sábado, 30 de maio de 2020

Bulhão Pato por José Maria de Andrade Ferreira

[VERSOS]

Classificações arbitrarias da critica . — Alfredo de Vigny e a poesia loura . - Macias e Bernardim Ribeiro e o verdadeiro sentimento poetico da peninsula preludiado pelos arabes e trovadores provençaes . — Bulhão Pato representante d ' esta familia , como Thomaz Ribeiro e João de Lemos . Analogias nas suas composições . - A convalecenle no nulono , Helena , Visão do baile . - O espirito inquieto da época influindo no talento do poeta . - A Lelia . - Retorno ás primitivas e nativas inspirações .

Bulhão Pato (1828-1912)
(insp. Andy Warhol, Ten Lizes, 1963)

A critica tambem tem as suas aberrações e as suas sympathias , e em o numero d ' aquellas deve de certo entrar a facilidade , com que ella appellidou a poesia de Bulhão Pato poesia loura . Se , á maneira do que Sainte - Beuve escreveu , tratando de Alfredo de Vigny , desejam exprimir na phrase poesia lnura a poesia pura , enthusiasta , candida , a poesia ingenua e de expansivos e singelos affectos , talvez que o epitheto não seja de todo descabido no poetar do sincero e apaixonado cantor ; mas agora , se poesia loura querem que seja a poesia de indole buliçosa , doudejante , infantil , tra vessa , embora de simples e descuidosos devaneios , n ' esse caso a qualificação não é de todo verdadeira , porque o au etor da Convalescente no oulomno , da Helena , da Visão do baile ; e de outros tantos poemetos inspirados pelo amor e pela saudade , é um poeta intimo , affectuoso , melancholico , elegiaco até , e cuja candura de alma desaffoga em ardentes e suaves estrophes de sentimento lyrico .

Nem tão pouco me parece completa , e ainda menos aproximada a similhança dos instinctos poeticos de Bulhão Pato com o genero de talento de Alfredo de Musset; ha evidente differença nas inspirações que mais habitualmente inflammam o estro dos dois cantores, e de certo maior differença nos caminhos que seguem, nos aspectos naturaes com que sym- pathisam, e nos affectos que lhes accendem o coração e a phantasia.

Nada mais difficil do que fazer classificações, e todavia, a critica abalança-se muitas vezes a este arbitrio, separando, analysando e qualificando o talento de qualquer escriptor por especies e familias, como o podera fazer qualquer botanico, tratando-se de familias de plantas. Disto segue-se mais de um Linneu ter naufragado no empenho de similhantes divisões scientificas, por que realmente ha grande distancia entre por uma etiqueta sobre este arbusto e aquella flor, ou collocal-a sobre um poeta ou um prosador.

Que, no nosso caso, a analyse e a divisão estão feitas. O talento de Alfredo de Musset apresenta um mixto de Byron e Sterne, em quanto que Bulhão Pato pertence á sentimental e melancholica estirpe de almas apaixonadas, que em França tem por irmãos mad. de Valmore e mad. Tastu, e que entre nós se apresenta como a expressão da verdadeira indole da poesia peninsular.

E se não fosse a anciã, que sempre houve entre nós, e muito mais nestes nossos tempos de faceis e desejadas aclimações estrangeiras, de ir procurar fora aproximações d"estas, como se este baptismo estranho se tornasse indispensavel á consagração dos nos sos engenhos, se não fosse esta ancia, repetimos, facil seria encontrar, mesmo no parnaso portuguez, os congenitos e os illustres ascendentes da linhagem poetica de Bulhão Pato. 

Analysando-lhe e seguindo com a vista a veia poetica, que ora se derrama em tranquillos e crystalinos meandros, por entre balseiras perfumadas, que, attrahidas pelo suavissimo sussurro do gracioso arroio, vem remirar-se na corrente e beijar-lhe as aguas; ora correndo mais apressada e espumosa se esconde em grutas, onde o amor depositára seus mysterios; ora volvendo atraz e enredando-se na selva, de para com uma gentil serrana, e ahi se demora em limpidos rodeios, como se tão seductor aspecto lhe immobilisara o nativo impulso; analysando e seguindo com os olhos todos estes caprichosos gyros, quem não comprehende que a alma do poeta se anima de todos os sentimentos que o contacto da formosura inflamma , e os diversos aspectos da natureza idealisam , e que daqui sảe aquelle composto de lyrismo suave e affectuoso , que umas vezes toma as formas bucolicas , outras arde nos impelos eroticos , outras emfim pro cura os tons meigos e penetrantes da elegia , composto sym pathico e mavioso de que o nosso desditoso Macias é já o precursor , ainda que mal definido , e Bernardim Ribeiro a nossa mais perfeita e gloriosa personificação ? !

