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sábado, 17 de setembro de 2022

Retratos som Bá e Manuel Mendes, Ofélia e Bernardo Marques

Bernardo Marques (1898-1962)

Bernardo Marques inicia os seus estudos no liceu de Faro, matriculando-se, em 1918, na Faculdade de Letras de Lisboa para cursar Filologia Românica. Aí conhece a sua futura mulher, também artista, Ofélia Marques. A vinda para Lisboa possibilitou-lhe o contacto com a vida boémia da capital, realizando nestes anos estudantis os seus primeiros desenhos. Expõe pela primeira vez em 1920, no III Salão de Humoristas. Em 1921, abandona o curso de Letras, optando em definitivo pela carreira artística. Dedica-se com especial afinco ao desenho, vertente que nunca abandonaria ao longo dos seus 40 anos de carreira, numa opção em parte motivada pela alergia aos materiais da pintura a óleo.

Pedro, romance de Manuel Mendes publicado em 1954 com ilustrações de Bernardo Marques e dedicado à memória de Bento de Jesus Caraça.
(exemplar anotado pelo autor para uma segunda edição)

Casa Comum

Em 1924, casa-se com Ofélia e passam a viver no mesmo prédio no Bairro Alto onde António Ferro e Fernanda de Castro (v. apontamento relacionado: Ao fim da memória) habitavam à época. Esta vizinhança torna-se o ponto de partida para uma longa amizade entre Marques e Ferro. (1)

Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930.
A partir da esquerda: Berta Mendes, Fernando Lopes Graça
(1906-1994), Ofélia Marques (1902-1952), Bernardo Marques (1898-1962), Manuel Mendes (1906-1969)
, Bento de Jesus Caraça, e Cândida Caraça (e os cães Anica e Maigret).
Casa Comum

No caso que estamos a analisar, sendo verdade que Bernardo pertence às especificidades da geração de 20, e à de 30, e à de 40 pelo lado da estética oficial, é também verdade - e mais produtiva - que ele está nelas com uma distância, irónica e bastante atormentada, e que essa distância lhe permitiu autonomizar-se nos anos 50, quando o modernismo se encerrava e eclodiam novas problemáticas plásticas.

Retrato imaginado enquanto criança,
Bernardo Marques.
Ofélia Marques (1902-1952), CAM, Gulbenkian

E, se esta evolução pessoal não lhe deu lugar na cena artística contemporânea, tal aconteceu também por que a época era de inevitáveis e excessivos con­frontos e Bernardo iniciara um percurso de imensa solidão de que a morte voluntária foi o desfecho em 1962. (2)

Ofélia Marques (1902-1952)

(v. artigo dedicado em Eventualmente Lisboa e o Tejo)


(1) Bernardo Marques (Centro de Arte Moderna Gulbenkian)
(2) Bernardo Marques, Homenagens cruzadas, MNAC

Artigos relacionados:
Sarah Affonso, postais da Costa a Manuel Mendes (1930-1931)
Retratos com Bá e Manuel Mendes
Retratos com Guida Lami e Bá e Manuel Mendes, Cândida e Bento Caraça

RTP Arquivos:
Bernardo Marques
Exposição sobre Bernardo Marques (Casa de Serralves))

Mais informação:
Bernardo Marques, pesquisa em Cabral Moncada leilões
Bernardo Marques em MutualArt
Manuel Mendes, Bernardo Marques e o drama da sua obra, revista Eva nº1090, novembro de 1962
Marina Bairrão Ruivo, Bernardo Marques, Os traços de um sentimental, Revista de Cultura, Instituto Cultural de Macau, ano V, 5° vol.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Retratos com Guida Lami e Bá e Manuel Mendes, Cândida e Bento Caraça

Bento de Jesus Caraça (1901-1948)

Partiu para Lisboa com 13 anos para estudar no muito afamado Liceu Pedro Nunes, onde concluiu com distinção o ensino secundário em 1918. Neste mesmo ano matriculou-se no Instituto Superior de Comércio, hoje Instituto Superior de Economia e Gestão, e um ano depois é nomeado 2º assistente pelo professor Mira Fernandes. A sua carreira académica tornava-se notória. Em 1924, é assistente e em 1927 professor extraordinário.

Costa da Caparica, 1934.
A partir da esquerda: Adriana Lami Costa, Guida Lami, Bento de Jesus Caraça e Maria Alice Lami.
Casa Comum


Chegou a professor catedrático em 1929. A seu cargo ficou a cadeira de “Matemáticas Superiores” – Álgebra Superior, Princípios da Análise Infinitesimal e Geometria Analítica. A seu cargo ficou a cadeira de “Matemáticas Superiores” – Álgebra Superior, Princípios da Análise Infinitesimal e Geometria Analítica...

A sua actividade não se restringiu à prática lectiva. Foi membro do Núcleo de Matemática, Física e Química, criou o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas à Economia, fundou a Gazeta da Matemática e foi presidente da Direcção da Sociedade Portuguesa de Matemática...

Costa da Caparica (detalhe), Bento de Jesus Caraça,  1935.
Casa Comum

Finalmente, em 1941 publicou a sua obra mais emblemática “Os Conceitos Fundamentais da Matemática”, cuja versão integral foi publicada apenas em 1951.

O seu mérito foi reconhecido internacionalmente, uma vez que foi o delegado representante da Sociedade Portuguesa de Matemática nos Congressos da Associação Luso-Espanhola para o Progresso das Ciências em 1942, 1944 e 1946.

A Cultura foi uma das outras grandes paixões de Bento de Jesus Caraça, a cultura que deveria ser adquirida por todos para que se conquistasse a liberdade. Na Universidade Popular, de que também fez parte profere a famosíssima conferência “A Cultura Integral do Indivíduo – Problema Central do Nosso tempo”. Com o mesmo objectivo em mente colaborou nas revistas Seara Nova, Técnica, Vértice (v. Revistas de Ideias e Cultura) e em outros tantos jornais como O Diabo, Liberdade e o Jornal Globo, fundado por si, mas infelizmente eliminado pela censura.

