sexta-feira, 24 de julho de 2020

We missed Caparica

Em 1947, no pós-Segunda Guerra Mundial, quando se começou a assistir a um enorme desenvolvimento da prática turística, a editora londrina Phoenix House lançou uma colecção ilustrada com o título “The Young Traveller Series” [...]

Costa da Caparica, Um trecho da praia, ed.Passaporte, 44.
Delcampe

Bem recebidos por pais e professores, passaram a integrar as listas das leituras aprovadas e recomendadas por muitas instituições, nomeadamente a Library Association, a School Library Association e a National Book League. 

O objectivo era descrever a vida de vários países, expondo os jovens leitores à diversidade do mundo e à diferença linguística e cultural [...]

Costa da Caparica, Vista parcial da Praia do Sol, ed. Passaporte, 43.
Delcampe

É possível que descrições longas pudessem ser consideradas cansativas para o público-alvo, pois a narradora diz, a certa altura, que os próprios filhos, às tantas, já estavam “sick of looking at things”.

Um exemplo flagrante de concisão diz respeito a Sintra, lugar venerado por forasteiros de origem britânica desde há muito e transformado em local de peregrinação romântica, o qual era normalmente objecto de arrebatadas descrições por parte dos viajantes estrangeiros. 

Costa da Caparica, Vista parcial da Praia, ed. Passaporte, 15.
Delcampe

Neste caso são-lhe apenas dedicadas breves linhas, sem as habituais citações de Childe Harold’s Pilgrimage, de Lord Byron [v. artigo relacionado: Ilustrações de Finden à vida e obra de Byron] – nas palavras de Karen R. Lawrence, um exemplo eloquente do modo como “fictional travel impinges on actual travel” –, por a descrição ser feita pelo jovem William, a quem escapa a magia do lugar e que afirma prosaicamente não terem subido até ao Palácio da Pena por... estar muito calor.

A Costa da Caparica, outro local considerado imperdível, foi também propositadamente evitado, por ser demasiado frequentado: “All the guide books we had ever read told us that no visitor to Portugal should miss Caparica (...)

Costa da Caparica, Vista parcial da Praia, ed. Passaporte, 19.
Delcampe

As G.H. said, it was all enough to make us avoid the place like the plague. (...) We told one another that not seeing Caparica lent a certain distinction to our travels.”

E houve até quem sugerisse à autora, à custa disso, um título para o livro que estava a preparar: “We Missed Caparica”.

Costa da Caparica, Um aspecto da Praia, Passaporte, 21.
Delcampe - Bosspostcard

Sublinhe-se esta vontade deliberada em percorrer um itinerário alternativo aos consagrados pelos guias turísticos que o próprio título da obra, The Young Traveller in Portugal (e também o da colecção em que está integrada, “The Young Traveller Series”), espelha, quando se opta pelo termo traveller e não tourist (o qual ia ganhando conotações negativas). (1)


(1) Maria Zulmira Castanheira,The Young Traveller in Portugal... Revista de estudos anglo-portugueses 26, 2017

terça-feira, 14 de julho de 2020

Ercília Costa, Antigamente

O Fado tem em Ercília Gosta uma das suas mais legitimas e fieis intérpretes. "Sereia peregrina do Fado", no dizer de alguns críticos, "Santa do Fado", no dizer de outros, Ercília Gosta é indubitavelmente uma grande cantadeira. 

Ercilia Costa (1902-1985).
Museu do Fado

Filha de gente do mar, teve por berço essa linda praia da Costa de Caparica, e foi de certo ali, embalada pelo murmúrio do Oceano, que a sua linda voz, que nos recorda a da saudosa Maria Vitória, aprendeu a cantar o Fado.

Ercília canta admiravelmente todos os fados, repassando-os dum profundo sentimento, escolhendo para cantar os versos mais simples da poesia popular — dessa poesia que ela sabe sentir e reflecte como um espelho a alma do povo.

Começando desde muito nova a cantar o Fado, não tardou a impôr-se pela sua voz de fadista primorosa. Portugal inteiro a conhece e admira, e ainda recentemente, no Brasil, Ercília teve ensejo de ver quanto é querida e apreciada não só pelos seus patrícios como pelo povo brasileiro.


Tem cantado em quasi todos os teatros do pais, em algumas casas fidalgas e, que nos lembre, gravou os seguintes discos: "Fado dois tons", "O meu filho", "Rosas", "Fado sem pernas", "Fado Ercília", "Fado Aida", "Fado Tango", "Saudades", "Fado Lisboa", "Divina Graça", "A minha vida", "Desilusão", "Um desgosto", "Amor de Mãi", "Fado Corrido", "Negros Traços", "A desgarrada", com o dr. Antonio Menano e Joaquim Campos, e "Fado da Mouraria", também com Joaquim Campos.

Quando há anos se realizou em Lisboa um desafio de football Portugal Espanha, reuniram-se numa ceia de confraternização, no restaurante Boina, diversos jornalistas desportivos, portugueses e estrangeiros, tendo sido Ercília Costa e o seu colega Filipe Pinto convidados a assistir a essa festa.


Ambos cantaram de tal modo, engrinaldando de sentimento os seus versos, que alguns dèsses estrangeiros que não conheciam o Fado, se declararam maravilhados, aplaudindo delirantemente a gentil portuguezinha e o seu colega. 

Decorrido bastante tempo, Ercília Costa ainda era assediada por alguns dêsses jornalistas estrangeiros, que lhe escreviam recordando essa noite memorável e pedindo lhe autógrafos e discos das suas criações.


Em sua homenagem, depois do seu recente regresso das Terras de Santa Cruz, foram-lhe oferecidas duas festas: no salão de Chá, do Café Chave de Ouro e no Retiro da Severa, em que Ercília Costa, pela selecta assistência que a elas acudiu, mais uma vez teve ensejo de ver quanto o público a estima.

Do seu reportório que Ercília escolhe escrupulosamente as seguintes quadras do poeta popular João da Mata:

ANTIGAMENTE

Antigamente era uso 
Jantar-se fora de portas,
E cantar-se o fado luso
Na sombra amena das hortas.

Preparavam se os farnéis, 
Combinado de antemão: 
Uns tratavam dos pasteis, 
Outros do vinho e do pão... 

Uma carroça enfeitada 
De palmeiras verdejantes, 
Levava a rapaziada 
Para o sitio dos descantes. 

Animação, algazarra, 
No banquete improvisado...
Até que a voz da guitarra
Vinha anunciar o Fado!

Toda a gente se calava,
E a garganta fresca e bela
Dum cantador modulava
Uma cantiga singela. (1)


(1) A Victor Machado, Ídolos do fado, Lisboa, Tip. Gonçalves, 1937

Artigos relacionados:
Ercília Costa (1902-1985)
Rosa Costa, A minha paixão
Caparicanas

Outras referências:
Ercília Costa no Museu do Fado
Livro "Ercília Costa - Sereia Peregrina do Fado" no facebook
Ercília Costa no YouTube
Ercília Costa em Discogs