é óbvia nestes retratos a cegueira da paixão: Maria Helena não é perpetuada como uma beldade, chega a ser, em muitos casos, quase caricaturada e, no entanto, há uma dedicação quase obsessiva na quantidade de esquissos realizada. (1)

Caparica, Arpad Szenes, 1934.
Museu Fundação Árpád Szenes - Vieira da Silva

Árpád Szenes e Maria Helena encontram-se pela primeira vez na academia parisiense Grande Chaumière, em 1928. Casam em 1930, sem considerarem outra hipótese senão a de uma vida a dois, para sempre. Uma espécie de conto de fadas modernista, traçado a lápis, caneta ou pincel.

Caparica, Arpad Szenes, 1934.
Museu Fundação Árpád Szenes - Vieira da Silva

Companheiros de vida e de ofício, enredados numa pesquisa paralela e solitária, inspiram-se, partilham e discutem, numa sinergia contínua.

Baigneuse à Caparica, Arpad Szenes, 1934.
Museu Fundação Árpád Szenes - Vieira da Silva


Vieira foi o modelo dileto, invocado nos primeiros anos pela paixão e pelo desejo e, mais tarde, pelo conforto de um amor sempre disponível.

Caparica V (colecção particular), Arpad Szenes, 1934 1936.
Museu Arpad Szenes - Vieira da Silva: elementos para um projecto de uma visita virtual

Quieta sem nunca se tornar ausente, Vieira da Silva é desenhada e pintada pelo marido inúmeras vezes, numa variedade de registos que oscilam entre o repouso e a atividade artística (...) (2)

Caparica, Arpad Szenes, 1935-1936.
Museu Fundação Árpád Szenes - Vieira da Silva


(1) Sandra Santos, "Le couple" de Árpád Szenes e de Maria Helena Vieira da Silva
(1) Sandra Santos, idem

Informação relacionada:
Fundação Árpád Szenes - Vieira da Silva
Árpád Szenes (Fundação Calouste Gulbenkian)
Jeanne Bucher Jaeger: Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992)
Jeanne Bucher Jaeger: Árpád Szenes (1897-1985)
Museu Arpad Szenes - Vieira da Silva: elementos para um projecto de uma visita virtual
Véronique Jaeger: The Arcana of the Heart
Vieira da Silva - Arpad Szenes nas colecções portuguesas, Casa de Serralves, Porto, 1989,

Media:
Visita guiada: Casa-atelier de Vieira da Silva e de Arpad Szenes

Ma femme chamada Bicho (filme documental de 1978 de José Alvaro de Morais sobre o casal de pintores Maria Helena Vieira da Silva e Árpád Szenes)


quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Sarah Affonso por Mário Domingues e com Fernanda de Castro

Sarah Affonso, embora ao primeiro golpe de vista nos recorde imediatamente a pintura mole de Columbano, possui, entretanto, qualidades suas que deve lutar por conservar ou desenvolver. Os retratos que apresenta são tecnicamente bem feitos — academicamente falando. Possuem, entretanto, um quê de impalpável que só consegue fixar nas obras de arte quem tem alma para sentir. Desses retratos ressalta ainda uma qualidade que não se assimila: o carácter. Há um certo à-vontade que só obtêm aqueles que têm um pensamento superior a nortear-lhes o pincel (...)

Autorretrato (detalhe), Sarah Affonso, 1927.
MNAC

D. Sarah Affonso devia — que nos seja permitido dar conselhos — fazer as malas, meter-se no Sud-Express e desembarcar em Paris (Sarah Affonso esteve em Paris, em 1923-1924 e em 1928-1929). Nessa cidade entregar-se-ia ao estudo dos pintores modernos e antigos, clássicos e bizarros. Veria tudo com olhos de ver, examinaria sem parti-pris, abriria a sua alma às mil almas de artista que, por intermédio da arte, pudesse conhecer (...) (1) 

Mário Domingues, revista Ilustração 16 de fevereiro de 1928 (detalhe).
Biblioteca Nacional de Portugal


Em 1924, Sarah parte para Paris o que não a impede de, no ano seguinte, em 1925, desenhar a capa e ilustrar a primeira edição de Mariazinha em África de Fernanda de Castro. A obra viria a ser reeditada 10 vezes com ilustrações de diferentes autoras: Sarah Afonso, Ofélia Marques e Inês Guerreiro que foi a única discípula de Sarah.

Em 1927, nasce o segundo filho de Maria Fernanda, Fernando Manuel; para a festa do baptizado realizado na Igreja dos Anjos em Lisboa, é convidado apenas, além da família mais chegada, um grupo restrito de amigos (Sarah Affonso, António e Narcisa de Meneses, os primos Pedro e Maria Helena Ferro da Cunha, Raul Feio, e outros).

Em 1928, Sarah imortaliza Fernanda de Castro com seu filho António, num óleo sobre madeira cuja reprodução viria a ilustrar a capa de Ao Fim da Memória I 1906-1939, de Fernanda de Castro, em 1988. Ao longo dos anos, Sarah vai fazendo desenhos para várias camisolas dos pequenos António e Fernando que, alternadamente com Fernanda de Castro, vai bordando.

Fernanda de Castro e Antoninho Gabriel por Sarah Affonso, 1928.
MNAC/Flickr

Em 1929, Janeiro, depois de uma estadia de cinco meses em Paris, Sarah recebe a notícia de que a sua mãe está muito doente e escreve a Maria Fernanda aconselhando-se sobre se deveria voltar a Portugal ou ficar em Paris. Pede-lhe que visite o médico da mãe para melhor poder entender o seu real quadro clínico pois

"Se deixo Paris agora todo o esforço será perdido. Sem receber uma resposta, não tenho coragem de tomar uma resolução. Se for só uma crise, a minha pobre mãe que tenha paciência mais uma vez, tenho lá duas irmãs que são já umas mulheres e podem tratá-la. Se for grave, irei então cheia de resignação… Peça conselho ao António."

Lamentavelmente, o estado de saúde da mãe de Sarah agrava-se o que a obriga a voltar para Portugal. Depois da morte da mãe e devido à ausência do pai, Sarah vê-se responsável pelos irmãos o que a impede de voltar para Paris.

Ilustra e desenha a capa para As Aventuras de Mariazinha, de Fernanda de Castro obra que viria a ser reeditada em 1935 com o título de As Aventuras de Mariazinha, Vicente e Comp.ia (romance para meninos) e, em 1959, com capa e desenhos de Viviane e o título de Novas Aventuras de Mariazinha.

