terça-feira, 10 de março de 2020

Era bom que trocássemos algumas ideias sobre o assunto

E ei-los assim a altercar a travessia do Sado, alheados dos golfinhos, a caminho do seu primeiro dia de férias, como sempre, na Costa da Caparica, em Santo António, num rés-do-chão que arrendavam há anos a uma velha rabugenta, proprietária de muitos gatos, cujo odor continuava a impregnar a alcatifa, ainda que no Verão estivessem carinhosamente recolhidos noutro lugar qualquer, para dar lugar a veraneantes. E, por ora, ponto final.

Costa da Caparica.
Delcampe

Joel Strosse tinha agarrado numa revista francesa, Ça Ira! E procurava concentrar-se num artigo intitulado “La gauche post-moderne, une déconstruction em marche?”, mas não conseguia passar do primeiro parágrafo. 

Era à tarde, cirandavam moscas em de permeio, umas melgas franco-atiradoras, prontas a atacar pela calada da noite, com aquele ruído característico da Fórmula 1, mais irritante que as alergias da matadura.

Costa da Caparica.
Delcampe

[...] pela janela gradeada via passar os veraneantes que regressavam da praia, dobrados ao peso dos guarda-sóis, basto enfadados , num carreiro sem fim. Pareciam zombies, de carnadura flácida, jeito mortiço e olhar vazio. 

Esta época obriga as pessoas a ir para a praia, a aturar a incomodidade de areias peganhentas, águas geladas, golpes de vento, bafos de multidão, peixes venenosos, miúdos turbulentos, sal na pele, transpiração, queimaduras, insolações, chatices, para confirmar que as práticas rituais só são válidas com algum desconforto. Há que prestar uma contrapartida pela conformação ao social. Está estabelecido pelas leis férreas do planeta.

Costa da Caparica.
Delcampe

[...] Cremilde, sentada num sofá estampado de flores, cujos castanhos e cinzentos não se sabia bem se eram obra do artista desenhador ou do uso continuado, ia folheando a Elle e perorando destarte:

─ Vem aqui que as varizes não têm cura. A operação pode aliviar um bocado mas cura é que não há. É um médico que diz. Traz fotografia e tudo.

Costa da Caparica, década de 1980.
Delcampe

Joel chegou-se à janela com o intuito de baixar a gelosia, tarefa árdua, científica e complicada, com aqueles fios todos num emaranhamento marujo. [...] As ruas ficavam cheias de gente, [...] os contentores transbordavam de lixo [...] 

Costa da Caparica, vista aérea, década de 1980.
Delcampe

Ainda por cima, havia bichas no supermercado e o ambiente estava impregnado por fumos de churrasco de frango dos restaurantes improvisados, geralmente governados por bigodaças imundos, com barretes às três pancadas, muito refractários às inspecções das actividades económicas [...] (1)


(1) Mário de Carvalho, Era bom que trocássemos algumas ideias sobre o assunto, ed. Caminho, 1995

quarta-feira, 4 de março de 2020

Sibylla Blei, Billy Lieben

Sibylla Blei é quase desconhecida. Pequena maravilha — ao mesmo tempo que foi a filha de um bem conhecido escritor a sua carreira com actriz foi demasiado curta para deixar traços maiores. O biógrafo pode recordar que ela foi a tradutora de uma novela (erradamente) atribuida a Oscar Wilde. Catálogos de bibliotecas e a Internet referem um catálogo de livros, que na maior parte foram propriedade do pai, Franz Blei, doados à Biblioteca Nacional de Portugal por Sibylla Blei e Sarita Halpern.

Sibylla Blei fotografada por Trude Fleischmann c. 1924.
MutualArt

M. A. Pinto Correia [cf. Ein grosses Bestiarium der Weltliteratur. Franz Bleis Büchersammlung in Lissabon. In: Franz Blei: Mittler der Literaturen. Hrsg. von Dietrich Harth. Hamburg: EVA 1997, 213–222] contribuiu com um esboço biográfico de ambas as mulheres para essa bibliografia. 

