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sábado, 19 de fevereiro de 2022

Saveiro Portugal da companha Victorino que naufragou na Costa de Caparica

Pela madrugada de 11 de abril, como o mar estivesse relativamente sereno, muito calmo, o arraes Antonio Manuel foi para o mar no saveiro com a sua companha formada por 18 homens. A pesca devia ser boa e elles animados, cheios de esperança, lançaram a rede a 8 cordas de 116 braças de distancia da praia onde ficaram tres homens guardando a corda da panda.

Saveiro Portugal da companha Victorino que naufragou na Costa de Caparica
Illustração Portugueza

No mar viravam a proa deixavam cahir a rede nas aguas então serenas e logo agitadas quando a maré começou a encher. O arraes franziu o sobrolho e disse: Toca a virar para terra! Já estavam com as esperanças perdidas no resultado da pesca e esperavam apenas alcançar a praia.

N'este momento, á distancia de 90 braças, uma onda galgou o saveiro e logo outra, depois mais faziam levantar aquelle fragil taboado que conduzia 18 tripulantes. Já estava perdido o governo e o mar era cada vez maior, mais forte, erguendo sempre o barco e acabando por emburcal-o.

Os homens luctavam com as ondas na ardente esperança de alcançarem a praia, uns nadavam vigorosamente, outros agarravam-se n'uma anciedade ao barco, emquanto que da terra vinha um grande alarido da população que correra para a borda do mar.

Luzia já a manhã, alguns naufragos chegavam, eram abraçados entre lagrimas. Fazia-se um grande silencio quando se procedeu á chamada da companha e foi uma geral desolação quando se notou a falta de dois homens.

Tres companheiros atiraram-se de novo á agua, nadaram em direcção ao barco e conduziram comsigo o pescador Raphael Simões que ainda encontraram agarrado ao barco.

N'isso vê-se á tona da agua um vulto. É o companheiro que falta. Correm a buscal-o e vem a ser o José Rodrigues, um pobre moço, e a unica victima d'esse lamentavel desastre que veioa lançar o luto na vida trabalhadora e ardua dos pobres pescadores. (1)


(1) Illustração Portugueza, 25 de abril de 1904
 
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domingo, 15 de julho de 2018

Uma tarde no Monte

Só, como o espargo no monte! A solidão aqui rara vez desmente o rifão.

Caparica, Pera, casa de campo, anteriormente pertencente ao Marquês de Valada, c. 1900.
Internet Archive

De vez em onde, aos compassos do mar na costa e do vento nas ramadas seculares dos poucos ulmeiros que escaparam á fúria dendroclasta dos nossos homens do campo, reune-se o chalrar alegre da mocidade escolhida, mocidade de educação e talento, que visita estes logares para se desenfadar do bulicio dos arruamentos da cidade na paz alpestre e nos travos salubres de graciosas paizagens.

Vista de Caparica, tomada dos Capuchos, anterior aos trabalhos de construção do IC 20.
Delcampe, Bosspostcard

O anno passado um grupo de rapazes veiu jantar a casa do meu bom amigo e vizinho de há quinze annos, Manuel Luiz Fernandes, actual presidente da camara de Almada; rapazes distinctos nas sciencias, na arte e nas lettras.

Caparica, Pera, Quinta dos Ingleses, vista sul, c. 1900.
Internet Archive

O melhor d'essas horas seriam á mesa, posta no eirado que avança ao rez da casa, eirado com os seus alegretes floridos e arvorêtas viçosas, d'onde os olhos se desafogam correndo desde o Castello de Palmella até Nossa Senhora do Cabo.

Cezimbra — Cabo Espichel e Ponta do Cavallo, cf.. ed. Martins/Martins & Silva, 606, década de 1900.
Delcampe

Quadro enorme que abraça todo o cimo ondulado da serra da Arrábida; pomares, vinhedos, vastissimos tratos de pinheiral, que se perdem nos longes das planuras, que vão morrer nas faldas da montanha divisória do Sado e Tejo.