Olhando para a cultura como um “despertar das almas”, fundou a Biblioteca Cosmos (v. Obras editadas na Biblioteca Cosmos), que editou centenas de livros de divulgação científica e trabalhou na reanimação da Universidade Popular, que entretanto se tinha visto enfraquecida pela acção da sempre atenta censura, tornando-se mesmo Presidente do Conselho Administrativo.

Defensor da liberdade que definitivamente não existia, Bento de Jesus Caraça foi também um interessado pela “questão feminina” e sempre incentivou a intervenção das mulheres na sociedade. Quando em 1943, onze raparigas se matricularam no ISCEF e uma vez que o sistema de coeducação era proibido pelo regime, apoiou a criação de um núcleo cultural por elas formado... (1)

Uma ave que os ares esclarece
Sobre nossas cabeças aparece.
Costa da Caparica, Guida Lami, legenda de Bento de Jesus Caraça, 1933.
Casa Comum

A ligação de Bento Caraça ao PCP, não terá sido uniforme através dos anos nem acrítica. A reacção ironicamente amarga ao pacto de não agressão germânico soviético, celebrado entre Hitler e Estaline, surge numa carta a Guida Lamy, uma das suas mais queridas amigas, discípula e colaboradora, nos estudos matemáticos e, nomeadamente no apoio aos prisioneiros dos campos. No início dos anos 40, encontra-se de tal modo desiludido, nomeadamente dada a situação no PCP, que pensa seriamente emigrar como se evidencia na correspondência com Rodrigues Miguéis.

O trabalho na Cosmos e a emergência de novas perspectivas de unidade na luta contra o regime, reforçada com a evoluir da guerra mundial, reanimam-lhe a esperança e retomará a ligação ao PCP. Surge como um dos mais destacados fundadores do MUNAF, Movimento de Unidade Nacional Antifascista, em 1942, e do MUD, Movimento de Unidade Democrática, em 1945, de cuja comissão central será vice-presidente.

A adesão popular ao MUD excede todas as expectativas: até 24 de outubro de 1945, recolhem-se 50.000 assinaturas de apoio, só na cidade de Lisboa. Perante tal movimentação, o governo salazarista suspende toda a actividade do MUD, acusado de constituir um “elemento de subversão social”, um “movimento passional” que pretende derrubar o governo e restaurar o modelo político da primeira República.

Bento Caraça é atingido por um processo disciplinar a 10 de setembro de 1946, instaurado pelo Ministério da Educação Nacional sob a acusação de antipatriotismo do manifesto “O MUD perante a admissão de Portugal na ONU”, subscrito por muitos democratas e do qual Bento Caraça, Vice-Presidente da Comissão Central do MUD, fora co-autor com Mário Azevedo Gomes, Presidente da mesma Comissão.

Em outubro de 1946, Bento Caraça é demitido compulsivamente da função de Professor Catedrático, afastado de uma actividade docente e pedagógica brilhante.

Por este envolvimento, no qual produz importantes documentos de análise política, alguns ainda de espantosa actualidade, sofrerá diversos interrogatórios e detenções ainda que breves dado a agravamento progressivo do seu estado de saúde. Em 1946, a 3 de abril, é sujeito a interrogatório na Pide; a 13 de Outubro, interroga-o e coloca-o incomunicável durante cinco dias numa esquadra; a 13 de Dezembro, é preso de novo, desta vez no Aljube donde sai sob fiança.

Em 1948, sofre prisão domiciliária em virtude “de correr grave risco de saúde e de vida se for obrigado a sair de casa e submetido a regime prisional“ como atesta em atestado médico, o professor Francisco Pulido Valente, estado comprovado pelo médico da PIDE, Mira da Silva que se desloca a sua casa; a 23 de Fevereiro é interrogado pela PIDE no seu domicílio; a 19 de Março, a PIDE convoca-o para a a sua sede e notifica-lhe a ilegalização do MUD.

A Leitura, 1955, Abel Manta (1888-1982)
(grupo do consultório do professor Francisco Pulido Valente, representados (cf. Estrolabio): da esquerda para direita, sentados, Aquilino Ribeiro, Ramada Curto, Carlos Olavo, Pulido Valente, Alberto Caidera, em pé, Ribeiro Santos, Mário Alenquer, Lopes Graça, Manuel Mendes, Sebastião Costa, Câmara Reis e Abel Manta).
Museu de Lisboa

Bento Caraça é já então casado com a segunda mulher, Cândida Gaspar, a aluna que o levou a abandonar a longa viuvez do breve casamento com Maria Octávia, que durara menos de um ano. Com Cândida, que lhe devolve a paixão e a ternura, será também breve a vida. Ele sabe-o. A doença cardíaca, já de longa data, agravava-se. Por isso o olhar de profunda ternura com que segue os primeiros passos vacilantes de João, o seu filho, é um olhar pleno de nostalgia. Nostalgia do futuro. E nas últimas fotografias antes da morte, a 25 de julho de 1948, Bento Caraça devolve-nos o sorriso magoado dos que sabem que vão morrer.

Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930.
A partir de cima da esquerda:
Bento de Jesus Caraça, Sílvia Manta, Manuel Mendes, Cândida Caraça e Berta Mendes.
Casa Comum

O processo disciplinar, movido pelo governo de Salazar, que o afasta do ensino universitário, traz dificuldades económicas à família. Cândida, ela própria também perseguida, enfrenta, corajosamente, a situação. Licenciada em economia, lecciona, corre entre as aulas e a casa onde vive com Bento, o filho e o sobrinho, João, adolescente vindo do Alentejo por iniciativa do tio. Bento Caraça passa a dar lições em sua casa, como meio de subsistência.

