Vista do Tejo e da Torre de Belém, Maria Guilhermina Silva Reis. Imagem: Wikimedia |
No inverno, noite ainda, Lourenço da Pinha estava no caes de José António Pereira , com os seus três filhos: o mais velho José, o segundo João, o terceiro Francisco, este muito mocinho ainda para as fainas da travessia do Tejo, às vezes bravias.
Um dia, em Dezembro [7], véspera de Nossa Senhora da Conceição, embarcámos, noite cerrada ainda, com Lourenço e seus dois filhos mais velhos.
Tempo sêcco, sem vento, e intensamente frio; a geada caía em carambinas. Proa ao Torrão. Lourenço da Pinha, expansivo, animava os filhos: — Vamos, rapazes, de voga arrancada, que é para aquecer.
Vista panorâmica de Lisboa ocidental, Maria Guilhermina Silva Reis. Imagem: Cabral Moncada Leilões |
Havia aguas de monte, e o barco, mal vinha clareando, abicou defronte da Quinta do Miranda [...]
O estômago não tinha a mais leve memoria do almoço; a ambição de caçar no dia seguinte não nos mordia menos de que o appetite voraz. Resolvemos ficar; mas ficar aonde e comer o quê? A sorte.
Entrámos na povoação. Tudo choças de colmo; muitas levantadas sobre o arcaboiço de um velho barco.
Costa da Caparica, 1907. Imagem: Delcampe |
Uma casa de um só andar, com armas reaes, bojudas como o abdómen do ladino e bondoso monarcha D. João VI, que foi alli por mais de uma vez.
De pedra e cal meia dúzia de casitas mais, quando muito. íamos andando por aquelle labyrintho de cubatas e á porta de um ferrador demos com uma rapariguita dos seus dez annos, de cara insinuante, vestido de chita, meias muito brancas, sóccos, cabello em trança e bem tratado.
— Ó pequena, olha lá. Haverá aqui alguma casa onde se possa ficar e se coma alguma coisa?
Summer day on Skagen s southern shore (detail), Pedrer S Krøyer, 1884. Imagem: Wikipedia |
— Pois não ha, meus senhores!... É a tia Maria Rita do Adrião, accrescentou, dando á sua voz crystallina certa expressão que indicava a grandeza da personagem a quem se referia.
Levou-nos á tia Maria, e tal foi o agasalho que por mais de trinta annos frequentei aquella casa com o melhor dos meus amigos.
A Claudina, a rapariguita que fora a nossa salvação e a nossa guia, passados tempos casou, e, já mãe de filhos, depois de eu estar n'este Monte [desde 1890], morreu, coitada, de uma pneumonia.
Maria Rita do Adrião vive ainda; ha dois annos que veiu visitar-me, na sua burrita, muito lépida, com os seus noventa e três.
As saloias (estudo), Silva Porto. Imagem: Casa dos Patudos |
Teve sempre boa estrella; até na sua visita a minha casa o azar apenas lhe deu um rebate falso. Quando voltava para a Costa perdeu um objecto de certo valor, creio que um brinco, que mão piedosa achou e foi logo annunciar no "Século".
Retrato de Bulhão Pato, Columbano, 1908. Imagem: MatrizNet |
Depois de devorarmos o jantar e pelos barqueiros mandar aviso aos nossos, sol alto ainda, sahimos até á praia [...]
Monte, 1904. (1)
(1) Bulhão Pato, Memórias, Vol. III, Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1907
A casa da sr.a Maria do Adrião — o nosso hotel — era respeitada, e nós, saindo de lá, não faziamos detença na povoação.
Casas de cal e arêa havia lá então duas ou três. Na parede exterior d'uma d'ellas lia-se uma inscripção, em grossas lettras d'almagre, commemorando que a modesta vivenda fora honrada, tal dia, por um rei nosso. Se bem me recordo, foi D. João VI.
E também me mostraram o tinteiro de faiança nacional, pintalgado de amarello, vermelho e verde — tons crus — de que elle se serviu para escrever ou assignar não me lembro o que.
Dalli a pouco estávamos todos reunidos na casa de jantar da sr.ª Maria do Adrião. Ao lado, na sala, de paredes estucadas, e tecto com relevos — uma surpresa para nós aquella restauração — a menina Cazimira extrahia das gavetas das suas bellas commodas de polimento, e mostrava ingenuamente ás senhoras, as riquezas e os primores da sua guarda-roupa — chales, vestidos de cores garridas, saias com rendas finas, camisas bordadas, lenços de seda de ramagens, que tão bem ficam, e tanto realce dão áquelles rostos campesinos, já illuminados de tons quentes pelo ar do campo e pelo sol.
in Zacharias d'Aça, Caçadas portuguezas, Lisboa, Secção Editorial da Comp. Nac. Editora, 1898
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