Em Julho de 1930, da Costa da Caparica, volta a escrever à amiga:

"Está aqui muita gente, relações antigas e outras recentes. Eu trouxe grande conhecimento de livros, materiais de pintura. Para encher o tempo faço bolos, experimento receitas de petiscos e o tempo há-de passar… Apesar de tudo sempre é melhor estar aqui que em Lisboa. E você como vai com as suas costuras? Grande sucesso na exposição? Lembra-se de que me prometeu uma visita?"

A Praia do Sol, Costa Caparica, ed. Acção Bíblica Casa da Bíblia, c. 1930.
Casa Comum


"Venha com os seus pequenos. Mas venham de manhã, almoçam connosco. O vapor é em Belém. Na Trafaria tem camioneta para aqui. A nossa casa é à entrada da povoação. Traga costura. Se quiser traga um vestido dos de Grés que eu bordo-o e depois levo-lho."

O alar das redes por Sarah Affonso.
Jornal Praia do Sol, 15 de Março de 1950

Ainda nesse Verão, a 4 de Setembro, escreve de novo, num grito de desespero, o espírito quase quebrado:

"Há dias em que nas 24 horas, estou 15 na cama! Pouco a pouco vou perdendo as ilusões que por vezes me levavam a fazer perguntas, há falta de melhor, estou sem grande gosto pelo trabalho e vai-me faltando a força para reagir. Sinto que isto já deu o que tinha a dar, e a Sarah Afonso ficará na história (?) como uma risonha esperança (...)" (2)


(1) Mario Domingues, Os trabalhos dos alunos da Academia de Belas Artes, Revista Portugueza, 1923 cit. em Emília Ferreira, Forte, para resistir, Sarah Affonso, um percurso ímpar no modernismo português, 1999
(2) Sarah Affonso e Fernanda de Castro, Uma história de duas vidas por Mafalda Ferro

Artigos relacionados:
Sarah Affonso, postais da Costa a Manuel Mendes (1930-1931)
Sarah Affonso
Mário Domingues (1899-1977), escritor
Ao fim da memória
A casa cor-de-rosa

RTP Arquivos:
Sarah Afonso: Biografia do Centenário 1899-1999

Mais informação:
O primitivismo na pintura portuguesa (1905-1940)
Programa de exposição de Sarah Afonso no Salão Bobonne, em Lisboa. Nota introdutória de António Ferro, 18 de Janeiro de 1928
Arte e Género, Mulheres e Criação Artística, Faculdade de Belas-Artes
Emília Ferreira, Forte, para resistir, Sarah Affonso, um percurso ímpar no modernismo português, 1999
Maria João Gomes Pedro, Sarah Affonso, vida e obra, 2004 (3 vols.)
Sarah Affonso (Google Arts & Culture)
Sarah Affonso (MNAC)
Sarah Affonso (Centro de Arte Moderna Gulbenkian)
Sarah Affonso (Fundação Mário Soares e Maria Barroso/Casa Comum)
Almanak Silva: Mariazinha africanista



Sobre o percurso de Sarah Affonso, ver (cf. A. Santos Silva, Ofélia Marques (1902-1952)...);
CONDE, Idalina, «Sarah Affonso, mulher (de) artista», in Análise Social, vol. XXX (131-132. 2º-3º), p. 459-487;
CONDE, Idalina, «Reencontro com Sarah Affonso», in LEANDRO, Sandra, SILVA, Raquel Henriques da (coord.), Mulheres Pintoras em Portugal: de Josefa d’Óbidos a Paula Rego, p.129-161;
NEGREIROS, José de Almada, «Sarah Affonso», in CASTRO, Zília Osório de, ESTEVES, João Gomes (dir.), Dicionário no Feminino (séculos XIX-XX), p. 850-851;
PEDRO, Maria João Gomes, Sarah Affonso – vida e obra, vol. I. 

sábado, 17 de setembro de 2022

Retratos som Bá e Manuel Mendes, Ofélia e Bernardo Marques

Bernardo Marques (1898-1962)

Bernardo Marques inicia os seus estudos no liceu de Faro, matriculando-se, em 1918, na Faculdade de Letras de Lisboa para cursar Filologia Românica. Aí conhece a sua futura mulher, também artista, Ofélia Marques. A vinda para Lisboa possibilitou-lhe o contacto com a vida boémia da capital, realizando nestes anos estudantis os seus primeiros desenhos. Expõe pela primeira vez em 1920, no III Salão de Humoristas. Em 1921, abandona o curso de Letras, optando em definitivo pela carreira artística. Dedica-se com especial afinco ao desenho, vertente que nunca abandonaria ao longo dos seus 40 anos de carreira, numa opção em parte motivada pela alergia aos materiais da pintura a óleo.

Pedro, romance de Manuel Mendes publicado em 1954 com ilustrações de Bernardo Marques e dedicado à memória de Bento de Jesus Caraça.
(exemplar anotado pelo autor para uma segunda edição)

Casa Comum

Em 1924, casa-se com Ofélia e passam a viver no mesmo prédio no Bairro Alto onde António Ferro e Fernanda de Castro (v. apontamento relacionado: Ao fim da memória) habitavam à época. Esta vizinhança torna-se o ponto de partida para uma longa amizade entre Marques e Ferro. (1)

Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930.
A partir da esquerda: Berta Mendes, Fernando Lopes Graça
(1906-1994), Ofélia Marques (1902-1952), Bernardo Marques (1898-1962), Manuel Mendes (1906-1969)
, Bento de Jesus Caraça, e Cândida Caraça (e os cães Anica e Maigret).
Casa Comum

No caso que estamos a analisar, sendo verdade que Bernardo pertence às especificidades da geração de 20, e à de 30, e à de 40 pelo lado da estética oficial, é também verdade - e mais produtiva - que ele está nelas com uma distância, irónica e bastante atormentada, e que essa distância lhe permitiu autonomizar-se nos anos 50, quando o modernismo se encerrava e eclodiam novas problemáticas plásticas.

