sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Grande desordem na Costa de Caparica

Hontem, pelas 3 horas da tarde, constou no gabinete dos reporters, no governo civil, que pouco antes tinham desembarcado na ponta dos vapores no caes do Sodrè, duas macas conduzindo dois homens feridos, n'uma grande desordem, que se dera, de manhã,na Costa de Caparica, os quaes haviam seguido para o hospital de S. José.

Grand Hotel Central na Praça dos Remolares (futura Praça Duque da Terceira) e Estação dos Vapores Lisbonenses no Cais do Sodré, 1892.
Arquivo Municipal de Lisboa

Partimos immediatamente para aquelle hospital, afim de colher esclarecimentos sobre o caso. Quando porém, chegámos ao largo de S. Domingos, avistámos uma maca pousada no chão á porta d'uma taberna, logo ao começo da calçada do Garcia.

Lisboa, Largo de São Domingos no início da Caçada do Garcia.
Arquivo Municipal de Lisboa

A maca conduzia um dos feridos na desordem da Costa. Os conductors, quizeram dar uma tijella de caldo ao enfermo que vinha bastante debilitado. 

Acompanhavam a maca um genro e um irmão do ferido, os quaes nos deram explicações da desordem e suas consequências, pela seguinte forma: 

Logo de manhã, pelas 8 horas, o mestre de rêde Adriano Rodrigues, tendo uma porção de peixe na praia da Costa, negou-se a vender um lanço ao comprador João dos Santos, de 38 annos, casado com Francisca do Rosario, da qual tem 3 filhos, e a mulher gravida, estabeleceu se altercação entre os dois e seguidamente envolveram se em desordem, na qual tomaram parte alguns homens da companha do mestre Adriano Rodrigues, e diversos compradores de peixe que seguiram o partido de João dos Santos. 

Costa da Caparica, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, cliché João Martins, década de 1930.
Fundação Portimagem

No meio da lucta, o mestre Adriano puxou d'uma navalha de ponta e mola, e deu três facadas no lado esquerdo do peito de João dos Santos. 

Vista da Costa de Caparica tirada a partir das terras da Costa
Abel Rezende, gramofones, discos e artigos fotográficos, Rua Capitão Leitão, 48 3°, Almada
Arquivo Histórico de Almada

Na refrega também foi aggredido com cacetadas Joaquim Cardoso, de 20 annos, solteiro, natural de Sinfães, concelho de Vizeu, filho de Joaquim Cardoso e de Francisca Jayme. Este homem fazia parte da companha do mestre Adriano. 

Serenados os ânimos, tratou-se de conduzir os dois aggredidos para o Monte, onde foram pensados pelo medico da localidade, vindo em seguida para o hospital de S. José. Ambos estão em estado grave. 

Professor João Barreira (médico na freguesia do Monte)
Columbano Bordalo Pinheiro, 1900.
Wikimedia

O faquista não foi preso. (1)


(1) Diário Illustrado, 11 julho de 1893

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

O anjo ancorado

O seu livro de estreia foi "Os Caminheiros e Outros contos", que o situou, de, imediato, na primeira linha dos nossos ,escritores mais vigorosos e originais.

Fonte da Telha, José Cardoso Pires, à direita, na companhia de Alves Redol (detalhe),1957.
Hemeroteca Digital

O vo­lume suscitou apaixonantes polémicas, que se reacenderam mais tarde, com a publicação dos seus outros dois li­vros, "Histórias de Amor" e «Anjo Ancorado". (1)

Em primeiro lugar o assunto de O Anjo Ancorado apresenta-se, mais do que em qualquer outro livro de José Cardoso Pires, trabalhado em cortes ostensivos e rigorosos de planos, conforme a sua propensão para os contrastes profundos.

José Cardoso Pires com a esposa e uma senhora inglesa,
June,  amiga do casal, em Fonte da Telha, local on de escreveu,
totalmente, o novo romance "Anjo Ancorado", 1959.
Hemeroteca Digital

Estrutura intencional: dum lado o carro de desporto de João (um objecto real, com determinada função); do outro a aldeola de pescadores «sem barcos para discutirem com as águas do oceano» (um povoado sem função concreta, que Guida, para acalmar o seu remorso burguês ainda por cima abstractiza quando o imagina criado por uma onda bíblica).

Dum lado a caça desportiva («um mero, um realíssimo mero» apanhado a dormir ou como que por dádiva de Júpiter); do outro, a caça ao perdigoto (uma ave que mal cabe na cova de um dente, «uma coisa que ainda mal saiu do ovo» pela qual o velho arrisca a vida na ponta das falésias) — e, indo até mais longe, num terceiro plano, outro tipo de caça: a perseguição, à distância, que os rapazitos do lugar costumam fazer ao velho sempre que este descobre um pássaro. (...)

Luta pela vida demonstrada pelo princípio dos contrastes. Uma luta tão expressamente primitiva que se nos impõe como uma metáfora do struggle for life da lei da selva. (2)

José Cardoso Pires, à direita, na companhia de Alves Redol.
Fonte da Telha, 1957.
Hemeroteca Digital

Em O Anjo Ancorado o ambiente ressalta do contraste entre o casal e o automóvel e a aldeia e seus habitantes. 

Nos últimos tudo é primitivo, a começar pela fome, enquanto nos primeiros — burgueses palavrosos de má consciência — a modernidade da técnica lhe aumenta o conforto. 

Suave descida aos infernos (atente-se na descrição da travessia da aldeia e nos comentários de Guida Sampaio) há tanta soberba e distância entre os dois passageiros e os aldeões como entre o carro e «os casinhotos de S. Romão».(...)

José Cardoso Pires e Alexandre O'Neil.
Costa da Caparica, 1958.
Hemeroteca Digital

A luta travada entre o homem e o mero e entre o velho e o perdigoto, assim como o inútil combate contra o tempo em que se amargura Ernestina, combate de que o astuto garoto será árbitro, são águas-fortes destinados a avivar o clima dos desocupados e a torná-lo responsável daquela pesada desigualdade. (3)


(1) O Seculo Ilustrado 1133 19 de setembro de 1959
(2) CITI: Mais profundamente... O Anjo Ancorado
(3) CITI: O Anjo Ancorado

Leitura adicional:
Publico Magazine 19 de junho de 1994

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A charrua entre os corvos
Costa da Caparica de José Cardoso Pires
A janela de José Cardoso Pires