quarta-feira, 31 de agosto de 2016

A Boca-do-Grilo

A rocha estava já em frente — paredão barrento, alcantilado, com ladeira aberta por milhentas chuvas, escavadas por pés teimosos do mesmo trilho.

Variante à Estrada Nacional 377 (detalhe), zona da Boca do Grilo.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Ladeada de afusados eucaliptos, a estrada de asfalto torcia para a direita, arrastando depois o caminhante a desmedido ziguezague.

A Praia do Sol - Uma vista parcial. Subida para os "Capuchos", ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 110.
Imagem: Fundação Portimagem

Por isso, elas optavam sempre pelo caminho de cabras da Boca-do-Grilo, ladeira íngreme e pedregosa como o Inferno — mas, em quatro arrancos, punham-se lá em cima. (1)

Costa da Caparica, Carta dos Arredores de Lisboa — 68 (detalhe), Corpo do Estado Maior, 1902
Imagem: IGeoE

Com a sardinha, empilhada,
Inda saltando vivaz,
Vem de cestinha avergada;
E lá de baixo, da praia,

Costa da Caparica, Alfredo Keil (1851 - 1907).
Imagem: Palácio do Correio Velho

E sobe a pino o almaraz;

Sentinelas ou Guardas avançadas, Caparica, Falcão Trigoso, 1935.
Imagem: Palácio do Correio Velho

Mas nem por sombras cançada! (2)


(1) Romeu Correia, Calamento, Lisboa, Editorial Minerva, 1950.
(2) Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, 1896, Typographia da Academia, Lisboa.

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Senhora do Cabo

Nossa Senhora do Cabo (do Espichel) — famoso santuário da Extremadora, ao S. do Tejo, na freguesia de Santa Maria do Castello da villa e concelho de Cezimbra, commarca d'Almada. Fica o templo, no Cabo do Espichel, a que os romanos chamavam Promontório Barbarico [...]

Costa da Caparica,  ed. Passaporte, 7, década de 1950.
Imagem: DelcampeTerras da Costa e Cabo Espichel,

Sobre um rochedo do Cabo, se vé uma ermidinha, denominada Miradouro, que, segundo a lenda, memora o sitio onde appareceu a Senhora, por isso, chamada do Cabo.

Outros, porem, affirmam que a Senhora foi achada na praia, inferior ao dito rochedo, e que apparecéra sobre uma jumentínha, que subira pela rocha, deixando n'ella impressos os vestígios das suas pegadas — que o tempo fez desapparecer, mas que os mordomos da Senhora fizeram de novo gravar. 

Cezimbra — Cabo Espichel e Ponta do Cavallo, cf.. ed. Martins/Martins & Silva, 606, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Diz-se que uns velhos de Caparíca, que vinham a estes sitios cortar lenha, foram os primeiros que acharam a santa imagem da Virgem, e por isso, foi o povo de Caparica o primeiro que festejou a Senhora do Cabo, hindo todos os annos com o seu cirio, em Romaria á Senhora, no primeiro domingo de maio.
 oooOooo
À memória do amigo, José Alves Martins (Papo-Seco), o organizador do último "Círio" que saiu da Costa de Caparica para o Cabo Espichel [...]

Adega do Papo-Seco e Pensão Chic, Costa da Caparica, rua dos Pescadores.
Imagem: Costa da Caparica no Facebook

O "Círio" tinha muita grandiosidade, e chegou a ter como juiz monarcas, e quando desembarcava em Porto Brandão ou Banática, as populações acorriam a receber os visitantes com
foguetes e música enquanto os sinos repicavam.

À frente, homens cavalgando, cavalos brancos, e vestidos com trajes romanos que anos depois. passou a ser três garotos que cantavam as "loas" (quadras alusivas ao acto) acompanhados pela música. 

