quarta-feira, 18 de maio de 2022

Costa do Mar

Alguns anos após a criação da Academia Real das Ciências de Lisboa, a carta de Portugal voltava a ser novamente assunto de discussão. Decidiu-se então o seu levantamento por comarcas, à semelhança da carta de França, e entregou-se a de Setúbal, aquela que se deveria tomar como exemplo, à responsabilidade de Jacob Crisóstomo Pretorius, coadjuvado por Henrique Niemeyer e por outros oficiais engenheiros.

Plano geral que representa a Costa do Mar entre Trafaria e Cabo Espichel (detalhe) de Jacob Crisóstomo Pretorius, datado de 22 de Abril de 1789.
Arquivo Histórico Militar, 3/47/AH-2/6 – nº 18468

Em 1789 propunha-se a medição de uma base geodésica a Sul de Lisboa, entre a Lagoa de Albufeira e a Trafaria, que não se concretizou, ao mesmo tempo que se executavam observações para a construção do esqueleto de base e se iniciavam separadamente os trabalhos topográficos (...)

Mas os desentendimentos com Pretorius, que não seria certamente a pessoa mais capaz para empreender tal tarefa, e as acusações da Academia pela demora dos trabalhos dos engenheiros, que poucos meses tinham ainda, acabariam certamente por ditar o fim da comissão. Serra diria então que "a Real Academia nos julgou pelos trabalhos do capitão Pretorius", cujo sistema era rápido mas "todo falso".

Plano geral que representa a Costa do Mar...
Jacob Crisóstomo Pretorius, 22 de Abril de 1789.
Arquivo Histórico Militar, 3/47/AH-2/6 – nº 18468
Plano Geral que representa a Costa do Mar entre Trafaria e Cabo Espichel, mostrando a sua Configuração, Praya; Medos, Aribas e Rochedos da Costa; indicando também na Linha encarnada a. c. b. n. z. a extensão do grande Rota de quatro legoas, que se há de medir por Toesas para a perfeição do Mappa Geográfico da Província,

por Praetorius,
22 de Abril 1789



E por aqui se ficou este projecto em 1790 (...) (1)


(1) Maria Helena Dias A odisseia da Carta Geral de Portugal, Lisboa, Instituto Geográfico do Exército, 2013

Artigos relacionados:
Quinta Távora e Mosteiro da deceda
Mar da Calha
O Juncal da Trafaria
Costa da Caparica — urbanismos
A Boca-do-Grilo
etc.

Leitura relacionada:
O Programa de Obras Públicas para o Território de Portugal Continental, 1789-1809 (I e II)

domingo, 15 de maio de 2022

Lancha sávara

Lancha sávara é um barco de pesca da família das canoas de tábuas de tipo mesopotâmico, com proa e popa pouco alteadas quando comparado com o barco do mar (Espinho a Vieira de Leiria) ou o meia-lua da Caparica.

O Pio na pancada do mar, Fonte da Telha.
autor não referido

A sua área de difusão é a Caparica e a Fonte da Telha. As suas dimensões são 5,00 x 1,85 x 0,70m.



A sua propulsão é por remos. (1)

O barco pequeno, como veio a ser chamado um novo modelo que foi construído nos estaleiros navais do Porto Brandão, Talaminho, no Seixal e em Cascais, mantinha as mesmas estruturas que os antigos, foi sobretudo construído para resistir eficazmente ao mar e ao tempo, mantendo-o dessa forma capaz de navegar com segurança de modo a justificar a qualidade do material aplicado no revestimento estrutural esquelético e na respectiva parte lateral do costado com madeira de pinho para tornar o barco mais leve.

Costa da Caparica, Pescadores arrastando o seu barco, ed. Passaporte, 371, réplica colorida de Passaporte-Loty n° 66, c. 1960.
Delcampe

No fundo que é plano, foram usadas madeiras mais espessas de pinho brando.


Desenho do saveiro Deus te guie da Costa da Caparica.
Museu de Marinha

O modelo depois de acabado de construir, afastava-se da grandeza da proa e da popa que ostentava o esbelto meia-lua, uma elevação que envolvia o sentimento de admiração quando era olhado e apreciado, revelava uma forma de traços contínuos, repletos de suavidade onde sobressaía a riqueza harmoniosa de beleza estética da formação da pro que se recurvava de ponta para cima, a bradar ao céu como que a querer dizer, estou aqui.