Retrato imaginado enquanto criança,
Bernardo Marques.
Ofélia Marques (1902-1952), CAM, Gulbenkian

E, se esta evolução pessoal não lhe deu lugar na cena artística contemporânea, tal aconteceu também por que a época era de inevitáveis e excessivos con­frontos e Bernardo iniciara um percurso de imensa solidão de que a morte voluntária foi o desfecho em 1962. (2)

Ofélia Marques (1902-1952)

(v. artigo dedicado em Eventualmente Lisboa e o Tejo)


(1) Bernardo Marques (Centro de Arte Moderna Gulbenkian)
(2) Bernardo Marques, Homenagens cruzadas, MNAC

Artigos relacionados:
Sarah Affonso, postais da Costa a Manuel Mendes (1930-1931)
Retratos com Bá e Manuel Mendes
Retratos com Guida Lami e Bá e Manuel Mendes, Cândida e Bento Caraça

RTP Arquivos:
Bernardo Marques
Exposição sobre Bernardo Marques (Casa de Serralves))

Mais informação:
Bernardo Marques, pesquisa em Cabral Moncada leilões
Bernardo Marques em MutualArt
Manuel Mendes, Bernardo Marques e o drama da sua obra, revista Eva nº1090, novembro de 1962
Marina Bairrão Ruivo, Bernardo Marques, Os traços de um sentimental, Revista de Cultura, Instituto Cultural de Macau, ano V, 5° vol.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Retratos com Guida Lami e Bá e Manuel Mendes, Cândida e Bento Caraça

Bento de Jesus Caraça (1901-1948)

Partiu para Lisboa com 13 anos para estudar no muito afamado Liceu Pedro Nunes, onde concluiu com distinção o ensino secundário em 1918. Neste mesmo ano matriculou-se no Instituto Superior de Comércio, hoje Instituto Superior de Economia e Gestão, e um ano depois é nomeado 2º assistente pelo professor Mira Fernandes. A sua carreira académica tornava-se notória. Em 1924, é assistente e em 1927 professor extraordinário.

Costa da Caparica, 1934.
A partir da esquerda: Adriana Lami Costa, Guida Lami, Bento de Jesus Caraça e Maria Alice Lami.
Casa Comum


Chegou a professor catedrático em 1929. A seu cargo ficou a cadeira de “Matemáticas Superiores” – Álgebra Superior, Princípios da Análise Infinitesimal e Geometria Analítica. A seu cargo ficou a cadeira de “Matemáticas Superiores” – Álgebra Superior, Princípios da Análise Infinitesimal e Geometria Analítica...

A sua actividade não se restringiu à prática lectiva. Foi membro do Núcleo de Matemática, Física e Química, criou o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas à Economia, fundou a Gazeta da Matemática e foi presidente da Direcção da Sociedade Portuguesa de Matemática...

Costa da Caparica (detalhe), Bento de Jesus Caraça,  1935.
Casa Comum

Finalmente, em 1941 publicou a sua obra mais emblemática “Os Conceitos Fundamentais da Matemática”, cuja versão integral foi publicada apenas em 1951.

O seu mérito foi reconhecido internacionalmente, uma vez que foi o delegado representante da Sociedade Portuguesa de Matemática nos Congressos da Associação Luso-Espanhola para o Progresso das Ciências em 1942, 1944 e 1946.

A Cultura foi uma das outras grandes paixões de Bento de Jesus Caraça, a cultura que deveria ser adquirida por todos para que se conquistasse a liberdade. Na Universidade Popular, de que também fez parte profere a famosíssima conferência “A Cultura Integral do Indivíduo – Problema Central do Nosso tempo”. Com o mesmo objectivo em mente colaborou nas revistas Seara Nova, Técnica, Vértice (v. Revistas de Ideias e Cultura) e em outros tantos jornais como O Diabo, Liberdade e o Jornal Globo, fundado por si, mas infelizmente eliminado pela censura.

Olhando para a cultura como um “despertar das almas”, fundou a Biblioteca Cosmos (v. Obras editadas na Biblioteca Cosmos), que editou centenas de livros de divulgação científica e trabalhou na reanimação da Universidade Popular, que entretanto se tinha visto enfraquecida pela acção da sempre atenta censura, tornando-se mesmo Presidente do Conselho Administrativo.

Defensor da liberdade que definitivamente não existia, Bento de Jesus Caraça foi também um interessado pela “questão feminina” e sempre incentivou a intervenção das mulheres na sociedade. Quando em 1943, onze raparigas se matricularam no ISCEF e uma vez que o sistema de coeducação era proibido pelo regime, apoiou a criação de um núcleo cultural por elas formado... (1)

Uma ave que os ares esclarece
Sobre nossas cabeças aparece.
Costa da Caparica, Guida Lami, legenda de Bento de Jesus Caraça, 1933.
Casa Comum

A ligação de Bento Caraça ao PCP, não terá sido uniforme através dos anos nem acrítica. A reacção ironicamente amarga ao pacto de não agressão germânico soviético, celebrado entre Hitler e Estaline, surge numa carta a Guida Lamy, uma das suas mais queridas amigas, discípula e colaboradora, nos estudos matemáticos e, nomeadamente no apoio aos prisioneiros dos campos. No início dos anos 40, encontra-se de tal modo desiludido, nomeadamente dada a situação no PCP, que pensa seriamente emigrar como se evidencia na correspondência com Rodrigues Miguéis.

O trabalho na Cosmos e a emergência de novas perspectivas de unidade na luta contra o regime, reforçada com a evoluir da guerra mundial, reanimam-lhe a esperança e retomará a ligação ao PCP. Surge como um dos mais destacados fundadores do MUNAF, Movimento de Unidade Nacional Antifascista, em 1942, e do MUD, Movimento de Unidade Democrática, em 1945, de cuja comissão central será vice-presidente.

A adesão popular ao MUD excede todas as expectativas: até 24 de outubro de 1945, recolhem-se 50.000 assinaturas de apoio, só na cidade de Lisboa. Perante tal movimentação, o governo salazarista suspende toda a actividade do MUD, acusado de constituir um “elemento de subversão social”, um “movimento passional” que pretende derrubar o governo e restaurar o modelo político da primeira República.

Bento Caraça é atingido por um processo disciplinar a 10 de setembro de 1946, instaurado pelo Ministério da Educação Nacional sob a acusação de antipatriotismo do manifesto “O MUD perante a admissão de Portugal na ONU”, subscrito por muitos democratas e do qual Bento Caraça, Vice-Presidente da Comissão Central do MUD, fora co-autor com Mário Azevedo Gomes, Presidente da mesma Comissão.

Em outubro de 1946, Bento Caraça é demitido compulsivamente da função de Professor Catedrático, afastado de uma actividade docente e pedagógica brilhante.