Costa da Caparica, Terras da Costa e Cabo Espichel, ed. Passaporte, 7, década de 1950.
Delcampe

O esmalte dos casaes, aldeotas, logarejos, moinhos de vento, campeando d'entre macissos de verdura; a ampla bahia do Alfeite, tudo, ou no referver do dia ou no descahir da tarde, com as frechas horizontaes do sol ponente, tem variedade, expressão e viveza como em poucas partes se encontram.

Historical military picturesque..., George Landmann, Estrada Palmela Moita.

Sentámo-nos á mesa do nosso hospede. Entre os convivas não faltava um orador de temperamento, orador no foro, e, quando venha o lance, tribuno ao ar livre, nos ímpetos mysteriosos do improviso, sublevando os ânimos, como o vento, aos desgarrões, levanta as ondas do mar. 

Filho de um jurisconsulto primaz, que na mocidade foi saudado poeta por Almeida Garrett, sobrinho de um dos maiores poetas que teve o século passado em Portugal, — cae-me o seu nome da penna, nome que anda na bôcca e na admiração de todos: Alexandre Braga.

A tarde era de verão, serena e calmosa, mas arejada por um mareiro do oceano, salgadio e fresco. As copas frias do espadeiro, da talia [ou douradinha], do boal, vinhos d'este torrão celebrados já por Gil Vicente e Camões [cf. o Pranto da Maria Parda de Gil Vicente; o Banquete dado na Índia de Luís de Camões; a Comedia Ulysippo de Jorge Ferreira de Vasconcelos...], accendiam até a alma de um velho que lá estava, quanto mais o coração dos rapazes!

Caparica, Pera, Quinta dos Ingleses, c. 1900.
Internet Archive

Foi n'essa tarde que tive ensejo de apertar pela primeira vez a mão de Augusto Gil. Da sua mediana estatura, do seu concentramento physionomico, desmentido pelo faiscar dos olhos garços, olhos entre sentimentaes e irónicos; do sorriso timido com um pico mordaz, de toda a sua individualidade, emfim, — porque elle tem a rara fortuna de ser individual — me estava saltando o poeta sincero e o cancionista encantador. 

Caparica, Pera, Quinta dos Ingleses, c. 1900.
  Internet Archive

Poucos, bem poucos, tenho conhecido que façam menos conta da gloria que lhe podia dar o talento, talento real, que lhe vem aos borbotões do intimo, sem andar atraz d'elle remodelando metros na cadencia estridula e monótona do martello de um ferrador que bate canello n'uma incude. 

Caparica, Pera, Quinta dos Ingleses, c. 1900.
Internet Archive

Não é nem romântico, nem parnasiano, nem symbolista, é elle — o Augusto Gil — nome que é um gracioso rithmo. 

Devera já ter volumes se durante annos, nas voltas do Mondego, pelos hortos onde gorgeiam os pássaros, e nas fontes onde cantam as cachopas, não deixasse dezenas de estancias, que amanhã serão margaridas multicores dos campos e conchas lapidadas pelos mares no cancioneiro nacional. Por quê refoge da luz da grande publicidade este poeta tão vivo, tão picante e tão de lei?! 

Precisamos recorrer aos seus companheiros de Coimbra para lhe apanharmos a flor das composições que elle esqueceu ha muito. Só outros — Deus me perdoe — são de uma abundância diabética! 

Como as gotas crystallinas de nascente pura, caem-lhe da bôcca os versos que não escreve, e que lá vão nos assomos da lua no crescente, n'um sopro da aragem, no fuzilar de uma estrella na tremulina das aguas, para onde nasceram, para o sorriso de uns lábios vermelhos ou para um suspiro do peito alvoroçado de uma rapariga. 

Parece que certas organisações teem o que quer que seja do somnambulo. Correm á beira dos precipicios sem os ver, jogam-se aos matagaes espinhosos e não os sentem; talvez nas regiões dos sonhos aspirem o aroma das rosas ideaes; mas, quando acordam para as misérias humanas, vêem com as carnes rasgadas e sangrentas dos pedregaes da jornada. 