Quem não comprehende esta indole e este parentesco ? !

E do poeta das Saudades que descende em linha recta o auctor da Helena . Até ha incontestaveis pontos de analogia entre muitos dos sentimentos , inspirações e até entre a pro pria concepção poetica dos dois trovadores . E trovador chamarei a Bulbão Pato , porque elle , como João de Lemos , e como Thomaz Ribeiro , e talvez mais do que o primeiro , e tanto como o segundo , significa um dos naturalissimos filhos d ' esta familia peninsular . 

Na sua estréa o mostrou elle logo , na Revista Universal . Foi justamente a ingenuidade , o gracioso desalinho d ' aquella musa que , para se mostrar , nem procurava as pompas das metaphoras de Victor Hugo , nem os embevecimentos contemplativos de Lamartine , attrahiu a attenção e sympathia de todos . 

Quando a maior parte dos nossos mancebos corriam azafamados , a jurar bandeiras nas hostes gloriosas dos grandes mestres francezes , Bulhão Palo parecia só querer evocar do primeiro e mais nativo periodo da nossa poesia aquella singeleza , aquella candura de affectos , aquella profunda e dolorida saudade , que os cantores provençaes nos trouxeram , e que os poetas arabes nos deixaram e que ficou sendo a manifestação da nossa in dole poetica . 

É este o caracter da poesia peninsular , e ninguem , como Bulhão Pato , a não ser o auctor do D . Jayme , a sente e revela melhor . Nos mesmos versos em que parece affastar - se um pouco da natureza dos assumptos mais predilectos do alaude antigo , n ' esses mesmos respira a simplicidade , os affectos tranquillos , o tom da suave e intima tristeza , que são o seu caracteristico . Na Folha desbotada diz , por exemplo o poeta :

... É esta na existencia 
A tua estrella de amor ! 
De amor puro , intenso , ardente , 
Mas que , occulto eternamente , 
No meu peito ficará ! 
Que, no infortunio nascido, 
Só conimigo tem vivido, 
E commigo morrerá.

Não será esta a ingenuidade, o affeclo tocante e singelo, a mesma ausencia de artificios de estylo dos trovadores?!. Até as repetições do mesmo pensamento no trocadilho final, uma das suas formulas mais usadas e caracteristicas.

E n'esta estrophe da poesia que o auctor intitula voltas, não encontraremos nós da mesma sorte a propria maneira bucolica de Bernardim Ribeiro, a ponto de nos parecer estar lendo (á parte a differença do progresso litterario das duas edades) algumas das eglogas do auctor da Menina e Moça?

Agora entre as outras flores 
Correm uns certos rumores ... 
Quaes são, não sei; mas ouvi 
Que as mais bellas da campina 
(Por quem és tão invejada), 
Quando hoje chamam por ti, 
Dizem — rosa namorada, 
E não — rosa purpurina.

N'estes versos ha a graça do idyllio junto ao perfume suave da egloga: è Rodrigues Lobo e Bernardes ao mesmo tempo.

Mas quem me vir tão escrupuloso a inquirir assim a origem e progenie poetica de Bulhão Pato, talvez presuma que elle faz consistir seus titulos de fidalguia litteraria em ser perfilhado n'esta ou n'aquella eschola, e que eu por lison jear a vaidade do poeta, a mais feminil e meticolosa de to das as vaidades, me dei a esta tarefa de investigação de linhagens, desentranhando do cadoz dos pergaminhos da ar- cheologia litteraria os seus attestados de filiação. Pois se cuidam isto, cuidam mal. 