Por este envolvimento, no qual produz importantes documentos de análise política, alguns ainda de espantosa actualidade, sofrerá diversos interrogatórios e detenções ainda que breves dado a agravamento progressivo do seu estado de saúde. Em 1946, a 3 de abril, é sujeito a interrogatório na Pide; a 13 de Outubro, interroga-o e coloca-o incomunicável durante cinco dias numa esquadra; a 13 de Dezembro, é preso de novo, desta vez no Aljube donde sai sob fiança.

Em 1948, sofre prisão domiciliária em virtude “de correr grave risco de saúde e de vida se for obrigado a sair de casa e submetido a regime prisional“ como atesta em atestado médico, o professor Francisco Pulido Valente, estado comprovado pelo médico da PIDE, Mira da Silva que se desloca a sua casa; a 23 de Fevereiro é interrogado pela PIDE no seu domicílio; a 19 de Março, a PIDE convoca-o para a a sua sede e notifica-lhe a ilegalização do MUD.

A Leitura, 1955, Abel Manta (1888-1982)
(grupo do consultório do professor Francisco Pulido Valente, representados (cf. Estrolabio): da esquerda para direita, sentados, Aquilino Ribeiro, Ramada Curto, Carlos Olavo, Pulido Valente, Alberto Caidera, em pé, Ribeiro Santos, Mário Alenquer, Lopes Graça, Manuel Mendes, Sebastião Costa, Câmara Reis e Abel Manta).
Museu de Lisboa

Bento Caraça é já então casado com a segunda mulher, Cândida Gaspar, a aluna que o levou a abandonar a longa viuvez do breve casamento com Maria Octávia, que durara menos de um ano. Com Cândida, que lhe devolve a paixão e a ternura, será também breve a vida. Ele sabe-o. A doença cardíaca, já de longa data, agravava-se. Por isso o olhar de profunda ternura com que segue os primeiros passos vacilantes de João, o seu filho, é um olhar pleno de nostalgia. Nostalgia do futuro. E nas últimas fotografias antes da morte, a 25 de julho de 1948, Bento Caraça devolve-nos o sorriso magoado dos que sabem que vão morrer.

Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930.
A partir de cima da esquerda:
Bento de Jesus Caraça, Sílvia Manta, Manuel Mendes, Cândida Caraça e Berta Mendes.
Casa Comum

O processo disciplinar, movido pelo governo de Salazar, que o afasta do ensino universitário, traz dificuldades económicas à família. Cândida, ela própria também perseguida, enfrenta, corajosamente, a situação. Licenciada em economia, lecciona, corre entre as aulas e a casa onde vive com Bento, o filho e o sobrinho, João, adolescente vindo do Alentejo por iniciativa do tio. Bento Caraça passa a dar lições em sua casa, como meio de subsistência.

Várias as provas de solidariedade prestadas por amigos conhecidos e desconhecidos. Em Novembro de 1946, um grupo de democratas de Lourenço Marques, perante a demissão de Caraça, cotiza-se e presta-se a enviar-lhe mensalmente a importância do seu salário como professor universitário, sublinhando que não é uma ajuda pessoal mas antes o símbolo da “sua solidariedade para com os companheiros da Metrópole equiparando-a ao ganha-pão que V. Exª conscientemente arriscara e perdera ou proporcionando-lhe a oportunidade de empregar o dinheiro na luta antifascista a bem de todos”.

A 24 de janeiro de 1947, Caraça responde grato pelo apoio moral e material, sendo que opta por “empregar o dinheiro na luta antifascista”. Em outubro de 1947, agradece a José Maria Coelho “a extrema gentileza que quis ter para comigo, da principesca oferta de um frigorífico”. Os amigos procuram mimá-lo. Ildefonso Nóvoa, que fora seu aluno no Instituto, carrega uma grafonola para que Bento ouça a música clássica que o levava, apaixonadamente, aos concertos.

Em sua casa reúnem-se democratas, debate-se a vivência política, planeiam-se estratégias da oposição. Estuda ainda. Escreve. Incessantemente. Adoece mais e mais. Amigos de longa data, vêm de longe, para o que sabem ser eles e ele – a despedida.

Bento de Jesus Caraça,
r
etrato imaginado enquanto criança

Ofélia Marques (1902-1952), CAM, Gulbenkian


Porque este homem de tão intenso comprometimento político cultivou sempre o encontro com os outros. É, uma relação umbilical entre cultura e política que orienta otrajecto pessoal de Bento de Jesus Caraça e do seu grupo de amigos, onde se encontram os mais notáveis intelectuais e lutadores do seu tempo. Entre eles, o médico e professor Luís Ernâni Dias Amado, companheiro desde o liceu.

Também colega de liceu, amigo profundo, Carlos Botelho que lhe (nos) devolverá os olhares mais belos da pintura portuguesa sobre a cidade e o rio, esse corpo amante de Lisboa, Rodrigues Miguéis, Abel Salazar, Câmara Reys, Ferreira de Macedo. E ainda António Lobo Vilela, companheiro desde os bancos da escola primária.

Surgem depois Manuel Mendes, um dos seus mais íntimos confidentes e Berta Mendes que serão os padrinhos de João Gaspar Caraça, filho do segundo casamento.

Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930.
A partir da esquerda: Berta Mendes, Fernando Lopes Graça
(1906-1994), Ofélia Marques (1902-1952), Bernardo Marques (1898-1962), Manuel Mendes (1906-1969)
, Bento de Jesus Caraça, e Cândida Caraça (e os cães Anica e Maigret).
Casa Comum

Artistas como Avelino Cunhal, Huertas Lobo que lhe traça o perfil esvanescente, Abel Manta que esboçara o seu retrato póstumo, Mário Dionísio, Francisco Keil do Amaral, Maria Keil, Lopes Graça, Alice Manta, João Abel Manta, que lhe desenhará o perfil, Guida Lamy fazem parte do seu grupo de amigos. (2)


(1) Associação Bento de Jesus Caraça
(2) Bento de Jesus Caraça: Cultura e emancipação, um problema ainda do nosso tempo

Artigos relacionados:
Sarah Affonso, postais da Costa a Manuel Mendes (1930-1931)
Retratos com Bá e Manuel Mendes

Mais informação:
Escola Profissional Bento de Jesus Caraça (Porto)
Manuel Mendes (Fundação Mário Soares e Maria Barroso/Casa Comum)