Várias as provas de solidariedade prestadas por amigos conhecidos e desconhecidos. Em Novembro de 1946, um grupo de democratas de Lourenço Marques, perante a demissão de Caraça, cotiza-se e presta-se a enviar-lhe mensalmente a importância do seu salário como professor universitário, sublinhando que não é uma ajuda pessoal mas antes o símbolo da “sua solidariedade para com os companheiros da Metrópole equiparando-a ao ganha-pão que V. Exª conscientemente arriscara e perdera ou proporcionando-lhe a oportunidade de empregar o dinheiro na luta antifascista a bem de todos”.

A 24 de janeiro de 1947, Caraça responde grato pelo apoio moral e material, sendo que opta por “empregar o dinheiro na luta antifascista”. Em outubro de 1947, agradece a José Maria Coelho “a extrema gentileza que quis ter para comigo, da principesca oferta de um frigorífico”. Os amigos procuram mimá-lo. Ildefonso Nóvoa, que fora seu aluno no Instituto, carrega uma grafonola para que Bento ouça a música clássica que o levava, apaixonadamente, aos concertos.

Em sua casa reúnem-se democratas, debate-se a vivência política, planeiam-se estratégias da oposição. Estuda ainda. Escreve. Incessantemente. Adoece mais e mais. Amigos de longa data, vêm de longe, para o que sabem ser eles e ele – a despedida.

Bento de Jesus Caraça,
r
etrato imaginado enquanto criança

Ofélia Marques (1902-1952), CAM, Gulbenkian


Porque este homem de tão intenso comprometimento político cultivou sempre o encontro com os outros. É, uma relação umbilical entre cultura e política que orienta otrajecto pessoal de Bento de Jesus Caraça e do seu grupo de amigos, onde se encontram os mais notáveis intelectuais e lutadores do seu tempo. Entre eles, o médico e professor Luís Ernâni Dias Amado, companheiro desde o liceu.

Também colega de liceu, amigo profundo, Carlos Botelho que lhe (nos) devolverá os olhares mais belos da pintura portuguesa sobre a cidade e o rio, esse corpo amante de Lisboa, Rodrigues Miguéis, Abel Salazar, Câmara Reys, Ferreira de Macedo. E ainda António Lobo Vilela, companheiro desde os bancos da escola primária.

Surgem depois Manuel Mendes, um dos seus mais íntimos confidentes e Berta Mendes que serão os padrinhos de João Gaspar Caraça, filho do segundo casamento.

Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930.
A partir da esquerda: Berta Mendes, Fernando Lopes Graça
(1906-1994), Ofélia Marques (1902-1952), Bernardo Marques (1898-1962), Manuel Mendes (1906-1969)
, Bento de Jesus Caraça, e Cândida Caraça (e os cães Anica e Maigret).
Casa Comum

Artistas como Avelino Cunhal, Huertas Lobo que lhe traça o perfil esvanescente, Abel Manta que esboçara o seu retrato póstumo, Mário Dionísio, Francisco Keil do Amaral, Maria Keil, Lopes Graça, Alice Manta, João Abel Manta, que lhe desenhará o perfil, Guida Lamy fazem parte do seu grupo de amigos. (2)


(1) Associação Bento de Jesus Caraça
(2) Bento de Jesus Caraça: Cultura e emancipação, um problema ainda do nosso tempo

Artigos relacionados:
Sarah Affonso, postais da Costa a Manuel Mendes (1930-1931)
Retratos com Bá e Manuel Mendes

Mais informação:
Escola Profissional Bento de Jesus Caraça (Porto)
Manuel Mendes (Fundação Mário Soares e Maria Barroso/Casa Comum)

Século XX português: Os Caminhos da Democracia (Fundação Mário Soares e Maria Barroso)
Obras editadas na Biblioteca Cosmos
Bento Jesus Caraça - Testemunho de Alvaro Cunhal (PCP)
Bento de Jesus Caraça: Cultura e emancipação, um problema ainda do nosso tempo
Revistas de Ideias e Cultura

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Retratos com Bá e Manuel Mendes

Manuel Mendes (1906-1969)

Escritor, jornalista, crítico de arte e tradutor, Manuel Mendes nasceu em Lisboa, em 1906, e faleceu na mesma cidade, em 1969. Cultivou também a escultura, sendo que a «sua escultura vai para além do amadorismo […]. Os bustos e as cabeças de Manuel Mendes acusam, na verdade, uma grande serenidade e severidade que os dignificam.» (Margarida Marques Matias). Colaborador da Seara Nova, conviveu desde cedo com Raúl Proença, Câmara Reis e António Sérgio e Raul Brandão, «seu mestre e paradigma literário» (Mário Soares), de quem foi um divulgador empenhado.

Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930.
A partir da esquerda: Berta Mendes, Fernando Lopes Graça
(1906-1994), Ofélia Marques (1902-1952), Bernardo Marques (1898-1962), Manuel Mendes (1906-1969)
, Bento de Jesus Caraça, e Cândida Caraça (e os cães Anica e Maigret).
Casa Comum

Como aluno da Faculdade de Letras participou na greve académica de 1931, tendo, a partir desta data, tomado parte em, praticamente, «todas as conspirações, revoluções e tentativas revolucionárias contra a ditadura […]. Libertou, de armas na mão, um companheiro preso que estava a ser torturado, num assalto bem sucedido à esquadra da polícia do rego.» (Mário Soares) Fez parte da efémera Frente Popular, do MUNAF, da Resistência Republicana e da Acção Socialista Portuguesa; foi um dos promotores do MUD, tendo sido membro da sua comissão central, e integrou as candidaturas de Norton de Matos e de Humberto Delgado à Presidência da República.

Costa da Caparica, década de 1930.
A partir da esquerda:
Fernando Pires, Berta Mendes, Manuel Mendes, Abílio Pires, Jaqueline Pires, Afonso Costa (filho), Irene Worm e seu filho João Worm.
Casa Comum

A sua obra mais conhecida, Pedro: romance de um vagabundo (1954), foi adaptada ao cinema, por Alfredo Tropa, com o título de Pedro Só (1972). Bairro (1945), Estradas (1952), Alvorada (1955), Segundo livro do Bairro (1958), Terceiro livro do Bairro (1959), Assombros (1962), Roteiro sentimental (1965-1967) e História natural (1968) são outros títulos de sua autoria. No campo das artes plásticas escreveu monografias sobre Machado de Castro (1942), Rodin (1945), Dordio Gomes (1958), Abel Manta (1958), Carlos Botelho (1959), Diogo de Macedo (1959), Jorge Barradas (1962) e Francisco Smith (1962), para além Considerações sobre as artes plásticas (1944), Lembranças de um amador de escultura (1955) e Raúl Brandão e Columbano (1959).

Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930.
A partir de cima da esquerda:
Bento de Jesus Caraça, Sílvia Manta, Manuel Mendes, Cândida Caraça e Berta Mendes.
Casa Comum

Debruçou-se ainda sobre as biografias de Antero de Quental (1942), Herculano, (1945), Oliveira Martins (1947) e Aquilino Ribeiro (1960). Deixou colaboração em vários jornais e revistas, como República, Seara Nova, Revista de Portugal e Vértice. (1)

Na Caparica, Pinhal, Abel Manta, 1942.
MNAC/Casa Comum

Historicamente lembrado pela militância política antifascista, o legado deste intelectual oposicionista, integrado na Seara Nova, alcançou notoriedade pública pela obra de jornalista, romancista, contista e ensaísta, e pela criação de grupos de resistência, cidadania e defesa de artistas.

Desenho em Caricaturas portuguesas dos anos de Salazar, João Abel Manta, ed. O Jornal, 1978.
Exposição "A Máquina de Imagens", João Abel Manta, Fundação D. Luís


A clandestinidade e as prisões políticas que resultaram desta articulação do combate político com a produção literária ofuscaram, porém, a importância do seu envolvimento inicial com a escultura e o desenho, mantidos de modo irregular, e do papel pioneiro como crítico e teórico da arte plástica moderna em Portugal... (2)

Retrato imaginado enquanto crianças de Manuel e Berta Mendes.
Ofélia Marques (1902-1952), CAM, Gulbenkian

... Casa Museu Manuel Mendes (nunca aberta ao público e hoje extinta), no Restelo. (3)


(1) Biblioteca Nacional de Portugal
(2) Centro de Arte Moderna Gulbenkian
(3) Moda & Moda, Museu do Chiado, A Sedução do retrato

Artigo relacionado:
Sarah Affonso, postais da Costa a Manuel Mendes (1930-1931)

RTP Arquivos:
Manuel Mendes: o Melhor de Todos Nós
... depoimento do político José Magalhães Godinho sobre o pensamento do escritor Manuel Mendes, lamentando este não ter vivido para assistir ao 25 de Abril; busto de Manuel Mendes do escultor Barata Feyo; fotografias de homens das Letras; retrato do escritor pintado por Dórdio Gomes; Casa Museu Manuel Mendes no Restelo...

Mais informação:
Casa Museu Manuel Mendes (Google search)
Colecção Manuel Mendes (MNAC)
Manuel Mendes (Fundação Mário Soares e Maria Barroso/Casa Comum)

Século XX português: Os Caminhos da Democracia (Fundação Mário Soares e Maria Barroso)
Obras editadas na Biblioteca Cosmos

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Regresso ao bairro do Costa Pinto

Foi o António Maria, antecessor do Pontos nos ii, um dos jornaes que o publico mais destinguiu a subscripção destinada a soccorrcr os pobres de Caparica victimados por mais dum terrivel desastre.

Vista da Costa de Caparica, ed. desc. (Martins & Silva) Bairro do Costa Pinto, década de 1900.
Delcampe

Ao tempo estampou aquelle jornal o desolado aspeto da mísera povoação, e por isso nos parece interessante apresentar hoje o novo aspecto d'esses areaes ermos, ainda ha pouco, do mais insignificante conforto, aspecto agora risonho, com as suas despretensiosas mas confortaveis habitações, onde se abrigam mais de dusentos pobres que se atrophiariam ao desamparo se lhes não acudisse como accudiu a beneficencia publica, tão bem aproveitada e secundada pelo esforço d'uma iniciativa particular para a qual serão poucos toda a gratidão e todo o elogio. (1)

Costa da Caparica, As novas edificações, 1887, desenho de João Ribeiro Cristino.
Hemeroteca Digital

O Occidente publica no seu numero de hoje, uma gravura das ruinas do incendio de Caparica, uma outra gravura das novas edificações e um retrato de Jayme Arthur da Costa Pinto, nome ligado de ha muito a todos os bellos melhoramentos que se teem feito nestes ultimos annos, do outro lado do Tejo. E pedem-me um artigo para acompahhar essas tres gravuras, artigo meio bigraphico meio historico, que descreva o perfil simpathico desse bello rapaz e conte o apparecimento d'esses quarterióes de casas, que se erguem, todas garridas, junto àI praia, ouvindo o bater compassado das ondas nas suas pedras.

Eu não sei se conhecem Caparica e não lhes levo a mal. que a não conheçam. Eu tambem a não conhecia, aqui ha dois mezes. Uma manhã appareceu-me Jayme Pinto, convidando-me a ir ate lá. Distribuiam-se as ultimas casas aos pescadores que ainda estavam sem moradia, depois do incendio que lhes devestára as toscas cabanas, onde viviam centenas de familias.

As novas habitações da Costa de Caparica, dezembro de 1886, desenho de Bordallo Pinheiro.
Hemeroteca Digital

Quem vier ainda hoje á praia, e olhar em torno d'ella para uns poucos de casebres antigos, que ainda lá existem, cobertos de fetos, e depois reparar nas novas editficações, perfeitamente modernas, muito simples e multo aceiadas, que formam duas ruas da praia, perceberá facilmente qual o contentamento d'aquella pobre gente, que vendo um dia destruidas pelas chammas as suas míseras habitações, julgando por momentos inteiramente perdidos os seus parcos haveres, se encontra poucos meses depois — graças á caridosa iniciaiva de Jayme Pinto secundada brilhntemente por um grupo de cavalheiros presididos por El Rei, — inquilinos de umas casinhas cuja architectura e cuja divisão iam muito além da sua espectativa, com quartos separados, elles que dormiam n'uma miscellanea pouco perfumada, e uma cosinha aspeciai, coitados, que antigamente faziam o jantar junto á enxerga onde dormiam!