Mais recentemente, Sibylla Blei foi interpretada como um tipo de mulher lésbica emancipada [...] (1)

Sibylla Blei fotografada por Trude Fleischmann c. 1924.
MutualArt

Fotografias antigas: Billy sempre na proximidade do mar, recostada na amurada de um navio e quase tombando sobre as ondas, ou destacando-se numa paisagem mediterrânica de sol e palmeiras; Billy no círculo de amigos, como ela emigrados em Espanha, ao encontro de uma trupe de saltimbancos, cuidando de animais ou ainda banhando-se na Costa da Caparica.

Billy era assim, criatura do ar livre, do "natural e elementar", como já o pai, Franz Blei, a retratava numa das raras referências, a mais longa, que lhe faz na sua autobiografia Erzühlung eines Lebens: 

"Entregava-se-lhe [ao mar], quase seria levado a dizer, como uma noiva, pois as águas, o nelas mergulhar, o cortá-las com as velas, o arpoar os seus habitantes, qual caçadora com o tridente, foi desde sempre a grande predilecção da sua vida, ela que estava mais próxima de tudo o que é natural e elementar do que do humano e do circunscrito de um pequeno redil."

Sibylla Blei por Trude Fleischmann c. 1920-1925.
Theatermuseum, Wien

E, nestas palavras com que Franz Blei relata o breve episódio do desaparecimento da filha durante a viagem de barco que a família faz para os Estados Unidos em 1897, julgamos ver já traçadas algumas das linhas da personalidade de Billy — a irrequitude, a vitalidade, mas, sobretudo, o inconformismo, essa recusa total de se submeter a normas, um comprazimento no quebrar de barreiras, afinal o que de mais nítido nos fica dos poucos dados biográficos que dela possuímos.

Filha do escritor Franz Blei, Sibylle Blei nasceu em Viena, a 14 de Março de 1897, e faleceu em Portugal, na Costa da Caparica, em data que não conseguimos determinar com exactidão, possivelmente nos fins dos anos sessenta [14 de março de 1962 ...]

O casamento com Billy durou poucos meses, mas a ruptura nunca foi completa. Ernst von Lieben seguiu-a sempre à distância, mesmo ao longo das etapas do exílio: primeiro, Palma de Maiorca, e depois, já durante a guerra, Costa da Caparica, onde algumas vezes a visitou [...]

Sibylla Blei por Trude Fleischmann, 1924.
artnet

Em princípios de 1939, Billy e Sarita fundam na Costa da Caparica uma pequena empresa de fabrico de cosméticos [...] (2)

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3 de março, 1941

Dear Hermann!

Fui interrompida, há sempre trabalho, já que sou carpinteiro, pedreiro, canalizador, serralheiro, embalador, jardineiro, tudo na mesma pessoa. Pelo meio, para não esquecer, cozinho, e quando as minhas sandálias estão estragadas, arranjo-as ou faço novas.

Maria Eva Sibylla Blei.
geni

E esta casa come o tempo como uma ténia, pois há sempre alguma coisa para reparar, está sempre algo partido. 

O estuque está a cair das paredes, as portas e os caixilhos das janelas estão torcidos porque foram feitos com madeira verde, os vidros caem das janelas porque a massa é da pior qualidade, a chuva entra pelos caixilhos e paredes, os fios elétricos caem das paredes porque os pregos não se fixam nas paredes, é divertido. Digo-te! Tudo é feito apenas para mostrar, e tudo, tudo, tudo é lixo!

Tudo com grandes pretensões — e nada por detrás, mas realmente nada! — Agora haviam três dias de primavera, necessários para secar a casa. A proprietária não se deixa ver, mas vêem-se de sobremaneira as rachaduras na casa. As pessoas dizem que não devemos ficar na casa, é perigoso, mas ninguém nos aconselha "sobre o que" devemos mudar e, portanto, levamos isso de ânimo leve e confiamos na nossa boa sorte como até agora. Principalmente porque não temos opção.