Bulhão Pato nunca pensou em escholas poeticas, e é justamente d'esta isenção de pensamentos que lhe resulta a liberdade que desde os primeiros annos inculcara a individualidade do seu engenho. Bulhão Pato canta como o rouxinol trina, como a rola geme, como a andorinha pipilla, sem outra mira. nem intuito senão o desa bafo dos impetos que lhe agitam a alma, sem outro auxilio mais do que a nota espontanea e natural. 

É um poeta intuitivo, affectuoso e expansivo, e tão facil em derramar la grimas e mover-se a todos os transportes, tão debatida e envergado pelos ventos da paixão , tão inspirado pelos abalos intimos , tão estranho a escholas e artificios da arte , que lendo - o , e , ainda mais , ouvindo - o recitar os seus proprios versos com a vehemencia e admiravel naturalidade com que elle os recita , torna - se impossivel não considerar a poesia como independente de todo o fim convencional , e deixar de ver n ' ella o simples dom do poeta chorar , compadecer ou exaltar as suas angustias , envolvendo na melodia o seu soffrimento .

E é por isto que pertence , não intencionalmente , mas pela organisação do seu ser poetico , á mesma familia de cantores naturaes e espontaneos que , em combinações rhythmicas de extrema singeleza , acolhiam por unicas inspi rações a natureza , a gloria e o amor .

Não confundam , todavia , a naturalidade d ' este talento com a ligeireza que possa resultar de uma imaginação facil , por que Bulhão Pato é d ' aquellas organisações em que seria até impossivel separar o talento da sensibilidade , e que , por um admiravel accordo moral , e grande fundo de pathetico , nunca se apresenta deveras poeta , senão quando é amante ou vivamente impressionado . A sua faculdade poetica liga - se à paixão , como o echo á vaga , e como a vaga ao lago solitario .

Ma pauvre lyre , c ' est mon âme !

Póde dizer o poeta , e n ' este verso resumirá a essencia da sua inspiração profunda e melancholica , mas ao mesmo tempo espontanea e desartificiosa . E isto explica - se . Foi no embate das contrariedades da vida , em lucta . com as paixões , embora juvenis , porém sempre ardentes e acerbas , que o coração do mancebo modelou os seus soluços , sem outro mes tre senão a voz secreta da sua dôr . 

A lyra de Bulhão Pato nasceu uma lyra harmoniosa , mas uma lyra afinada pelos insinuantes accordes da angustia . E quem foi que no primeiro dedilhar lhe arrancou logo accentos tão penetrantes e doloridos ? Que ingratidão ou que infortunio lhe misturou com innocentes amores os ais carpidos da saudade que se lastima , ainda no limiar da vida , como Millevoye ou Soares de Passos ? Talvez nos seguintes versos achemos parte d ' este segredo .

Esvaeceu - se então completamente 
A meus olhos o anjo da candura , 
Das commoções divinas , da virtúde , 
E achei - me só , perdido , face a face 
Ante o demonio das paixões terrestres ! 
Dei - lhe a mão , e senti n ' um paroxismo
De desejo e de amor , fugir a vida .

Amargas desillusões enchem a vida do poeta , umas verdadeiras , outras agravadas pela ardencia da sua imaginação apaixonada . E n ' este primeiro poemeto da Lelia estão resumidos os mysterios da alma do affectuoso cantor . E nas . expansões delirantes de um affecto candido , que desabroxa este amor : « Es minha , diz o poeta :

« És minha : do céo proveio 
O poder que a ti me prende , 
Mas diverso fogo accende 
O teu e meu coracão : 
Tu no mundo és a innocencia ; 
Eu sou na terra a poesia ; 
Tu dás - me a tua alegria ; 
Eu dou - te a minha paixão !

Dou - te as sombras da tristeza , 
Que acertam sobre teu rosto . 
Como as sombras do sol posto 
Na rosa agreste do val . 
Recebes n ' um meigo abraço 
Meu profundo sentimento , 
E dás - me o contentamento 
Do teu seio virginal . »

Mas a aurora d ' este amor depressa se annuvia de nuvens de tristeza , porque logo depois o coração , ferido da ingra tidão , exclama :

Quando a razão voltou , como o murmurio 
Da fresca viração da primavera , 
O sopro perfumado de seus labios 
Vinha affagar - me docemente a fronte . 
Os anneis do cabello ondado e negro , 
Espargindo - se avaros procuravam 
Occultar - me da vista aquelle seio . 
Impaciente os affasto , devorando 
Num beijo , em mil , um mundo de delicias . 
Oh ! como então no peito me pulava 
O coração vaidoso e triumphante !