— Até temos sala, dizia nos uma pobre velhinha, toda ufana, satisfeita do seu pequenino lar. E mostrava-me urna das divisões, com duas cadeiras e uma roca.. Ern alli que ella fiava o linho, n'essas escuras noutes de inverno, á luz fraca da lendaria candeia, quando cá fora o vento sopra rijo e os pobres pescadores descantam tristes da sua faina diurna, á espera de melhor tempo. E que vida tão curiosa, a dessa pobre gente, alheia completamente ao resto do mundo, gente que vive annos e annos, frente a frente com o sol que doura as conchas das praias e as ondas que as lambem, ignorante mas feliz, que não conhece, é verdade as maravilhas da sciencia e o encanto das artes, mas .que em compensação nunca leu um artigo politico, nem uma noticia de Hig life.

As novas habitações da Costa de Caparica, dezembro de 1886, desenho de Bordallo Pinheiro.
Hemeroteca Digital

Ha apenas um nome de que hoje se não esquecem, uma obra que lhes deve lembrar a todo o instante, se a ingratidão não tiver já minado aguelIas consciencias sãs e boas, — o nome de Jayme Pinto e o grande serviço que elle lhes prestou.

A transformação operada no aspecto de Caparica foi completa. O incendio nada respeitara, queimara uma a uma os pobres casebres, arrasara quasi inteiramente todo o bairro.

Costa Pinto era então deputado por Almada, e como deputado que era — e ninguém melhor do que elle o sabia ser para os seus constituintes — tratou logo de arranjar soccorros para tanta miseria. Ajudado então por varios cavalheiros, cujos sentimentos caritativos todos conhecem, titulares, artistas, engenheiros, burocratas e jornalistas, entre os quaes nos lembramos do marquez de Fronteira, engenheiro Magalhães, Brito Aranha, Eduardo Coelho, Antonio Castanheira, dr. Cunha Seixas, formou. se a commissão. El-Rei accedeu a presidil-a, e foi essa commissão tendo á sua frente o monarcha, que promoveu subscripções, que angariou esmolas, que pediu donativos, e que por fim mandou edificar n'aquelle areial immenso de Caparica meia duzia de quarteirões de casas onde vivem mais de cem familias.

As novas habitações da Costa de Caparica, dezembro de 1886, desenho de Bordallo Pinheiro.
Hemeroteca Digital

Mas a caridade entre nós, apezar de toda a sua boa vontade é fraca. tem poucos recursos, e a obra que se propunha fazer, era das que reclamavam maior receita. Pedro Correia então, por intermedio do seu escellente Jornal o Correio da Europa que todos os quinze dias leva aos nossos compatriotas do Brazil, a resenha dos acontecimentos mais importantes de Portugal, foi accordar lá no Imperio o coração delles implorandolhes uma esmola para os infelizes pescadores, seus irmãos, cahidos de repente por um fatal desastre, na mais horrorosa das misenas, e sempre generosos ouviram-o e mandaram então para a patria o fructo das suas subscrições.

E foi esse dinheiro junto ao que dentro do pais se apurou, que serviu para custear n despesa dessas edificações, que a commissão destribuiu ha mexes pelas familias mais necessitadas de Capariea.

E não deixa de ser curiosa a maneira como se fez essa distribuição. Pensarão muitos, sobretudo os espiritos incredulos do bem e da generosidade, que a ideia de Costa Pinto teve maior alcance do que a simples caridade.

"Um deputado, com os demonios! dirão os scepticos, não é sujeito que dê ponto sem nó. As estradas são serviços imponentes ás localidades, mas quem ha ahi que julgue que se dá assim do pé para a mão uma estrada, quanto mais um bairro inteiro!"

Costa da Caparica, vista aérea, 1930/1932.
Arquivo Municipal de Lisboa

Pois dão-se, ou pelo menos deu-as Jayme Pinto, sem ter sequer em mira a facilidade de arranjar mais meia duzia de votos para as suas candidaturas do porvir; deu-as, porque essas dadivas alegravam-o, satisfaziam-lhe o desejo do seu animo, bom, caritativo, serviçal, que fez com que elle passasse quasi á posteridade juntamente com a Outra Banda, na sua faina ingloria mas generosa de arranjar para o circulo que representava em cortes todos os melhoramentos, até os mais difficeis, de que elle carecia.

A forma como as casas foram distribuidas ahi esta para o provar. Essa distribuição não a fez elle, não a fez tão pouco qualquer dos seus collegas da commissão, fizeram-a os arraes de Caparica, os mestres, os chefes dos pescadores, que conheciam de perto aquella gente e que formaram de combinação a lista com os nomes dos mais pobres.

E, ponto importante ainda para os scepticos, esses pobres... não são eleitores.

Jayme Pinto chegou a ter, como ligeiramente notamos acima, a monomania dos melhoramentos para Almada. Ninguem melhor do que elle defendeu até hoje no parlamento portuguez os exigencias dos seus constituintes, e, francamente, quando um homem pugna de tal lorma pela terra que o elegeu como seu representante em cortes, imaginasse e muito bem que essa terra lhe dará, como justa recompensa a tão enormes serviços, a sua representação em côrtes... pelo menos emquanto houver estradas a fazer.

Costa da Caparica, ed. José Nunes da Silva s/n, década de 1940.
Bairro dos ílhavos ou do Costa Pinto vista tomada do Hotel Praia do Sol.
Delcampe

Puro engano! Parece que não conhecem essa caprichosa senhora que dá pelo nome de popularidade, e que Augusto Harbier descreveu já n'um assaz conhecido verso! Mas que importa! Melhor do que as listas que poderiam cahir na urna eleitoral, ahi tem Jayme Pinto as bençãos d'esses pobres soccorridos, a recompensal-o da sua obra meritoria e digna.