Atrás do carro com os filarmónicos a seguir a berlinda (que se encontra no Museu dos Coches em Lisboa) com a Imagem. acompanhada por carros de todo o feitio e tamanho, repletos de pessoas. e grande cavalgada com que fechava o cortejo.

O Círio de Nazaré em Belém do Pará, revista Puraqué, 1878.
Imagem: Biblioteca do Círio

Era assim, antigamente, o "Círio do Cabo", e a propósito dele, o britânico Beckford, descrevia o regresso do Marquês de Marialva, no "Cirio" em 3 de Junho de 1787, dizendo cheio de pasmo: "Vinham acompanhados o Marquez de Marialva e o filho D. josé duma multidão de músicos, poetas, toureiros, lacaios, macacos, anões e crianças de ambos os sexos fantasiosamente vestidas".

O inglês que nunca tinha visto um espectáculo daquela grandeza dizia ainda que os criados conduziam gaiolas com pássaros, lanternas, cabazes com frutos e grinaldas de flores.

Seguiam alegres e saltando com grande alegria dos garotos. os quais com as suas vestes, mais pareciam habitantes do Céu do que da Terra, levando casinhas presas aos ombros.

Diz ainda o escritor: "Alguns destes "anjinhos" de teatro eram extremamente formosos e tinham o cabelo garridamente disposto em anéis".

Todo este cortejo quando vinha da margem norte desembarcava em Porto Brandão ou Banática como iá dissemos anteriormente era na capela do lugar que ouviam a primeira missa.

No concelho de Almada, só a freguesia de Caparica fazia o Círio, mas sem a imagem.

Adega do Papo-Seco e Pensão Chic, Costa da Caparica, rua dos Pescadores.
Imagem: ed. desc.

Mas o cortejo tinha o mesmo aparato dos de Lisboa, e contavam os velhos, que num círio, do Porto Brandão, num ano saiu, um barco catraio dos que faziam as carreiras entre Belém - Porto Brandão, em cima de uma galera puxada por seis animais, levando dentro a fílarmónica da Sociedade Marítima da localidade. (4)

O regresso da filarmónica da extinta Sociedade Marítima do Porto Brandão, integrada no círio do Cabo Espichel.
Imagem: Correia, António, Divagando sobre Caparica..., Almada, edição do autor, 1973

in Correia, António, Divagando sobre Caparica: pedaços da sua história, Almada, edição do autor, 1973.

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A fama dos milagres obrados pela Senhora do Cabo, em breve se propagou por estas redondezas e as offértas e esmolas, foram em tanta quantidade, que, próximo á ermidinha (edicola) primitiva, se construiu o sumptuoso templo que hoje alli admiram.

Não se destruiu a ermidinha, e juncto a ella foi construida (1671) uma fortaleza, para proteger os povos d'estes sítios, das invasões inopinadas dos castelhanos, sendo regente, o infante D. Pedro, depois rei, D. Pedro II, do nome.

Ignora-se o anno em que a Senhora appareceu, só se sabe que foi no principio do reinado de D. João I.

STELLA MATVTINA

Em 18 de novembro de 1428, Diogo Mendes de Vasconcellos, senhor do terreno em que estavam as ermidas da Senhora, fez disto doação aos frades dominicos de Bemfica, por escriptura publica, lavrada nas notas de Affonso Martins, tabellião publico da villa de Cezimbra.

Era o doador, cavalleiro e commendador de Coimbra e Ourique. N'esta escriptura se dá ao sitio da ermida, a denominação de "Santa Maria da Pedra de Múa" [...]

A imagem da Senhora do Cabo (a que appareceu no século XIV) é de bôa esculptura, mas tem apenas um palmo d'altura, e está em uma ambula de crystal dentro de um sacrário.

N. S.ra DO CABO
Virgem Maria defendei dos perigos aos que na
vegaó sobre Augoas do Mar
São muitos os cirios que de varias partes concorrem ao santuário da Senhora do Cabo.