Século XX português: Os Caminhos da Democracia (Fundação Mário Soares e Maria Barroso)
Obras editadas na Biblioteca Cosmos
Bento Jesus Caraça - Testemunho de Alvaro Cunhal (PCP)
Bento de Jesus Caraça: Cultura e emancipação, um problema ainda do nosso tempo
Revistas de Ideias e Cultura

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Retratos com Bá e Manuel Mendes

Manuel Mendes (1906-1969)

Escritor, jornalista, crítico de arte e tradutor, Manuel Mendes nasceu em Lisboa, em 1906, e faleceu na mesma cidade, em 1969. Cultivou também a escultura, sendo que a «sua escultura vai para além do amadorismo […]. Os bustos e as cabeças de Manuel Mendes acusam, na verdade, uma grande serenidade e severidade que os dignificam.» (Margarida Marques Matias). Colaborador da Seara Nova, conviveu desde cedo com Raúl Proença, Câmara Reis e António Sérgio e Raul Brandão, «seu mestre e paradigma literário» (Mário Soares), de quem foi um divulgador empenhado.

Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930.
A partir da esquerda: Berta Mendes, Fernando Lopes Graça
(1906-1994), Ofélia Marques (1902-1952), Bernardo Marques (1898-1962), Manuel Mendes (1906-1969)
, Bento de Jesus Caraça, e Cândida Caraça (e os cães Anica e Maigret).
Casa Comum

Como aluno da Faculdade de Letras participou na greve académica de 1931, tendo, a partir desta data, tomado parte em, praticamente, «todas as conspirações, revoluções e tentativas revolucionárias contra a ditadura […]. Libertou, de armas na mão, um companheiro preso que estava a ser torturado, num assalto bem sucedido à esquadra da polícia do rego.» (Mário Soares) Fez parte da efémera Frente Popular, do MUNAF, da Resistência Republicana e da Acção Socialista Portuguesa; foi um dos promotores do MUD, tendo sido membro da sua comissão central, e integrou as candidaturas de Norton de Matos e de Humberto Delgado à Presidência da República.

Costa da Caparica, década de 1930.
A partir da esquerda:
Fernando Pires, Berta Mendes, Manuel Mendes, Abílio Pires, Jaqueline Pires, Afonso Costa (filho), Irene Worm e seu filho João Worm.
Casa Comum

A sua obra mais conhecida, Pedro: romance de um vagabundo (1954), foi adaptada ao cinema, por Alfredo Tropa, com o título de Pedro Só (1972). Bairro (1945), Estradas (1952), Alvorada (1955), Segundo livro do Bairro (1958), Terceiro livro do Bairro (1959), Assombros (1962), Roteiro sentimental (1965-1967) e História natural (1968) são outros títulos de sua autoria. No campo das artes plásticas escreveu monografias sobre Machado de Castro (1942), Rodin (1945), Dordio Gomes (1958), Abel Manta (1958), Carlos Botelho (1959), Diogo de Macedo (1959), Jorge Barradas (1962) e Francisco Smith (1962), para além Considerações sobre as artes plásticas (1944), Lembranças de um amador de escultura (1955) e Raúl Brandão e Columbano (1959).

Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930.
A partir de cima da esquerda:
Bento de Jesus Caraça, Sílvia Manta, Manuel Mendes, Cândida Caraça e Berta Mendes.
Casa Comum

Debruçou-se ainda sobre as biografias de Antero de Quental (1942), Herculano, (1945), Oliveira Martins (1947) e Aquilino Ribeiro (1960). Deixou colaboração em vários jornais e revistas, como República, Seara Nova, Revista de Portugal e Vértice. (1)

Na Caparica, Pinhal, Abel Manta, 1942.
MNAC/Casa Comum

Historicamente lembrado pela militância política antifascista, o legado deste intelectual oposicionista, integrado na Seara Nova, alcançou notoriedade pública pela obra de jornalista, romancista, contista e ensaísta, e pela criação de grupos de resistência, cidadania e defesa de artistas.

Desenho em Caricaturas portuguesas dos anos de Salazar, João Abel Manta, ed. O Jornal, 1978.
Exposição "A Máquina de Imagens", João Abel Manta, Fundação D. Luís


A clandestinidade e as prisões políticas que resultaram desta articulação do combate político com a produção literária ofuscaram, porém, a importância do seu envolvimento inicial com a escultura e o desenho, mantidos de modo irregular, e do papel pioneiro como crítico e teórico da arte plástica moderna em Portugal... (2)

Retrato imaginado enquanto crianças de Manuel e Berta Mendes.
Ofélia Marques (1902-1952), CAM, Gulbenkian

... Casa Museu Manuel Mendes (nunca aberta ao público e hoje extinta), no Restelo. (3)


(1) Biblioteca Nacional de Portugal
(2) Centro de Arte Moderna Gulbenkian
(3) Moda & Moda, Museu do Chiado, A Sedução do retrato

Artigo relacionado:
Sarah Affonso, postais da Costa a Manuel Mendes (1930-1931)

RTP Arquivos:
Manuel Mendes: o Melhor de Todos Nós
... depoimento do político José Magalhães Godinho sobre o pensamento do escritor Manuel Mendes, lamentando este não ter vivido para assistir ao 25 de Abril; busto de Manuel Mendes do escultor Barata Feyo; fotografias de homens das Letras; retrato do escritor pintado por Dórdio Gomes; Casa Museu Manuel Mendes no Restelo...

Mais informação:
Casa Museu Manuel Mendes (Google search)
Colecção Manuel Mendes (MNAC)
Manuel Mendes (Fundação Mário Soares e Maria Barroso/Casa Comum)

Século XX português: Os Caminhos da Democracia (Fundação Mário Soares e Maria Barroso)
Obras editadas na Biblioteca Cosmos

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Barcos varados no areal por Ogden Pleissner

As paisagens europeias do pós-guerra de Pleissner — se bem que menos conhecidas do que a sua arte desportiva — são consideradas encarnações magistralmente compostas de lugares e momentos particulares no tempo e, mais importante para Pleissner, transmitem um leque de mudanças de humor.

Costa da Caparica, Beached boats, Ogden Pleissner.
MFA H

"Pode-se dizer que uma imagem tem o sentido do lugar", explicou Pleissner, "mas numa pintura, uma paisagem, para mim é o humor transmitido que conta. Constable, Homer e George Innes transmitem um sentido de lugar nas suas imagens, mas há algo mais que vai muito para além disso".