E nós vimos bem quanto esses infelizes lhe querem, na alegria com que o abraçavam commovidos, nessa rude mas sincera gratidão de campo-mos, que afinal são os unicos que sabem realmente ser gratos.

João Costa. (2)

quinta-feira, 30 de maio de 2019

Barcos meia-lua (Aveiros, não Saveiros...)

No imenso areal o barco da duna, sempre o mesmo barco, maior ou mais pequeno, próprio para a arrebentação, de proa e popa erguidas para o céu. (1)

Costa da Caparica Saveiros Meia-lua da Caparica  Marinha de Pesca.
Comissão Cultural da Marinha

Com o nome de aveiros, e não de saveiros, são estes barcos denominados na mesa do imposto chamada do Tragamalho. 

Saveiro, alijo e savara, gravura, João Pedroso, 1860.
Hemeroteca Digital

Talvez seja corrupção do primitivo nome que tinham quantos barcos vem ao Tejo da cidade de Aveiro, que são muitos. (2)

Com o nome de aveiros, e não de saveiros...
Hemeroteca Digital

Também as populações do litoral se deslocam: pescadores de Ílhavo e Ovar fundaram colónias, como a Costa da Caparica, onde se encontraram com algarvios, vindo depois engrossar a mesma aglomeração gente de Sesimbra e das margens dos esteiros do sul do Tejo [...]

Saveiro da Costa.
Caderno de Todos os Barcos do Tejo, tanto de Carga e transporte como d'Pesca, por Joao de Souza, 1785.

Os saveiros da Costa da Caparica, em forma de crescente, reproduzem um dos tipos de embarcação da Ria de Aveiro. (3)

Barco meia lua da Costa da Caparica usado na pesca da sardinha com rede de arrastar para terra.Construidos primitivamente em Ílhavo (Aveiro) navegavam com uma vela de pendão e um leme provisório que chegados à Caparica eram substituidos por remos.
Origem do fabrico Aquário Vasco da Gama.
Museu de Marinha

Quando os pescadores de Ovar abandonaram, no século XVI, a pesca na Ria e se dedicaram aos trabalhos do mar, fixaram-se primitivamente no lugar onde hoje se ergue a praia do Furadouro, que foi a sua primeira colónia.

Depois, nas estações próprias, partiram para o norte e para o sul, procurando locais para exercer a pesca e estabelecendo outras colónias entre o Douro e o Vouga e, finalmente, atingiram locais do litoral português cada vez mais afastados da terra natal. 

Os pescadores da Costa da Caparica (detalhe), Adriano de Sousa Lopes (1879 - 1944).
cf. estudo para "Quadro de Os Pescadores da Costa da Caparica, no "atelier" de Sousa Lopes" (1927).
Exibido na exposição "Efeitos de luz" (2015) no MNAC (Museu do Chiado)

Nos séculos XVI e XVII, estavam na Torreira e nas Areias mas, durante estes dois séculos, não se fixam nos lugares mencionados, regressando à vila após as fainas marítimas. Na primeira metade do século XVIII, trabalham como marmoteiros na Afurada, numa colónia onde estão já presentes também 92 mulheres. 

Na segunda metade do século XVIII, chegam à Caparica, Santo André e Olhão, para onde eram transportados nos caíques algarvios que se dirigiam a Aveiro para vender os carregamentos de peixe salgado e, de regresso, levavam para o Algarve as bateiras dos pescadores vareiros e murtoseiros, com as suas redes e aprestos. (4)

Barco no Tejo com mau tempo, Emeric Essex Vidal (1791-1861), 1833.
artnet

Nas artes de arrastar para terra figuram as xavegas do Algarve, os saveiros e as meias-luas, de Espinho, Furadouro, S. Jacintho, Costa Nova, Mira, Tocha, Buarcos, Lagos, e outros logares, desde o sul do Douro até a Vieira, reapparecendo, mais abaixo, na costa de Caparica e da Galé, e na praia de Sines. (5)

Saveiro da Costa de S. Jacinto (Aveiro) usado no lançamento das artes de arrastar para terra.
Origem do fabrico Aquário Vasco da Gama

Museu de Marinha

Os "meias-luas" eram antigamente construídos em Ovar pelo construtor Bernardino Gomes. Eram muito mais pequenos do que o "barco do mar" que pode, ainda hoje, ser encontrado em Aveiro.

Saveiro da costa norte, "Sempre vim", 1920.
Museu de Marinha

Os primeiros barcos eram, apesar de tudo, bastante grandes: o seu comprimento era de 10,80 metros e a sua boca 2,85 metros,como está representado num modelo da Colecção Seixas no Museu de Marinha, construído à escala de 1:25, cujas linhas e plano de construção foram retirados por José Pessegueiro Gonçalves em 1920 de uma embarcação existente denominada "SEMPRE VIM". 

Saveiro da costa norte, "Sempre vim", 1920.
Museu de Marinha

Estas grandes embarcações eram construídas com quatro bancadas para os remadores e as posteriores, mais pequenas, e em menor número, que mediam 8,50 x 2,40 metros aproximadamente, eram construídas com três. 

Saveiro da costa norte, "Sempre vim", 1920.
Museu de Marinha

A parte de ré do casco era deixada aberta para permitir espaço no qual era alojada a rede, as suas numerosas poitas e flutuadores de cortiça e os cabos de puxar. (6)

Meia lua "Ha-de ser o que Deus Quiser", TR-306-L. Registada na Delegação Marítima da Trafaria, em 18 de setembro de 1946 por Vitorino José, que a mandou construir ao carpinteiro naval, Marcolino Ferreira, no estaleiro de Porto Brandão. Destinava-se à pesca local com arte de navegar.

Meia lua da Costa da Caparica, "Ha-de ser o que Deus Quiser", 1946.
Revista da Armada

Em 04 de março de 1950 passou a ser propriedade de António Xavier Carrapinha e António Pinto Ribeiro.