Os giros principiaram em 1430. Os de Caparica, vão todos os annos festejar a Senhora, no primeiro domingo de maio.

Alem dos cirios comprehendídos no giro vão todos os annos mais os seguintes, que não entram no giro — Lisboa, no 3.° domingo depois do Espirito Santo — Seixal e Arrentella, na 2.a oitava do Espirito Santo — Almada, no domingo da Trindade — Palmella, a 15 d'agosto — Azeitão e Cezimbra, no 1° domingo de setembro. 

Ao principio todas as romarias eram annuaes, e cada uma tinha uma grande tocha (cirio) que accendla durante a sua festa.

É por isso que a estas romarias se dá o nome de cirios.

São 26 os cirios que entram no giro: — Alcabideche, Carnaxide, Tojalinho, Penaferrim, Bellas, Loures, Carníde, Barcarena, Louza, Santo Antão do Tojal, Oeiras, Bemfica, Rana, S. João das Lampas, Monte Lavar, Rio de Mouro, Belém, Cascaes, Odivellas, S. Martinho de Cintra, Almargem do Bispo, Santo Estevam das Gallés, Egreja Nova, Terrugem, Fanhões, e Santa Maria e S. Miguel de Cintra.

Foi instituída a confraria da Senhora do Cabo, pouco depois da construcção do novo templo, mas os seus estatutos só foram approvados em 1672. (Pelo capitulo 2° d'estes estatutos eram excluídos da irmandade o homem que tenha raça de judeu ou de outra infesta nação, e os mulatos. Esta exclusão era imposta em quasi todas as irmandades, até ao fim do século XVIII.)

Também n'este compromisso se determina que, no sabbado posterior á Ascenção, haja na egreja do Cabo, officio de nove lições de canto e orgam, missa cantada e sermão. De tarde procissão e vésperas, e no domingo de manhan, outra procissão, antes da missa.

O capellão da Senhora do Cabo, não pôde intervir nas romarias dos cirios, por lhe ser prohibiáo pelos estatutos.

As freguezias do giro, andam á "compita", a ver qual fará a festa com mais estrondo e magnificência.

Antes de 1710 o arraial estava cercado de casas para abrigo dos romeiros, mas sem ordem nem alinhamento; mas n'esse anno, se deu o risco para o novo arraial, e em 1715, se constrairam hospedarias com dous pavimentos.

Sesimbra, Cabo Espichel, vista aérea.
Imagem: Delcampe

O arraial é quadrilongo, com 140 metros de comprido, pelo N., e 100 peio S. com 44 de largo. É aberto pelo E., e fecbado a O. pelo templo. Ao N. e S., estão as hospedarias e mais accommodações, lado com uma arcada geral, onde estão as lojas, podendo chegar-se por baixo d'ella à egreja, ao abrigo do sol e da chuva. Do lado do S. é a residência do capellão.

Do lado do N. ha 63 arcos e 11 escadas de pedra, 21 sobrados, com 46 janellas de frente, e 22 lojas, cada uma com sua janella.

Do lado do S. ha 47 arcos, 9 escadas, 18 sobrados, com 36 janellas, e 18 lojas, cada uma com sua janella.

Cada sobrado e loja, tem uma cosinha, com sua fornalha, uma grande meza, dous bancos e nm cabide.

O senhor d'este terreno (o já referido Diogo Mendes de Vasconcellos) foi o fundador da ermida primitiva, concorrendo para isso o povo de Caparica.

Templo da Senhora do Cabo

Em 1490 se lançou a primeira pedra n'este ediflcio, á custa dos habitantes do termo de Lisboa, e das esmolas e offertas dos fieis. Tendo-o os temporaes damnificado muito, a casa do infantado, padroeira da egreja, desde a extincçâo do ducado d'Aveiro mandou demolir a antiga ermida, e construir o grandioso templo que hoje alli se admira, concluindo-se as obras em 1707. Nos dias 7, 8 e 9 de julho d'este anno, se fez a trasladação com grande pompa, assistindo o infante D. Francisco filho de D. Pedro II, que então era o senhor da casa do infantado. Só nas festas da trasladação, gastou o infante réis 1:660$000.