Costa da Caparica, Fishing boats, Portugal, Ogden Pleissne.

Para além disso Pleissner sentiu que "cores neutras e cores brilhantes criarão diferentes humores. Pode-se tomar o mesmo motivo, o mesmo assunto, em diferentes momentos do dia, ou em diferentes momentos do ano. Certos dias, o motivo, parecerá muito contrastante e brilhante, e as cores serão vivas. Noutro dia  o nevoeiro cobrirá a cena ou será de manhã cedo, ou depois, ao fim da tarde, ou à noite. Então tudo se misturará, e não teremos o poderoso efeito do contraste, e um humor diferente, mais suave, irá prevalecer" [...]

"Barkes du mar", Ogden Pleissner.
Amazon

Considerou Portugal, especialmente a região do Algarve, um dos "lugares mais bonitos" que alguma vez visitou e "um lugar maravilhoso para pintar" e, enquanto aí esteve, conseguiu congelar no tempo o estilo de vida do velho mundo (incluindo a população tradicionalmente trajada) que perdurou durante a maior parte do século XX, compondo um alinhamento perfeitamente proporcionado de primitivos barcos de proa alta, modelados a partir dos navios dos antigos fenícios [...] (1)

Portuguese fishing boats, Costa da Caparica, Ogden Minton Pleissner,
artnet


(1) The Lusher gallery

Mais informação:
Ogden Pleissner (Wikipedia)
Shelburne Museum: Pleissner gallery
artnet

sábado, 28 de setembro de 2019

Cruz Louro, pintor e ilustrador

Nas minhas horas vagas e, apenas para alimentar o meu espírito, satisfazendo assim a necessidade com que procurava completar-me, pintava ou desenhava. Sem saber porquê, a pouco e pouco fui abandonando os pinceis e as tintas, ficando apenas com o lápis e a tinta da China.

Costa da Caparica, Praia do Sol.
Bairro dos Pescadores, Cruz Louro, 1934.
BestNet Leilões

Sem qualquer preocupação de seguir uma escola ou imitar A, B ou C, seguia indiferentemente ao que no Mundo se desenrolava nos variadíssimos campos das Artes Plásticas, o meu caminho ou destino, sem qualquer ambição ou preocupação que não fosse aquela de conseguir realizar aquilo que os meus olhos viam e os meus sentidos apreciavam.

José Raimundo Gonçalves por Cruz Louro em 1934
João Raimundo Gonçalves

A Beleza estava em todos os lados para onde me voltasse e, a minha maior ambição, era a de transmitir ao papel, tudo quanto via e sentia, sem a transfigurar, sem mentir, sem fugir à Verdade. Queria ser descritivo, queria ser mais do que um escritor ou um poeta; queria, enfim, que os meus desenhos falassem e contassem aos vindouros, à História, pela imagem, por onde passei e pelo que desenhei. [Te-lo-ei conseguido?] (1)

Costa da Caparica, interior de uma barraca de pescadores, Cruz Louro, 1930.
Delcampe

Sem qualquer apoio económico, trabalhou sempre para se sustentar. Aos 26 anos, com a profissão de "empregado no comércio", conclui o curso da Escola Comercial de Ferreira Borges (Carta de Curso de 14 de Julho de 1930).

Costa da Caparica, Convento dos Capuchos, Cruz Louro, 1933.
Delcampe

Em 1933 termina o curso de "Habilitação às Escolas de Belas Artes" na Escola Industrial de Fonseca Benevides (Diploma de 21 de Agosto de 1933). Por esta altura já deixara o trabalho no comércio, tendo passado a desempenhar funções de "servente-jornaleiro", primeiro na Escola Industrial de Fonseca Benevides, Arte Aplicada (de 7 de Março de 1933 a 31 de Janeiro de 1935) e depois na Escola Industrial de António Arroio (de 1 de Fevereiro de 1935 a 8 de Junho de 1936).

Fonte da Telha, Dois barcos, História pela imagem dos barcos na Costa de Caparica, Cruz Louro, 1971.
Cruz Louro

Ainda nesta escola desempenhou funções de "auxiliar de secretaria" entre 9 de Junho de 1936 e 5 de Fevereiro de 1942.

A Fonte da Telha (Costa da Caparica, Praia do Sol), Cruz Louro, 1937.
  Cruz Louro

Durante o período de vida em Lisboa, morou no Bairro dos Pescadores, na Costa da Caparica, realizando várias exposições em Lisboa e Almada. (2)

O pintor Francisco da Cruz Louro
(retratado a guache por Manuel Lima em 1932 na Costa da Caparica).
Vida e Obra do Pintor Cruz Louro

Uma nota apenas. Concluído o Curso Superior de Pintura, de 1.° Classe, em 17/3/1951, com a classificação de 15 valores, na Escola Superior de BeIas Artes, do Porto, dedíquei-me de alma e coração ao ensino de Desenho. Fui professor nas seguintes Escolas e Liceus: Escola de Arte Aplicada de António Arroio, de Lísboa; Escola de Arte Aplicada Soares dos Reis, do Porto; Escola lndustrial e Comercial de Guimarães; Escola Industrial e Comercial de Marinha Grande; Professor e Director na Escola Técnica Elementar de Margão (Estado Português da índia); Escola Industrial e Comercial de Pangim (E. P. I.); Escola Técnica Elementar de Mapuçá (E. P. I.); Professor e Professor-Secretárío no Liceu Nacional de Quelímane (Estado Português de Moçambique); no Liceu António Enes, de Lourenço Marques (E. P. M.); Escola Técnica Elementar Joaquim Araújo, Lourenço Marques (E. P. M); Escola Técnica de Serpa e na Escola lndustrial e Comercial de Moura (Secção Liceal). (3)


(1) Francisco da Cruz Louro, Autobiografia em Álbum Ilustrado - Terras de Portugal, Edição do autor, 1973
(1) Ana Catarina Louro Parente, Vida e Obra do Pintor Cruz Louro, 2014
(3) Francisco da Cruz Louro, op. cit.

Mais informação:
Cruz Louro
As Nossas Raízes (fb)

quarta-feira, 17 de maio de 2017

O inimigo

O quadro fora feito por encommenda de António Rodrigues das Neves, cura da frequezia de Nossa Senhora do Monte de Caparica, para a capella de Nossa Senhora do Rosário. (1)

Coroação da Virgem, Diego Velázquez, c. 1635-1648.
Imagem: Wikipedia

[...] um retábulo de quatro painéis que em 1627 o pintor Domingos Vieira [o Escuro] executou para o altar de Nossa Senhora do Rosário da Igreja Matriz da Caparica [de então; o templo actual foi construído após o terramoto de 1755]. 