Marintimidades

Lotação: 12 homens; Tonelagem: 4,155. Comprimento: 8,50 m (8,42 m Documento da Delegação Marítima); Boca: 2,40 m (2,35 m Documento da Delegação Marítima); Pontal: 0,80 m (0,84 m Documento da Delegação Marítima). (7)

Outro exemplo expressivo, captado também nos anos 60, é a proa da barca da arte xávega de Monte Gordo. 


Barca de pesca em meia lua do Algarve na zona de Monte Gordo.
Museu de Marinha
No beque, uma cabeça de cobra.

Proa da barca de Monte Gordo, anos 60.
Marintimidades

Local para a cabeleira, ocasionalmente retirada. Olhos bem delineados, postados na proa, sem delimitação da cara. (8)


(1) Raul Brandão, Os Pescadores, Paris, Ailland, 1923, 326 págs, 127,7 MB
(2) Hemeroteca Digital: Archivo Pittoresco, 1860, n° 41, pág. 325
(3) Orlando Ribeiro e Hermann Lautensach, Geografia de Portugal, comentários e actualização de Suzanne Daveau, Lisboa, Edições Sá da Costa, 1999 -1987-, volume III, pp. 754-6 cf. Clara Sarmento, Práticas, discursos e representações da cultura popular portuguesa
(4) Clara Sarmento, Práticas, discursos e representações da cultura popular portuguesa
(5) Ramalho Ortigão, O culto da arte em Portugal, Lisboa, A.M. Pereira, 1896
(6) Revista da Armada
(7) Museu de Marinha
(8) Marintimidades

Artigos relacionados:
Os Meia Lua da Costa de Caparica
Lugar da Costa de Caparica, 12 de setembro de 1833
Arte xávega na Costa da Caparica a Património Imaterial
Ílhavos
etc.

Mais informação:
Ana Maria Lopes, Marintimidades, O meia-lua: da praia para o Museu?...
Leitão, Manuel Leitão, Revista da Armada, Dezembro 2002, (pág. 397, ou pesquisar "Caparica")
Senos da Fonseca, Factos & História 
Senos da Fonseca, A arte da xávega
Caxinas a freguesia
etc.

terça-feira, 28 de maio de 2019

"Deus te guie"

De novo o Deus te guie fez proa ao mar, e o calador foi folgando cabos e pondo coiros a flutuar de oito em oito cordas. O arrais pediu fósforos, chegou o lume ao morrão do caldeiro e fez sinal para terra. Deu o brado de "ninguém reme!" e apagou a chama. 

Costa da Caparica, Deus te guie.

Houve um silêncio no Deus te guie... E o espadilheiro bateu com a pá na água.

— Abriu! Abriu peixe! — chamaram os remos, batendo cada um, depois, com gana. 

Mas os arrais berrou: — Ninguém bate! Aqui, quem dá ordes!?


Desenho do saveiro Deus te guie da Costa da Caparica.
Museu de Marinha
Fez-se tamanho silêncio que só o marulho das águas tem rumor. A bica da vante está voltada ao sul. As mãos do calador atam a corda à rede. Vão descer as primeiras malhas... Todos se descobrem. 

Desenho do saveiro Deus te guie da Costa da Caparica.
Museu de Marinha


E o arrais diz: — Vai em louvor de Nossa Senhora do Cabo! (1)


(1) Romeu Correia, Calamento, Lisboa, Editorial Minerva, 1950

Artigo relacionado:
Arte xávega por Romeu Correia

Leitura relacionada:
Ricardo Salomão, Meia-Lua: O Saveiro da Costa da Caparica, Revista MUSA 4, 2014

terça-feira, 12 de junho de 2018

Caparicanas

Ercília Costa (1902 - 1985)

No inicio do nosso século havia um pescador caparicano que nas horas de ócio dedilhava a guitarra. Tocava e desabafava, inconformado com aquilo que, na sua singeleza, chamava triste sina...

A Praia do Sol, As primitivas barracas dos pescadores, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 111
Imagem: Delcampe

Havia constituído lar, e nele nasceram três meninas. Uma, a mais viva, de nome Ercília, muito cedo brincou com a guitarra e cantarolou, numa inocente imitação do progenitor. Aos quatro anos, acompanhava a mãe quando esta viajava até Lisboa, e durante a travessia do Tejo, nos vapores da carreira, lá os passageiros achavam graça às cantigas da pequenita, presenteando-a com moedas de cobre. Foram os primeiros aplausos e os primeiros ganhos da futura actriz-cantora.

Mais mulherzinha, veio residir em Lisboa e aprendeu o ofício de costureira de alfaiate. E tudo parecia ser mais uma rica vocação abortada pelo condicionalismo do dia-a-dia.

Ercília Botelho Farinha Salgueiro nasceu na Costa de Caparica a 3 de Agosto de 1902. Filha de Manuel Farinha e de D. Virgínia Maria Botelho. O apelido de Salgueiro adoptou-o apos o casamento com o funcionário bancário José Salgueiro, falecido em 27 de Junho de 1977.

Mas a vocação da jovem Ercília não se iria perder, e o interregno acabaria no dia em que, estando a trabalhar no oficio, alguém (ouvindo-a cantar...) lhe pergunta se queria tomar parte num coro de alunos do Conservatório Nacional, ali perto à Rua dos Caetanos. Tratava-se do Auto do Fim do Dia, prova de exame que teria lugar dali a dias no Teatro de S. Carlos.

O mestre da oficina dispensou-a por umas horas, e a bela voz de Ercília logo foi notada no improvisado coro. Dirigiam os ensaios o Maestro Hermínio do Nascimento, na parte musical, e Mestre António Pinheiro, quanto ao poema. E todos foram unânimes em classificar de esplêndida aquela voz surpreendida numa oficina de alfaiate.

Várias circunstâncias impediram a incipiente cantora de se cultivar. Rapariga pobre, nunca poderia empatar sete anos nos estudos. Mas uma nova oportunidade iria surgir pouco depois e, em 1928, estimulada pelos actores Mario Campos e Eugénio Salvador teste ao tempo doublé de futebolista do 1." team do Sport Lisboa e Benfica). começou a cantar o fado e outras canções.