Costa da Caparica, Saindo para o mar, ed. Centro de Caridade N. Sra. do Perpétuo Socorro, 173.
Delcampe

Foi toda esta beleza que o grandioso antigo meia-lua exibiu para deleite da gente que o admirava e o considerou como a saveiro de linhas mais lindas que apareceu a navegar no litoral português. (2)


(1) Centro Português de Fotografia (cf. Octávio Lixa Filgueiras)
(2) Mário Silva Neves, Tu, Costa Minha!... o passado e o presente, 2002

Artigos relacionados:
Os nomes dos barcos (3 de 3)
"Deus te guie"
Companha do Anjo da Guarda (na faina da arribação)

sábado, 14 de maio de 2022

Maria Ritta do Adrião: alojamento local (desde 1859)

Duns apontamentos que nos foram proporcionados pelo Snr. Francisco José da Silva, Mestre das artes de pesca, extrahimos os apontamentos que se seguem e que mal podem aspirar a simples elementos de estudo para a historia da localidade:

Vista aérea da Costa de Caparica (detalhe), 1937.
Arquivo Municipal de Lisboa

A pesca começou a ser explorada na Costa por algarvios e ílhavos que ali vinham pescar nos meses de Outubro, Novembro e Dezembro, chamados da sáfra; construíam então eles próprios umas singelas e pequenas choupanas a que largavam fôgo quando se retiravam para as suas terras.

Em 1770 fixaram ali domicilio, em barracas já com maiores comodidades, com as suas companhas, os mestres: José Gonçalves Bexiga, algarvio, Joaquim Pedro, de Ílhavo; Romualdo dos Santos, algarvio; José Rapaz, de Ílhavo. Dado o exemplo, em anos a seguir, ali se fixaram também os mestres: José dos Santos, Jerónimo Dias, João Lopes e Manuel Toucinho.

Um dos primeiros cuidados dos povoadores foi a construção de uma Igreja — que foi feita simplesmente de junco e taboado.

As simples barracas de pescadores, de junco e colmo, foram-se aperfeiçoando, enchendo-se de conforto e comodidades, até ao ponto de nelas se proporcionarem festas verdadeiramente faustosas a que concorriam dos arredores fidalgos e literatos dos meados do seculo passado.

Ainda há tradições directas de algumas dessas festas e é frequente encontrarem-se na Costa resto de mobílias antigas, das melhores que certamente havia nessa época. Oratórios e imagens sagradas, conservadas religiosamente, constituem verdadeiras preciosidades e dão ideia da opulência com que chegou a viver a colónia piscatória, em tempos áureos. (1)

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Em 1859 José Augusto Sacotto Galache e eu principiámos as nossas caçadas no Juncal da Costa (...)

Um dia, em Dezembro (7), véspera de Nossa Senhora da Conceição, embarcámos, noite cerrada ainda, com Lourenço e seus dois filhos mais velhos.

Tempo sêcco, sem vento, e intensamente frio; a geada caía em carambinas. Proa ao Torrão. Lourenço da Pinha, expansivo, animava os filhos: — Vamos, rapazes, de voga arrancada, que é para aquecer.Havia aguas de monte, e o barco, mal vinha clareando, abicou defronte da Quinta do Miranda (...)

O estômago não tinha a mais leve memoria do almoço; a ambição de caçar no dia seguinte não nos mordia menos de que o appetite voraz. Resolvemos ficar; mas ficar aonde e comer o quê? A sorte.

Entrámos na povoação. Tudo choças de colmo; muitas levantadas sobre o arcaboiço de um velho barco.

Uma casa de um só andar, com armas reaes, bojudas como o abdómen do ladino e bondoso monarcha D. João VI, que foi alli por mais de uma vez.

De pedra e cal meia dúzia de casitas mais, quando muito. íamos andando por aquelle labyrintho de cubatas e á porta de um ferrador demoscom uma rapariguita dos seus dez annos, de cara insinuante, vestido de chita, meias muito brancas, sóccos, cabello em trança e bem tratado.

— Ó pequena, olha lá. Haverá aqui alguma casa onde se possa ficar e se coma alguma coisa?

— Pois não ha, meus senhores!... É a tia Maria Rita do Adrião, accrescentou, dando á sua voz crystallina certa expressão que indicava a grandeza da personagem a quem se referia.

Desenho da Costa antiga, autor António Lopes Martins, Col. Particular.
Rui Manuel Mesquita Mendes (fb)


Levou-nos á tia Maria, e tal foi o agasalho que por mais de trinta annos frequentei aquella casa com o melhor dos meus amigos. (2)

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Dalli a pouco estávamos todos reunidos na casa de jantar da sr.ª Maria do Adrião. Ao lado, na sala, de paredes estucadas, e tecto com relevos — uma surpresa para nós aquella restauração — a menina Cazimira extrahia das gavetas das suas bellas commodas de polimento, e mostrava ingenuamente ás senhoras, as riquezas e os primores da sua guarda-roupa — chales, vestidos de cores garridas, saias com rendas finas, camisas bordadas, lenços de seda de ramagens, que tão bem ficam, e tanto realce dão áquelles rostos campesinos, já illuminados de tons quentes pelo ar do campo e pelo sol. (3)

Maria Ritta do Adrião
O António Maria, 18 de setembro de 1884



(1) Almada na História, Boletim de Fontes Documentais nº 32 (2019)
(2) Bulhão Pato, Memórias, Vol. III, Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1907
(3) Zacharias d'Aça, O Tiro Civil n.° 139, quarta-feira 1 de junho de 1898

Leitura relacionada:
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