[Os bens do duque d'Aveiro e seus cumplices, lhes foram tirados, formando-se com elles a casa do infantado, a favor do infante D. Pedro (depois, D. Pedro II) e dos mais Infantes filhos segundos dos nossos reis.]

É um templo magestoso, tendo na frontaria, trez portas e trez janellas que dão luz ao côro. Sobre a cimalha está a estatua da Senhora, feita de mármore branco, dentro de nm formoso nicho.

Tem duas torres, sendo a do N. para o relógio (hoje arruinado.) A do S. tem dous sinos. Á entrada da porta ha um guarda-vento, de bella madeira do Brasil, de boa esculptura. No coro ha am óptimo orgam. As paredes interiores da egreja, são revestidas de mármore branco e preto (extrahido das pedreiras da Arrábida) até à cimalha real.

Tem seis tribanas, e entre ellas, quadros representando scenas da vida da Senhora. O tecto é de abobada, tendo no centro o quadro da Assumpção da Senhora; obra de Lourenço da Canha (pae do famoso José Anastácio da Canha) pintado em 1740. Ao N. (também no tecto) estão pintadas as armas de Portugal, e ao S. as da cidade de Lisboa.

Tem altar-mór, e dez lateraes, sendo estes últimos, feitos á custa de differentes cirios. Em 20 de maio de 1780, houve aqui um desacato. Um monge, natural da Catalunha, roubou a pixide, com as sagradas formas, mas o próprio sacrílego confessou o crime e restituiu a pixide, que foi reposta no seu logar. Em 1770 foi todo o templo restaurado, por ordem de D. José I.


Foi então construida a grande janella da capella mór, fronteira á tribnna real.

As paredes interiores são revestidas de formosos azulejos, e n'elles pintados os emblemas Quasi palma, quasi oliva.

A imagem da Senhora está dentro do sacrário, em um relicário de prata sobre-doirada que foi dado pelo cirio de Lisboa, em 1680.

Tem a Senhora muitas jóias, entre ellas, um ramo de jasmins, de brilhantes, com as folhas de esmeraldas — duas corôas d'ouro, cravejadas de brilhantes: ambas estas jóias, dadas por D. José I. — Tem mais, um ramo de brilhantes e nm manto bordado a ouro, dados por D. Maria I — um manto branco, bordado a ouro, também dado por D. José I — um manto azul, bordado a ouro dado pela rainha D. Carlota Joaquina, mnlber de D. João VI — e, finalmente, um rico manto, dado em 1809, por José Anionio Queiroga e sua mulher. Alem d'estes, outros muitos objectos de muito valor, ainda que inferiores aos mencionados.

Tem o templo duas sachrístias com serventia para a capella-mór, e ambas muito aceiadas.

O templo não preciza de armação, porque os mármores que o revestem, valem mais do que os melhores cortinados.

O throno illumina-se com 60 luzes. Ha dez lustres, de seis luzes cada um: cada altar tem seis castiçaes; e o altar-mór, seis tocheiros — de maneira que nos dias de festa ha duzentas luzes no templo.

A ermida da Memoria, em que já fallei, está próxima e ao N. da egreja. Tem um adro quadrado e o interior da ermida, é lageado de pedra. O tecto é de abobada.

Ermida da Memória.
Imagem: ed. desc.