Ercilia, que, entretanto, se baptizara como artista, unindo o primeiro nome ao da sua terra natal, passou a ser anunciada e conhecida por Ercília Costa.

Ercília Costa.
Imagem: du bleu dans mes nuages

Primeiro cantou fados no Olimpia, de Lisboa. Ferro de Engomar, em Benfica. e nos conhecidos retiros da Capital Café Luso, Solar da Alegria e Retiro da Severa. Dois meses após a sua estreia, gravou discos para a Brunswich e Odéon e, terminada essa tarefa, estreou-se no teatro, contratada pelo empresário José Loureiro.

Entretanto, recebia o cartão de artista de variedades. No Trindade, estreou-se na revista A Cigarra e a Formiga. Tempos depois, na Feira da Luz, no Apolo; no Variedades, com Satanela, Raul de Carvalho e Assis Pacheco no Canto da Cigarra; no Coliseu dos Recreios, na História do Fado; no Avenida, no Fogo-de-Vistas; no Maria Vitória, no Rei dos Fadistas: de novo no Coliseu, no Fim do Mundo e Última Maravilha.


Em 1931, visitou as Ilhas, tendo representado em todos os teatros da Madeira e Açores. Depois ici percorrendo todos os palcos do Minho ao Algarve. Em 1934, esteve presente em Vigo, nas festas luso-galaicas, aquando da inauguração da estátua a Camões: e segue logo para Madrid, onde actua em teatros e grava um disco no mesmo dia e na mesma firma em que gravava o argentino Carlos Gardel.

Ercilia é do tempo em que o artista actuava sem o auxílio do microfone. Então era exigido ao cantor, para lá do valor e da qualidade da peça a executar, um domínio absoluto sobre o auditório.

A forte personalidade do cantor tornava-se um factor de extrema importância. Ercilia Costa tinha esta última qualidade em elevado grau, ao ponto de, no enorme Coliseu dos Recreios, com a lotação esgotada (6000 espectadores), quando ela cantava, não se ouvia sequer uma mosca...

Um aspecto da formidável enchente do Coliseu dos Recreios, em cujo palco foi representada a revista O Fim do Mundo, com a participação de Ercília Costa e Leonor d'Eça, 1934.Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

E, como a sua concentração, nesses momentos de transe, a levava, mimicamente, a pôr as mãos como numa prece, alguém, impressionado, disse um dia que ela parecia uma santa a cantar o fado...

Diante do microfone, Ercília foi uma pioneira: no Posto Radiofónico CT1AA, de Abílio Nunes dos Santos, dos Grandes Armazéns do Chiado, foi o primeiro artista a actuar para ser ouvido no estrangeiro.

A nossa biografada, para lá do valor das orquestras que com ela colaboraram em inúmeros espectáculos e audições, pede que não nos esqueçamos do espantoso Armandinho, cuja guitarra por si dedilhada se transformava num coração humano com vida própria.


Quando do seu funeral, Ercília pediu licença à viúva do grande guitarrista para lhe beijar as mãos.

Continuando a citar os vários países e lugares onde a actriz-cantora actuou, temos que: em 1936, foi pela primeira vez ao Brasil, integrada na Companhia de Revista Adelina Abranches-Eva Stachino; por mais duas vezes visitou este país, em 1938 e 1945; nestas digressões percorreu de lés a lés a grande nação sul-americana.

Em 1937, esteve na Exposição Universal de Paris, actuando numa récita de gala no Teatro Campos Elisios, cantando ainda na emissora Rádio-Parisiènne. Em 1939, cantou na Exposição Mundial de Nova Iorque, demorando-se um ano na América do Norte, onde visitou 26 estados, indo até à Califórnia. Voltou aos Estados Unidos oito anos depois. Bing Crosby, Gary Cooper, Leo Carrillo e outros astros de Hollywood foram seus admiradores, presenteando-a com elogiosos autógrafos nas suas fotografias.

Ercilia Costa foi, no seu tempo, o artista português que gravou mais discos, sendo ainda (e isto constitui uma curiosa revelação...) a autora de várias músicas dos seus fados.

Interpretou dois filmes: Amor de Mãe, para a Aguia Filme, e Madragoa, de Perdigão Queiroga.




Leonor de Eça (1905 -1940)

Leonor da Cunha Eça Costa e Almeida veio ao mundo na Caparica a 8 de Agosto de 1905. Filha de João Lopo da Cunha de Eça e Almeida e de D. Maria Madre de Deus Dinis Almeida.

Leonor de Eça,
Margarida no filme As Pupilas do Senhor Reitor,
Leitão de Barros, 1935.
Imagem: Hemeroteca Digital

Actriz teatral e cinematográfica. Estreou-se em Abril de 1926 no Teatro Nacional, substituindo a actriz Ester Leão na protagonista de O Amor Vence, onde obteve êxito.

Desempenhou cerca de duas dezenas de papéis neste palco, dirigido por Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro. Foi duas vezes ao Brasil e trabalhou em quase todos os teatros de Lisboa, Porto e outras cidades.

A chegada, a Lisboa, da artista brasileira Aracelis Castor Bastos, na foto Estêvão Amarante, Aracelis Castor Bastos, Maria Velez, Maria Castelar, Leonor de Eça, Raul de Carvalho, 1936.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

No cinema, toma parte nos filmes As Pupilas do Sr. Reitor, de Leitão de Barros, e Pão Nosso, de Armando de Miranda. No primeiro filme foi premiada no Rio de Janeiro pelo seu desempenho de "Margarida". (2)




(1) Correia, Romeu, Homens e Mulheres vinculados às terras de Almada, (nas Artes, nas Letras e nas Ciências), Almada, Câmara Municipal de Almada, 1978, 316 págs.
(2) Idem 

Informação relacionada:
Interpretações de Ercília Costa
Leonor de Eça no Dicionário do Cinema Português de Jorge Leitão Ramos