O carnaval acabou, o bacalhau está enterrado, e os trabalhadores andam de ressaca e de mau humor e não sabem muito bem o que fazer. Muitos sonhos e esperanças não deram em nada (a esperança, principalmente, de encontrar um noivo), os corações estão desfeitos porque o noivo dançou com outra garota e a triste monotonia impera. As tentativas interrompidas são retomadas, e agora o desejo mais urgente é que em breve seja primavera e o tempo aqueça novamente.

Os dois bebês nascidos fora do casamento estão vivos, e as mães, com 16 anos de idade, também, os velhos "progenitores" foram condenados a multas pesadas. Uma das raparigas deixou-se persuadir por amor, a outra pela promessa de uma bicicleta, a qual, afinal, não conseguiu. 

Em suma, a vida continua como de costume. Um dos sedutores é um camponês da nossa vizinhança. Tem uma família numerosa e ontem, mais uma vez, casou uma de suas filhas. Ele tem uma esposa ainda relativamente jovem, robusta e saudável, que foi motivo de uma conversa entre duas camponesas:

"Que tenha escolhido uma rapariga tão magricela e "verde", entre todas. Ela não tem nada, nem à frente nem atrás, ainda não tem peitos, nem nada especialmente porque ele tem uma esposa com boa apresentação, com peitos (gesto redondo) isso não consigo compreender! " [...]

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anterior a maio, 1941

Billy Lieben

Quinta San Antonio
Costa Caparica
Portugal

Dear Hermann!

[...] agora não é tempo para novas aventuras, e não poderíamos fazer isso a esse homem [associarem-se na gestão de um laboratório], porque quando Hitler chegar, seremos retiradas e ele ficará só! Falta-lhe o conhecimento, quer entregá-lo a uma pessoa confiável ou vender tudo como está.

Sibylla Blei por Trude Fleischmann em 1921.
Booklooker

Discutimos o assunto muito abertamente com ele porque não queremos apressá-lo nem desapontar sobre nossa situação "política". Ele compreendeu e quer esperar mais um mês (na verdade é já o terceiro mês!).

Mas, num mês, Hitler ainda não estará derrotado... Se fôssemos porcos, ficaríamos caladas e agarraríamos a oportunidade — com ambas as mãos: mas não podemos.

E, portanto, temos que renunciar a essa grande oportunidade, muitas vezes sonhada! Porque sempre sonhámos encontrar alguém como ele, e agora acontece que esta pessoa desconhecida se aproxima de nós, até mesmo com um laboratório grande e perfeitamente equipado, etc. — não conseguiriamos pensar em nada mais agradável e melhor — sim, mas não funciona.

Sim, poderíamos casar com portugueses, mas isso também custaria mais dinheiro qo que aquele que temos, e também não seria suficiente para protecção. Em França também prendem franceses [...]

E agora, finalmente, os dados desta simbiose, para o teu álbum:

Sarita: Sarah Halpern, nascida em 3 de setembro de 88 [1898?] em Bolszowce (Pole, passaporte Polaco) e Billy: Sibylla Lieben-Blei, nascida em Zurique em 27 de março de 1897 (ex-austríaca, passaporte austríaco)
Competências: cosmeticistas, produtoras de produtos cosméticos de alta qualidade (batons, loções, leites hidratantes, loção para o cabelo etc. etc. cremes faciais para vários tipos de pele e muitos itens similares)
Carácter: Pessoas honestas, fiáveis ​​e corajosas


Yours ever,
Billy

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Lisboa, 28 de maio, 1941

Dear Hermann,

[...] O peso leve de um espectro afundou-se sobre mim ao sair do comboio. Loge [Franz Blei, pai de Sibylla] — não, um vagabundo barbudo — não, um velho hebreu — não, o cadáver vivo de Tolstoi — não, era Loge, nos meus braços. Imediatamente num carro e para casa, para o meu lugar aqui, do qual não se mexeu desde então.