No languido quebranto que succede 
Ao febril desvario dos sentidos , 
Julia estava a meu lado : amortecida , 
Por entre a densa rama das pestanas , 
Partia a luz das languidas pupillas . 
Desmaiara de amor a rosa esplendida ; 
E voltava de novo aquella face 
A pallidez do lyrio das campinas .

Abatida e indolente, erguera a fronte ; 
Caminhámos os dois para a janeila : 
Os primeiros clarões da madrugada 
Vinham rompendo já no firmamento. 
Chegava, emlim, a hora; era forçoso 
Dizer adeus á seduetora imagem !

Que formosos versos! Como a paixão, pungida ligeira mente pelo espinho do remorso, desafoga n'estas ardentes estrophes, que um attractivo de melancolia torna mais insinuantes !

Não resisto á tentação de ainda trasladar para aqui mais uma parte d'esta composição. Agora o espirito diabolico, depois de haver apparecido ao poeta, e empenhado em per der Lelia, falla-lhe do seguinte modo :

— «Um sacerdote ancião, que além habita, 
N'aquella ermida que d'aqui se avista, 
Teima em não m'a deixar: tu só podias 
Ajudar-me a vencer n'esta batalha, 
lnda ha pouco menti, quando te disse 
Ser tarde já para salvar a pomba. 
É tempo ainda. Oh! vai! colhe as primicias 
D'aquelle coração que te idolatra: 
Tudo é luz, seducçao. amor, encanto, 
Na voz, no olhar, ha languida ternura 
Da rosa virginal que tu despresas. .
Anhelantes te esperam já seus labios; 
O seu peito infantil por ti saspira; 
No ouvido sente a voz dos teus protestos; 
O subito rubor lhe affronta as faces; 
Não a ves hesitar, tremer, fugir-te, 
Acercar-se outra vez, sorrir a furto, 
Escondendo nas mãos a fronte bella, 
De novo inda luetar, mas já sem forças, 
Cahir por flm num languido deliquio? 
Oh! corre a ser feliz em braços d'ella!» 
Um momento depois d'estas palavras, 
Em doce consonancia estranhas vozes, 
De improviso romperam n'este canto:

— «Seja a breve passagem da vida 
Uma serie de ardentes delirios ; 
Quem procura colher os martyrios , 
Quando existem as rosas em flor ?

Venturosos ergamos as taças, 
Onde brilha o licor purpurino, 
E soltemos as vozes n'um hymno 
Consagrado aos deleites do amor !

Vem, poeta: as tristezas do mundo 
Não comprimem jamais nossas almas ; 
Nós cercamos de floridas palmas 
A existencia votada ao prazer !

O que importa que a noite succeda 
Aos sorrisos do astro diurno? 
Para nós o astro nocturno 
Mil delicias nos torna a trazer!» 

Apossou-se de mim o immundo espirito. 
— « Sou teu, ó tentador, emflm lhe disse: 
Ao teu fatal poder entrego esta alma! 
Dize, dize, onde está essa que eu vejo, 
Mas que procuro em vão cingir nos braços !» 
— «Onde está ? vaes sabel-o ; e n'um momento 
A seus pés cairás ebrio de goso!»

Ao secreto aposento, onde jazia 
A virgem de meus sonhos, me dirige 
O torpe embaidpr. Entro em delirio, 
É ardendo em chammas de brutaes desejos, 
No casto ninho onde vivia a pomba. 
De repente uma luz serena e branda 
Veiu alegrar as trevas da minh'alma. 
Outra vez á rasão volto, e que vejo? 
Ante mim venerando sacerdote, 
Pondo-me ao peito a cruz que mais tarde 
A enganadora Julia me roubara. 
Lelia a seu lado, com as mãos erguidas, 
E os olhos postos no sagrado emblema, 
Estas doces palavras me dizia:

— « Deixou-te o negro espirito ! 
Feliz, de novo agora, 
Sorri tua alma em extasi 
Ao ver a pura aurora, 
Da qual somente é nuncia 
Na terra a humilde cruz ! 
Só ella, eterno simbolo 
De amor e de piedade, 
Brilha no mundo esplendida, 
E diz á humanidade : 
Surge das trevas lugubres, 
Ascende á etherea luz !