Em frente da porta, ao E., tem, perto do chão, uma pedra lavrada e apainelada, com esta inscripcão:

CONSTA POR TRADIÇÃO SER ESTE O PROPRIO LUGAR ONDE A MILAGROSA IMAGEM DE NOSSA SENHORA DO CABO APPARECIA, E SE MANIFESTOU AOS VENTUROSOS VELHOS HE CAPARICA E ALCABIDECHE: MOTIVO PORQUE SE FEZ AQUI ESTA ERMIDA, EM QUE PRIMEIUO FOI VENERADA, ATÉ QUE SE TRASLADOU A OUTRA MAIOR, E D'ESTA, Á MAGNIFICA EGREJA EM QUE HOJE EXISTE, NO ANNO DE 1707.

Sobre esta pedra, ha um painel, representando, do alto, sobre nuvens Nossa Senhora com o menino nos braços, e em baixo, os velhos, reclinados, em acção de dormir.

N. S.ra DO CABO
Virgem Maria defendei dos perigos aos que na
vegaó sobre Augoas do Mar

A ermidinha é interiormente ornada com dez quadros, em azulejo, representando a historia do apparecimento de Nossa Senhora do Cabo; tendo cada quadro uma inscripção explicativa.

Chegando a este sitio vem com admiracao sobir a Sra pela rocha,
painel de azulejos do interior da Ermida da Memória.
Imagem: O santuário do Cabo Espichel: a Lenda, o Espírito do Lugar e o modo de os dar-a-ver

Do adro d'esta ermida se descobre um magnifico panorama, tanto para terra, como para o mar.

No fundo do rochedo, por este lado, ha uma enseada, onde já tem chegado botes e canoas, com romeiros de Oeiras, Paço d'Arcos e outros logares; mas é muito perigosa.

Próximo à ermida, do lado do O. existem, as ruínas do antigo forte da Senhora do Cabo, principiado em 1672, na regência do infante D. Pedro, depois, D. Pedro II. — Foi construído quando se augmenuram as fortificações das barras do Tejo e do Sado.

Tinha as armas de Portugal, sobre o arco da poria, e por cima d'ella, a casa da guarda. Era defendido por cinco peças de calibre 24.

Ainda em 1800 existia este forte, em bom estado, porem, o tempo, o mar, e o abandono o toem arruinado, e apenas d'eile hoje restam as ruinas.

Fora do arraial, e alem das casas que ficam descriptas, ha outras edificações, que são dependências da casa da Senhora — são — a casa do fôrpo — a casa da lenha — a casa da opera (que fui construida pelo cirio de Lisboa); teve nma ordem de camarotes, mas hoje tem uma galeria geral. A caixa é espaçosa. Teve bom cenario e vestuário, mas hoje tudo está gasto e velho.

Na casa da fabrica do cirio saloio, fronteira á sacristia da egreja, ha grandes armários, onde se guardam vários objectos de copa e cosinha, e de serviço da mesa, para serviço do cirio que entra e do que sáe. Há também uma casa para os pregadores e mais padres que concorrem à festa; e um grande armazém onde se guarda a berlinda, e o carro triumphal.

São notáveis, a casa da agua, e o pharol. Antes de subir à casa da água, ha uma alameda, com cinco ruas, orladas d'arvores, e no fim d'ellas, duas mezas de pedra, com assentos em volta, também de pedra. É n'esta alameda que os romeiros passam grande parte do tempo, em banquetes, danças e descantes [...] (1)

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Nossa Senhora do Cabo — No cabo de Espichel (Promontório Barbarico).

Sobre a apparição da imagem veja-se o livro: "Memoria da prodigiosa imagem da Senhora do Cabo; descripção dn triumfo com que os Festeiros, e mais Povo de Benfica, a conduzirão à sua Parrochia em 1810, para a festejarem em 1817," etc, por Frei Cláudio da Conceição — Lisboa, na Impressão Regia. Anno 1817.

O templo é uma fabrica magestosa, com trez portas e duas torres. Ao norte, e perto do templo, está a ermida da Memoria, em cujo sitio é tradição que Nossa Senhora appareceu.