Num desses painéis aparecia Nossa Senhora da Conceição ladeada por S. Tomás de Aquino [Doctor Angelicus] à direita, e à esquerda, Duns Scoto [Doctor Subtilis]. (2)

Virgem com o Menino entre S. Domingos e  S. Tomás de Aquino, 1435.
Imagem: Wikipedia

Este retábulo dividia-se em vários compartimentos, n'um dos quaes estava debuxada Nossa Senhora da Conceição, tendo de um lado S. Thomaz, que parecia em posição humilde, e do outro, com ar triumphante, o dr. Scolto.

Da bocca de um e de outro sahiam letreiros que offendiam a meticulosidade de certos orthodoxos, que fizeram as suas queixas á Inquisição, a qual resolveu mandar estudar o assumpto e analisar o quadro. (3)

Da boca de S.Tomás saía em direcção à Virgem a expressão: "Dignare me laudare te Virgo Sacrata [Faz-me digno de te louvar, Virgem sagrada]"

Da boca de Duns Scoto saía a expressão: "Da mihi virtutem contra hostes tuos [Dá-me força contra teus inimigos]"

Intercessão do beato Duns Scoto à Virgem Imaculada.
Domenico Guarino, c. 1700-1750.
Imagem: Wikimedia

Para que a expressão de Duns Scoto acabasse junto da Virgem, a legenda foi colocada da direita para a esquerda, em sentido inverso do habitual, de modo que as palavras "hostes tuos [teus inimigos]" ficavam junto da figura de S. Tomás. 

Mas, em 1633, um visitador ordinário receoso que, pela situação destas palavras, alguém entendesse que S. Tomás era um dos inimigos da Virgem, mandou apagar o dístico de Duns Scoto. O cura da Caparica não obedeceu. 

Alguns fiéis temerosos denunciaram o facto à Inquisição de Lisboa que encarregou um jesuíta da Casa de S. Roque, o Dr. Jorge Cabral, de estudar o assunto. No relatório que enviou ao Santo Ofício, o Dr. Jorge Cabral reconhecia que a expressão de Duns Scoto posta às avessas se prestava a equívocos acerca de S. Tomás de Aquino. (4)

Desta empreza foi incumbido o dr. Jorge Cabral, da Companhia de Jesus, que deu parecer em 19 de setembro de 1634 e n'elle condemna algumas palavras dos disticos, fazendo recahir as culpas sobre o cura e o pintor, que julga dignos de serem admoestados.

N'esta mesma informação dá alguns toques biographicos do executante da obra, que tinha por alcunha o Escuro e era cunhado de um corrieiro que faz coisas de anta no fim da rua dos Douradores e Gadamicineiros [?].

Imaculada Conceição, Diego Velázquez, c. 1618.
Imagem: Hospital de los Venerables

Um attestado subscripto a 24 de setembro de 1634 pelo padre António Luiz, natural e morador em Caparica, certifica de visu que não só os letreiros, mas as imagens alludidas, estavam já completamente raspadas. (5)


(1) Sousa Viterbo, Noticia de alguns pintores portuguezes..., Lisboa, 1903
(2) Ana Moreira, Iconografia mariana nos painéis do jardins do palácio dos condes de Castro Guimarães...
(3) Sousa Viterbo, idem
(4) Ana Moreira, Idem
(5) Sousa Viterbo, idem, ibidem

Leitura relacionada:
O Dogma de Imaculada Conceição na Teologia de São Tomás de Aquino e Duns Scot

Referências:
A missionação franciscana no estado do Grão-Pará e Maranhão (1622-1750)
Das coisas visíveis às invisíveis
Alberto Pimentel, A Estremadura portuguesa, Volume II, Lisboa, Empreza da História de Portugal, 1908, 539 págs.
Sousa Viterbo, Noticia de alguns pintores portuguezes..., Lisboa, 1903
Collecção de memorias relativas ás vidas dos pintores...,

D. Isabel de Moura, Domingos Vieira, Vieira o Escuro, c. 1635.
Imagem: Wikipédia


Notas:

Ana Moreira, Iconografia mariana nos painéis do jardins do palácio dos condes de Castro Guimarães...
Imagem: congeladas no tempo

«Ev elRej faço saber aos que este aluara uirem que auêdo respeito ao que na petiçã atras escrita diz Domingos Vieira pintor de óleo e imaginaria e uistas as causas que alega e a informação que o Licenciado Inaçio Colaço de Brito corregedor do ciuel nesta cidade per meu mandado tomou acerca do conteudo na dita petiçã e como pela dita informação constou ser o dito Domingos Vieyra hu dos milhores pintores de jmagiuaria doleo que ha nestes Rejnos, e a dita arte de pintura doleo e jmaginaria ser auida e reputada per nobre em todos os outros Rejnos ey por bê e me praz que o dito Domingos Vieira não seja daqui ê diante obrigado ha Bandeira de São Jorge, nem aos encargos delia nem a outros algus encargos dos a que se costumão obrigar os officiaes mecaniquos, e isto sê êbargo da proujsão per que EIRej dom Joã meu thio que santa gloria aja anexou os pintores jndistintamente a dita bandeira de São Jorge e de quaesquer outras prouisões regimentos e posturas da Camará desta cidade que ê contrairo aja e mando ao presidente uereadores e procudadores dos mesteres delia e a quaesquer outras justiças officiaes e pesoas a que o conhecimento disto pertencer que o não obriguem nem constranjão aos encargos da dita Bandeira de São Jorge nem a outros alguns de oficial mecânico e lhe cúprã e guardem, e faça jnteiramente cuprir e guardar este aluará como se nelle cõthê o qual me praz que valha e tenha força e uigor posto que o effeito delle aja de durar mais de hú afio sem êbargo da ordenação ê contrairo. António de Moraes o fez em Lixboa a xxx de dezembro de Jbj c e seis — João da Costa o fiz escreuer.» i