Mui de proposito transcrevi mais amplamente parte d'esta poesia, para evidenciar a modificação que pareceu operar-se no espirito do poeta. Sem perder de todo a singeleza primitiva, aquella graciosa singeleza de candidos affectos, que de certo fez appellidar a sua poesia de poesia loura, Bulhão Pato deixa entrever na Lelia, ainda atravez da antiga exaltação e do seu verdadeiro e sincero enthusiasmo, uns longes do sarcasmo de Affonso Karr e do azedume satyrico de Byron. 

Mas isto é uma concessão á época. O prurido da analyse, esta incuravel enfermidade de nossos dias, que tem ido embotando nos espiritos os mais nobres e generosos impulsos, e semeado o desalento e a desesperança por muito espirito , tentou talvez o poeta , mas não o venceu . 

Foi o Satanaz da saciedade pervertida , como elle mesmo o figura , que o levou até á beira do abysmo , onde , uma vez precipitado , o talento perde as azas candidas da sua innocencia primitiva , esquece de todo as imagens risonhas dos horisontes por onde espairecêra as illusões mais queridas do seu viver , e mal respira nas lobregas entranhas onde se passam as grandes miserias humanas . 

O poeta , n ’ este triste estado , deixa a penna dourada das nativas concepções , e trava do escalpelo que disseca uma por uma as fibras do coração ; já não é o cantor singelo dos santos e nobres affectos , é o analysta caustico e ameaçador das nossas fraquezas .

Porém , a boa tempera da indole poetica de Bulhão Pato salvou - o a tempo . Nada mais avesso aos seus instinctos , ás suas predilecções , ao jacto nalural , limpido e sereno da sua veia , do que as irrupções abruptas do estro d ' estes poetas moralistas , d ’ estes libellistas metrificadores , mistura inces tuosa de Rabelais e Jeremias , que apregoam bem alto os defeitos do mundo , que fingem até condoerem - se d ' elles , para mais facilmente esconderem os seus . 

E Bulhão Pato , um momento transviado das antigas predilecções , logo mostrou sua natural e directa propensão , compondo a inspirada dedicação a Helena , a sua ultima composição poetica [N'esta época , em 1862, data d'este artigo, esta poesia havia sido a ultima ], e que é um regresso felicissimo aos primeiros tempos do seu singelo e affectuoso poetar . 

Que pena não a poder trasladar para aqui por inteiro ! Mas já nas primeiras estrophes o lei tor conhece a verdade do que fica escripto .

Lembras - te , Helena , o dia em que deixamos 
O teu saudoso valle , é lentamente 
Pela elevada encosta caminhámos ? 
O sol do estio ardente 
Já não brilhava nos frondosos ramos 
Do arvoredo virente . 
Chegára o fim do outono : a natureza , 
Sem ter os mimos da estação festiva , 
Nem aquelle esplendor e gentileza 
Que tem na quadra estiva , 
Na languida tristeza , 
Na luz branda e serena 
D ' aquelle ameno dia , 
Que immensa poesia , 
E que saudade respirāva , Helena ! 
Subindo pelo monte , 
Chegámos ao casal , onde habitava 
A tua protegida , 
Aquella pobre anciã , que se agarrava 
Aos restos d ' esta vida ! 
Assim que te avistou , ergueu a fronte , 
Curvada ao peso de tão longa idade , 
Sorrindo nesse instante 
Com tal vida , que a luz da mocidade 
Parecia alegrar o seu semblante !
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
Vinte annos tu contavas nesse dia : 
A fiel servidora 
Era a primeira vez que não podia 
Deixar a casa ao despontar da aurora , 
E , cheia de alegria , 
Caminhar para o valle como outr ' ora , 
Depôr uma lembrança em teu regaço , 
E unir - te ao coração n ' um meigo abraço !