Oiçam-lhe os versos, duas quadras apenas:

Teus olhos, contas escuras,
São duas ave-marias
D'um rosário de amarguras,
Que eu rezo todos os dias.

Amas a Nosso Senhor,
Que morreu por toda a gente,
E a mim não me tens amor
Que morro por ti somente!

Em Coimbra, a vizinha da casa fronteira, a dos olhos negros, que passava o dia costurando ao pé da janella, entre um mangericão copado e um craveiro florido, essa é que o ia desgraçando. 

O craveiro da janela, Augusto Gil, Aillaud e Bertrand, 1920.
Livraria Alfarrabista

Os nossos convivas partiram para Lisboa. A tarde esmorecia. O sol baqueava nas ondas, deixando o largo crepúsculo dos dias estivaes. A  lua, n'um período delicioso, surgia do nascente, rubra como a aurora. Depois, com a noite, alteou no céo branca e beijou a terra.

Rio Tejo e Torre de Belém (efeito de luar).

Que bem cahiria, n'esse momento, um estudante de Coimbra, viola ao peito, cantando n'uma voz afinada e masculina a quadra do seu camarada Augusto Gil:

Teus olhos, contas escuras, 
São duas ave-marias 
D'um rosário de amarguras, 
Que eu rezo todos oa dias.

Monte, 1904. (1)


(1) Bulhão Pato, Memórias, Vol. III, Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1907

terça-feira, 4 de julho de 2017

Maria Rita do Adrião (1811-após 1903)

Em 1859 José Augusto Sacotto Galache e eu principiámos as nossas caçadas no Juncal da Costa. Pelas arribas as perdizes saltavam aos bandos; na planura as codornizes, as narcejas e outra caça de arribação abundantíssima. Vivíamos em Buenos-Ayres.

Vista do Tejo e da Torre de Belém, Maria Guilhermina Silva Reis.
Imagem: Wikimedia

No inverno, noite ainda, Lourenço da Pinha estava no caes de José António Pereira , com os seus três filhos: o mais velho José, o segundo João, o terceiro Francisco, este muito mocinho ainda para as fainas da travessia do Tejo, às vezes bravias.

Um dia, em Dezembro [7], véspera de Nossa Senhora da Conceição, embarcámos, noite cerrada ainda, com Lourenço e seus dois filhos mais velhos.

Tempo sêcco, sem vento, e intensamente frio; a geada caía em carambinas. Proa ao Torrão. Lourenço da Pinha, expansivo, animava os filhos: — Vamos, rapazes, de voga arrancada, que é para aquecer.

Vista panorâmica de Lisboa ocidental, Maria Guilhermina Silva Reis.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Havia aguas de monte, e o barco, mal vinha clareando, abicou defronte da Quinta do Miranda [...]

O estômago não tinha a mais leve memoria do almoço; a ambição de caçar no dia seguinte não nos mordia menos de que o appetite voraz. Resolvemos ficar; mas ficar aonde e comer o quê? A sorte.

Entrámos na povoação. Tudo choças de colmo; muitas levantadas sobre o arcaboiço de um velho barco. 

Costa da Caparica, 1907.
Imagem: Delcampe

Uma casa de um só andar, com armas reaes, bojudas como o abdómen do ladino e bondoso monarcha D. João VI, que foi alli por mais de uma vez.

De pedra e cal meia dúzia de casitas mais, quando muito. íamos andando por aquelle labyrintho de cubatas e á porta de um ferrador demos com uma rapariguita dos seus dez annos, de cara insinuante, vestido de chita, meias muito brancas, sóccos, cabello em trança e bem tratado.

— Ó pequena, olha lá. Haverá aqui alguma casa onde se possa ficar e se coma alguma coisa?