A imagem tem o Menino nos braços. O manto foi bordado pela rainha D. Maria I. A ermida doou-a Diogo Mendes de Vasconcellos, em 1428, aos dominicanos de Bemfica que a habitaram e por fim a abandonaram em razão da aspereza do clima.

Depois passou a administração para a camara de Cezimbra, começando então o cyrio do termo de Lisboa, chamado dos saloios. Um dos duques de Aveiro pediu licença para ir casar ali; desde esse tempo ficou a ermida isenta de direitos parochiaes. (2)
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A SAíDA DO CYRIO

PRIMEIRO ANJO

Mãe de Deus! Virgem Santíssima!
Rosa Mystica da aurora,
Estrella da madrugada,
Da terra e dos ceus Senhora!

Porto Brandão, capela da Nossa Senhora do Bom Sucesso, inaugurada em 1864.
Imagem: Correia, António, Divagando sobre Caparica..., Almada, edição do autor, 1973

Da egreja do nosso Monte,
Vamos, piedosos romeiros,
Levar-te ao Cabo, onde guias,
Alta noite, os marinheiros!

Que tu dás, Virgem Maria! —
Entre sorrisos e flores  —
Esperança aos desgraçados,
E perdão aos peccadores!

SEGUNDO ANJO

Um dia, sobre uma cruz,
Beijaste teu filho morto!
Conheces todas as dores,
Para todas tens conforto!

A mãe que vê nos seus braços
Um filhinho moribundo,
Se não se apéga ao teu manto,
Quem lhe ha de valer no mundo?!

Agora, mais do que nunca.
Necessita Portugal,
Que lhe protejas seus filhos,
Padroeira celestial !

Portugal, onde tens sempre
Teus floridos sanctuarios!
Portugal, ameaçado
Pelos herejes corsários!

CORO DOS ANJOS

Romeiros, avante, avante!
Na piedosa romaria.
Levamos por companheira
A Virsem Santa Maria!

Charneca de Caparica, Quinta da Regateira, local de passagem do círio, c. 1900.
Imagem: João Gabriel Isidoro

CHEGADA AO CABO

PRIMEIRO ANJO

Ó mar das aguas sem termo,
Do constante labutar!...
Só tu és fanal, Senhora,
De todo este vasto mar!

Só tu, com teu manto azul,
Morenita, morenita,
Sorrindo, as ondas acalmas!
Bemdita sejas, bemdita!

Nasce do lado do norte
Sempre o musgo no pinheiro!
Também dás norte, na terra,
Ao perdido forasteiro!

PARTIDA DO CABO

CORO DOS ANJOS

Adeus, Senhora do Cabo!
Fica-te agora em teu ermo,
Vigiando os navegantes,
Por essas aguas sem termo!

Adeus, adeus! Voltaremos
Outra vez em romaria,
Nós, teus filhos, teus escravos,
Ó Virgem Santa Maria ! (3)


(1) Pinho Leal, Soares d'Azevedo Barbosa de, Portugal antigo e moderno..., 1874  Mattos Moreira, Lisboa,
(2) Pimentel, Alberto, História do Culto da Nossa Senhora em Portugal, 1899, Guimarães, Libânio & C., Lisboa
(3) Bulhão Pato, Raimundo António de, Nossa Senhora do Cabo, Livro do Monte, georgicas, lyricas, 1896, Typographia da Academia, Lisboa.

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terça-feira, 16 de agosto de 2016

Salpicadinhas da Costa!

Na costa de Caparica, junto ao sonoro Atlântico, vivem humildemente aqueles esforçados lusíadas cuja gloriosa epopeia cantou a épica musa de Camões. A vista nostálgica destes homens, que se humedece perante as doces melodias dos fados nacionais, advertem-nos de uma alma plena de sonhos passados e de uma vontade dominada pelas decadências presentes.