Tu , na força da vida , 
Circumdada de luz e formosura , 
Foste levar a pobre desvalida 
Os dons do lar paterno ; 
Alegrar com teu riso de ternura 
Aquelle frio inverno !

Ao ver - te , com teus braços 
Nos seus braços senis entrelaçados , 
A ventura nos olhos encantados , 
A inspiração na fronte deslumbrante , 
Afigurou - me então o pensamento 
Ver um anjo descido dos espaços , 
D ' aspecto fulgurante , 
Enviado por Deus nesse momento , 
Para animar os derradeiros dias 
De quem , cançado do lidar constante , 
Abre o seio na morte ás alegrias !

As lagrymas de gosto 
Corriam cristalinas 
No rosto d ' ella e no teu bello rosto ! 
Como orvalhos do céo aquelles prantos , 
Um brilhava na hera das ruinas , 
Outro na flor de festivaes encantos , 
Na rosa das campinas , 

Quando voltaste a mim , illuminava 
O teu semblante uma alegria infinda ; 
Depois quizeste ainda Ir visitar a ermida que ficava 
No ápice do monte . 
Firmaste - te ao meu braço , e caminhamos . 
No esplendido horisonte J
á declinava o sol , quando chegamos . 
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 

É exactamente a mesma simplicidade de fórmas , a mesma pureza de affectos , o mesmo expansivo e natural desabafo do coração , sempre aberto ao amor e que o aspecto melan . cholico dos campos enche de saudade .

Onde se sente mais isto é na sentidissima elegia , levarla , como uma saudade sem esperança , á sepultura de Salvador Corrêa de Sá , amigo de infancia de Bulhão Pato . Parece que o anjo da dôr , depois de ter enchido a sua urna das lagrimas da amizade , as infiltrara todas no coração do poeta . Só um talento que tão de perto vive dos impulsos do co ração , poderia encontrar accentos de tão viva e penetrante agonia . 

Vejam se não ha nos versos que vão seguir - se alguma coisa do sentimento intimo e delicado , que unicamente pertence ao affecto maternal ! E a mesma exquisita sensibilidade , o mesmo conjuncto de sensações afflictivas desentranhadas dos seios de alma , e coloridas pela eloquencia das dôres sem consolação .

« Bem sei que era exilio a terra 
« Para ti . anio do céo ! 
« Porém , filha , abandonares - me , 
« Quando toda a minha vida 
« Era a luz d ' um olhar teu , 
« Ouvir essa voz infante , 
« Ver a impaciente alegria 
« De teu candido semblante ! 

« Deixar - me assim na existencia , 
« Triste , só , desamparado , 
« Aquella flor de innocencia ! 
« Que lhe fiz ? Tinha - a creado 
« De quanto amor n ' este mundo 
« Pela mão da Providencia 
« A peito de homem foi dado ! 
« Oh ! que affecto tão profundo ! 
« E tu podeste partir ? ! 
« Pois não tiveste piedade 
« Desta solemne amargura , 
« Desta infinita saudade ? ! 
« Vi - te inda olhar - me , e sorrir , 
« Ergụer os olhos aos céos , 

« No instante de proferir 
« O fatal e extremo adeus ! 
« . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
« . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
« Oh ! volve outra vez a mim , 
« Desce a terra , anjo do céo , 
« Vem dar - me a ventura emfim !
« . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
« . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
« Olha : O vivo sol de abril 
« Já nestes campos rompeu; 
« As rosas desabroxaram, 
« O rouxinol de prendeu 
« A voz em saudosos cantos; 
« Os sitios onde passaram 
« Os teus descuidados annos, 
« Não os ves cheios de encantos? 
« São estes! A mesma fonte 
« Ferve além; n'aquelle outeiro 
« O meu casal alveja; 
« As ramas do verde olmeiro 
« Dão sombra á modesta igre|a, 
« Onde tu vinhas resar, 
« Quando o som da Ave-Maria, 
« N'hora meiga do sol-posto, 
« De vaga melancolia 
« Toldava teu bello rosto. 
« Tudo o mesmo !... esta inscripção !.. 
« Este nome!... anjo do ceo, 
« Este nome, filha, é teu! 
« Oh! meu Deus, por compaixão, 
« Na mesma pedra singela, 
« Juntae o meu nome ao della!»
« . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 
« . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
E Deos ouviu a oração... 
O mesmo tumulo encerra 
Filha e pae. Na mesma lousa, 
Onde repousam na terra, 
Uma lagrima saudosa 
Vem hoje depor tambem 
A esposa, a viuva, a mãe !