Summer day on Skagen s southern shore (detail), Pedrer S Krøyer, 1884.
Imagem: Wikipedia

— Pois não ha, meus senhores!... É a tia Maria Rita do Adrião, accrescentou, dando á sua voz crystallina certa expressão que indicava a grandeza da personagem a quem se referia.

Levou-nos á tia Maria, e tal foi o agasalho que por mais de trinta annos frequentei aquella casa com o melhor dos meus amigos.

A Claudina, a rapariguita que fora a nossa salvação e a nossa guia, passados tempos casou, e, já mãe de filhos, depois de eu estar n'este Monte [desde 1890], morreu, coitada, de uma pneumonia.

Maria Rita do Adrião vive ainda; ha dois annos que veiu visitar-me, na sua burrita, muito lépida, com os seus noventa e três.

As saloias (estudo), Silva Porto.
Imagem: Casa dos Patudos

Teve sempre boa estrella; até na sua visita a minha casa o azar apenas lhe deu um rebate falso. Quando voltava para a Costa perdeu um objecto de certo valor, creio que um brinco, que mão piedosa achou e foi logo annunciar no "Século".

Retrato de Bulhão Pato, Columbano, 1908.
Imagem: MatrizNet

Depois de devorarmos o jantar e pelos barqueiros mandar aviso aos nossos, sol alto ainda, sahimos até á praia [...]

Monte, 1904. (1)


(1) Bulhão Pato, Memórias, Vol. III, Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1907



A casa da sr.a Maria do Adrião — o nosso hotel — era respeitada, e nós, saindo de lá, não faziamos detença na povoação.

Casas de cal e arêa havia lá então duas ou três. Na parede exterior d'uma d'ellas lia-se uma inscripção, em grossas lettras d'almagre, commemorando que a modesta vivenda fora honrada, tal dia, por um rei nosso. Se bem me recordo, foi D. João VI. 

E também me mostraram o tinteiro de faiança nacional, pintalgado de amarello, vermelho e verde — tons crus — de que elle se serviu para escrever ou assignar não me lembro o que. 

Dalli a pouco estávamos todos reunidos na casa de jantar da sr.ª Maria do Adrião. Ao lado, na sala, de paredes estucadas, e tecto com relevos — uma surpresa para nós aquella restauração — a menina Cazimira extrahia das gavetas das suas bellas commodas de polimento, e mostrava ingenuamente ás senhoras, as riquezas e os primores da sua guarda-roupa — chales, vestidos de cores garridas, saias com rendas finas, camisas bordadas, lenços de seda de ramagens, que tão bem ficam, e tanto realce dão áquelles rostos campesinos, já illuminados de tons quentes pelo ar do campo e pelo sol.

in Zacharias d'Aça, Caçadas portuguezas, Lisboa, Secção Editorial da Comp. Nac. Editora, 1898

quarta-feira, 1 de março de 2017

No Monte de Caparica

As rapariguinhas da Costa,
que sobem até o Monte,
poisam a giga, e defronte
do seu mais nobre freguês,
quedam-se cheias de enlevo:

Costa da Caparica, Peixeiras, 1901.
Imagem: Biblioteca Nacional de España

— Bonito velho! Não vês?
Vai jantar... chegou da caça...
Pois a sardinha que eu levo,
dava-lha toda de graça!

Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Não terem lido as da Costa
um livro, o "Livro do Monte",
ou não haver quem lhes conte
como o velho delas gosta,
se condói daquela lida,
e em espirito acarinha
a miséria mal vestida.
que do Monte se avizinha!

Pequenas varinas no Cais do Sodré.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Nenhuma, certo, adivinha
os afectos que lhe deve!

Retrato de Bulhão Pato, Columbano Bordalo Pinheiro, 1908.
Imagem: Pintar a Óleo

Aliás, não lhe daria
a cestita de sardinha,
mas de beijos cobriria
aquelas barbas de neve! (1)


(1) Cândido de Figueiredo, Figuras literárias... , Lisboa, Viuva Tavares Cardoso, 1906

Leitura relacionada:
Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896