Costa da Caparica, pescadores, 1901.
Imagem: Biblioteca Nacional de España

Portugal, melhor ainda que Espanha, representa na Europa o fidalgo diminuido, dignamente orgulhoso das suas passadas grandezas, nobremente entristecido por suas presentes ruinas. O admirável autor de A ilustre casa de Ramires, pinta bem vigorosamente o interior e o exterior deste povo, que por acaso ao seu espírito sonhador e romântico deve a sua decadência e a sua pobreza.

Ignoro qual classe de influência tenha podido exercer nele a aliança e a vizinhança da nacionalidade britânica; porém pelos resultados inclino-me a crer que somente tenha influenciado en manter e excitar os sonhos de grandezas, peculiares a todo o espírito poético e romântico.

Porque esta poesia e este romantismo — que hoje parecem demora e lastro assim nos individuos como nos povos — é a nota vibrante que o harmoniza tudo no país lusitano; e é que o dão assim, naturalmente, a alma da Natureza daquela terra e a natureza da alma daquelas gentes.

A terra fértil e exuberante, o Céu mutável e pictórico, o mar sonoro e bravo, fazem almas sonhadoras e aventureiras que pelos caminhos do sonho e da aventura chegam às grandes conquistas ou aos grandes fracassos.

E assim, esse mesmo mar. que um dia cedeu as suas arrogâncias diante dos Vasco da Gama e no outro dia inspirou a audácia náutica dos Magalhães, hoje somente parece servir para tirar do seu seio opulento o vivo e reluzente metal da pesca, de que se mantem miseravelmente todo o povoado marítimo extendido ao longo da costa.


A vida será mísera, porem não falta nela a magia da poesía. Bem cedo aparelham a barca e os mesmos pescadores empurram-na pela areia até ao espumoso rebentar das primeiras ondas, onde permanece como una gôndola extranha, como uma poética meia lua plena de arabescos decorativos.

E quando volta da pescaria, se o Céo está claro e o mar tranquilo, a água parece um espelho onde se reflecte o lençol celeste em que uma meia lua gigantesca vai sulcando nuvens verdosas e prateadas.

Ao amanhecer chegam as mulheres para o produto da minguada façanha, passa o peixe das redes aos cestos, onde recebe um ligeiro polvilhar de sal, e partem para a capital e para os lugarejos vizinhos. 

Com a canastra à cabeça, descalças de pé e perna, passam e repassam aquelas veredinhas estreitas, abertas violentamente entre a exuberância dos pinheiros e castanheiros, cantando os típicos fados nacionais.

Costa da Caparica, Peixeiras, 1901.
Imagem: Biblioteca Nacional de España

No romantismo que se desprende dessas canções parece latir a nostalgia dos esplendores
passados, a saudade desperta. A melancolia que essas mulheres vão partilhando pelas sendas escondidas, parece a elegia entoada às nostalgias que os seus homens, à mercê desse mesmo mar, realizaram para a honra da sua História.

Por esse mesmo mar, seus próprios homens, que hoje só sabem encher de peixe os ventrudos cestos, souberam lançar-se a descobrir países esplêndidos, a conquistar riquíssimas terras distantes, a deixar com o seu idioma a perpetuidade de uma raça e a ensinar a rota por onde se podia dar a volta ao mundo.

E assim que as primeiras casas aparecem, cessa a melancólica sonata dos fados — que é como desvanecer-se o sonho — para dar lugar à realidade presente, e então vibra no ar o pitoresco pregão:

— Salpicadinhas da Costa!

Todo aquele que tenha estado neste povoado, actualmente ao menos, creio que com a impressão da sua pobreza actual terá percebido a fragância da sua poesia de sempre,

(1) Julio Hoyos, Iris, n.° 126, Barcelona, 5 de outubro de 1901

sábado, 13 de agosto de 2016

Sol da Caparica

Conjunto de Bártolo Valença, Rapazes do ritmo, Ò Caparica, década de 1960.
Imagem: Olx


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No Bairro do Vinil