Um dos mais subidos meritos de Bulhão Pato é a concisão admiravel do seu estylo, concisão que elle leva aos ver dadeiros resultados dos grandes mestres, principalmente quando bosqueja os paineis da natureza. 

Os aspectos diante dos quaes a sua musa parece embevecer-se, são sempre sim ples e tristes, como a indole do poeta. O por-do-sol, o cair das folhas do outomno, o adro de uma aldeia, o casal que alveja ao longe por entre as cristas da serrania, são, em geral, as scenas que a phantasia se compraz de lhe aproximar, de contornar, e que lhe torna como os horisontes per manentes da sua existencia poetica. 

Mas ha sempre um vivo sentimento de poesia n'estas pinturas; e é observando-as, e estudando-lhes os effeitos que a sua impressão nos produz, que se percebe bem que secretos dons de influencia moral exercem n'alma estas combinações, em que o poeta parece chegar a ser pintor, porque o pintor, para o ser ver dadeiramente, não pode deixar de ser poeta. 

Alguns exemplos, colhidos aqui e acolá, explicam isto melhor que todas as analyses. Vejam se com linhas mais singelas se pode esboçar quadro mais amplo e solemne.

Nas nossas almas existia um mundo 
De indefinito amor; 
Do pélago profundo, 
Onde ruge o furor 
Insano, concentrado, atroz, maldicto, 
D'esta cruenta guerra 
Das ambições da terra, 
Nem uma maldição, um som, um grito 
Nos vinha perturbar! 
Era a amplidão do céo, a solidão da serra, 
Ao longe... a voz do mar! 

Que magestade e simplicidade de linhasl Outro quadro não menos verdadeiro: 

Daquelle pobre casal.
O fumo que vae subindo, 
Em ondulante espiral, 
Não diz que em volta do lar 
Se reune a pobre gente, 
Que já de perte presente, 
O frio inverno chegar? 

Quita não saberia traçar melhor este painel campesino. 

Agora este outro que parece sair da palheta suave e melancholica de Gessner. Ha n'elle o sentimento dos magicos aHectos da natureza, que tão bem comprehende e exprime a musa allemã.

Era singelo, mas sublime o quadro ! 
Em roda o mato agreste; 
No meio a pobre ermida; ao lado d'ella 
Um secular cypreste ; 
E sobre a cruz do adro, 
Pendente, uma capella 
De algumas tristes, desbotadas flores, 
Talvez emblema de profundas dores !

Bulhão Pato tambem algumas vezes tem ensaiado o genero satyrico, e com felicidade, como se vê pela poesia o Brinde, que é um desfechar constante de epygrammas contra algumas das grutescas personificações da nossa comedia politica. 

Comtudo eu prefiro, declaro-o francamente, ver tão bello estro sem abater os voos a estes charcos. As suas tendencias são outras, e mui diversas. O talento que vive do coração, a mente que se inflamma com o fogo dos sentimen tos nobres e serenos, não pode prestar-se a acceitar em o numero de suas predilecções assumptos repugnantes , e cujo halito cresta sempre as azas candidas da inspiração . 

Que Bulhão Pato é o primeiro a repellir , com o seu desdem , estas lastimaveis individualidades , dignas só de attrahirem as iras do libellista ; e nas raras horas em que a sua musa lhe tem emprestado algumas expressões de zombaria con tra taes creaturas , ha sido sempre com a hombridade e de sabrimento de quem applica uma correcção por força de necessidade : é antes uma pirraça do genio insoffrido do mancebo , que um desafogo do poeta . Este não se rebaixaria a tanto .

Agosto — 1862 . (1)


(1) José Maria de Andrade Ferreira, Litteratura, musica e bellas-artes. v.1., LIsboa, Rolland & Semiond, 1871

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