«Certefico eu o Padre António Luis sacerdote de missa natural e morador em esta fregezia de Caparica que he uerdade que na capella de Nossa Senhora do Rozario que esta na matrix da dita fregezia esta hum relabolo no meio do qual esta hum nicho em que esta Nossa Senhora do Rozario de vultu, e o mais retabolo se parte em quatro painéis em hum dos quais estaua e esta Nossa Senhora da Conceição, e ao pee delia da parte direita estaua Santo Thomaz cõ hum litreiro qne sahia do boca do dito santo pêra a virgem Nossa Senhora que disia — Dignareme laudarete, virgo sacrata — E da outra parte estaua hua figura que dezião ser Sisto, de cuja boca sahia hum litreiro que dezia — Da mihi uirtutem contra hostes tuas — as quais figuras ui pintadas de óleo, e hoie as ui rapadas todas, de modo que neuhua delias se mostraua, nem parte delias, nem mais que a taboa de bordo rossada onde auião estado, e o letreiro estaua apagado sem figura de letra nenhQa o que tudo passa na uerdade, como consta do mesmo retabolo, a qual certidão passej pelo Padre cura António Lopes das Neues me requerer fosse uer o dito retabolo, e do que achasse lhe passasse certidão, e pêra este effeito fui uer o dito retabolo, e o achei como atras digo, e por assim ser passei a presente hoie 24 de setembro de 634 annos. = padre António Luis.»

i Torre do Tombo. Chancellaria de D. Filippc II. Privilégios. L.° 3, fl. 148.

«De ordem da mesa mãodou fazer diligencia pello padre Iorge Cabral da cõpanhia de Iesus reuedor deste Santo officio em resão da Pintura de nossa senhora da Conceição cõ Santo thomas a mao direita e Escoto a mao esquerda, a qual pintura esta na egreia de nossa Senhora do monte em Caparica; e o que resultou he o siguinte que S. t0 Thomas esta pintado muito humilde; e Escoto muito alegre e a letra se le as auessas do Escoto pêra S. t0 Thomas ; a qual he dignaeme etc; esta pintura se fes ha sete annos; de ordem de António RoTz das neues cura da dita igreia que era official da dita confraria ao tal tempo cõ Rui Dias espinosa, e martim gonçalluez; mas ainda correo cõtoda a obra e pagamento delia, a qual fez hu Domingos Vieira que hoie assiste em casa do Conde de Monsanto esta he a enformação que temos da matéria 5 de setembro 634.
=Dr Osório de castro — Pedro da Silua.*

«Aos Inquisidores que mandem ao Padre jorge Cabral dê Rellação da matéria comtheuda clara e distyntamente, e com ella seu Parecer, E com o dos jnquisidores torne a este Conselho. Lisboa 5 de setembro de 1634.=G. pereira =francisco Barreto.
= Manoel daCunha=fr. João de vascõcellos.*

«Por ordem da mesa da jnquisiçam, fui a Almada fazer diligencia sobre um rotolo indicête que se pos em hua capella dedicada a nossa Senhora da Conceiçam; E por testemunhas fidedignas, (emtre as quaes foi o uigario da vara) achei a enformaçam que dei na dita mesa aos senhores Inquisidores que he a seguinte: Na jgreja de nossa senhora do monte sita no termo de Caparica, de que he cura ha muitos annos o padre António roíz das neues, esta húa capella dedicada a nossa senhora da conceiçam, e nella hua confraria da mesma innocaçam, de nossa senhora da conceiçam, sendo o dito padre official auera 7 annos pouco mais ou menos da dita confraria cõ Rui dias de espinhosa casado cõ hua sobrinha do dito cura, e outros homens, deu ordem o dito cura que na dita capela se pintasse nossa Senhora da conceiçam com S. Thomas a mão direita e Escoto a esquerda (em forma que o doutor Angélico esta muito humilhado, e Escoto muito alegre) com esta letra posta as auessas dignareme laudarete, uirgo sacrata, da mihi uirtutem cõtra hostes tuos digo as auessas por se começa a ler dereito pêra S. Thomas, acabando as ultimas palauras cõtra hostes tuos em S. Thomas dando a entender que S. Thomas é imigo da senhora. O pintor que pintou per ordê do dito cura estas imagens chamase domingos uieira o Escuro dalcunha; reside nesta cidade de lisboa, e comumente assiste em casa do Conde de Monsanto tê boa noticia delle hu corrieiro seu cunhado que mora être os officiaes que fazê couzas danta no fim da rua dos douradoures e gadamicineiros.

«As palauras ultimas do dito rotolo considerado o sitio delias, e mais circunstancias, ad. minimum sapiunt blasphemiam; por que dam a entender que o doutor Angélico he imigo da maj de deus, pelo que me parece que aos ditos cura e pintor se deue estranhar na mesa da inquisiçam este atreuimenlo; porque ainda que com capa de zelo da immacuhda conceiçam da virgem nossa senhora queira o cura escusar sua culpa, uã tê ia lugar esta desculpa porque (como me testificou o uigairo da vara) na uisitaçam do ordinairo se lhe mandou ia o anno passado riscase o dito rotolo, ao que não tê obedecido, e ao dito vigário da vara esta mandado faça executar a dita uisitaçam. porê nã se deue mandar riscar todo rotolo pois he da Igreja santa e louuor da Senhora senã as ultimas palauras (contra hostes tuos) suspeitas as circunstancias do lugar etc. porque cõforme a direito utile non por inutile. isto me pareceo nesta casa de S. Roque da cõpanhia de Jhesu
3. a feira 19 de setenbro de 634 = Doutor Jorge Cabral.»

in Sousa Viterbo, Noticia de alguns pintores portuguezes..., Lisboa, 1903

Thomism vs Scotism

Thomas Scotus
1. The proper object of the human intellect is the quiddity of material being (quidditas rei materiali)11*. The proper object of the human intellect is being in general (ens in quantum est)2
2. Only analogical predication holds between God and creatures32*. The concept of being holds univocally between God and creatures4
3. Man is a unity of single form (the rational soul)53*. Man is a composite of a plurality of forms (rational, sensitive, and vegetative souls)6
4. Prime matter is pure potency 74*. Prime matter can subsist independently of form by God’s omnipotence 8
5. The principle of individuation is signate matter (materia signata quantitate)95*. The principle of individuation is a haecceity, or form10
6. The immobility of the universe as a whole is the frame of reference for motion116*. Space is radically relative: there is no absolute frame of reference for motion12
7. Without motion there would be no time13 7*. Time is independent of motion 14

cf. Roger Ariew, Descartes among the Scholastics (Leiden; Boston: Brill, 2011), pp. 83-84.