Costa da Caparica, Vista geral da Quinta de Santo António, ed. desc., década de 1940.
Delcampe

A primeira coisa foi trazer o barbeiro da aldeia dois homens vieram, e quase se podia dizer que fora necessário, porque poderia ter sido demasiado para uma só pessoa barba e cabelo etc. (tirei uma foto antes! Como lembrança!) Nos próximos dias, fotografarei o "depois".

O alfaiate também estave aqui. Em suma, ele estava em trapos, e eu tive que o vestir completamente de novo, e agora ele parece-se com um ser humano e muito melhor.


Ele estava completamente malnutrido. O médico disse que se ele tivesse sofrido de algum problema orgânico e não esteve naturalmente saudável - ele nunca teria conseguido. Ele come e dorme e come, dorme e felizmente, tem paciência consigo mesmo, assim como nós com ele [...] toma bem conta de si próprio e em pouco tempo estará na sua anterior forma novamente.

Se alguém me pudesse dar a garantia de que Hitler não viria, mantê-lo-ia aqui. Se alguém pudesse, pelo menos, garantir que esse H. não chegaria até o final do outono, eu solicitaria uma extensão do seu visto para poder alimentá-lo por mais tempo e ele poderia descansar mais — mas não ouso.


Não devo, nem irei, expô-lo a outro choque! Porque, para além de todas as outras coisas que nos podem acontecer aqui, a fome que irá irromper neste país — um país tão pobre (sem as suas colônias) — seria pior do que em França [...]

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8 de agosto, 1941

Billy Lieben
Quinta San Antonio
Costa Caparica
Portugal

Dear Hermann!

[...] não acredito num ideal de qualquer maneira, mas calculo que possa ser "relativamente" melhor.

Costa da Caparica, Quinta de Santo António e Mata, ed. desc., década de 1940.
Delcampe

Recentemente, fui relembrada desses esforços por um incêndio. Por causa da estupidez de uma mulher adulta, houve um incêndio numa pastagem seca frente à casa, que se espalhou rapidamente devido ao vento.

Esta pastagem é um lugar de vários quilômetros quadrados, com algumas casas espalhadas. Nós e alguns de nossos trabalhadores partimos logo com água e regadores. Foi uma corrida infernal, porque o fogo saltava repetidamente sobre as cinturas de água e em lugares diferentes, e eramos poucas mãos e mal podíamos correr suficientemente rápido.
A "originadora" e algumas outras pessoas estavam atrás dos muros do jardim como espectadores interessados​​! Todos os gritos e insultos foram inúteis, e tivemos que gerir sem ajuda — finalmente conseguimos!

Billy Lieben, Daughter of Franz Blei, Portugal, 1940.
Hermann Broch Collection

Ach, Hermann, a revolução tem que começar com as crianças! (Hitler compreendeu isso bem!...) [...] (3)


(1) Hartmut  Walravens, S ibylle Blei (1897-1962) an independent woman
(2) M. A. Pinto Correia, Uma biblioteca reencontrada, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1988
(3) Hartmut  Walravens, Idem

Mais informação:
Sybilla Blei por Alexandre Flores (I)
Sybilla Blei por Alexandre Flores (II)

Informação relacionada:
Diário de Maria Blei - Tagebuch für Tochter Billy
Doação Sibylle Blei - Sara Halpern, catálogo de 1988
Doação Sibylle Blei - Sara Halpern, catálogo de 2011

Leitura relacionada:
Wien Geschichte Wiki: Sibylla Blei
Billys Diariumescape: "Glûcksritterinnen" Billy und Sarita
Hermann Broch Collection