Costa da Caparica. Delcampe |
Joel Strosse tinha agarrado numa revista francesa, Ça Ira! E procurava concentrar-se num artigo intitulado “La gauche post-moderne, une déconstruction em marche?”, mas não conseguia passar do primeiro parágrafo.
Era à tarde, cirandavam moscas em de permeio, umas melgas franco-atiradoras, prontas a atacar pela calada da noite, com aquele ruído característico da Fórmula 1, mais irritante que as alergias da matadura.
Costa da Caparica. Delcampe |
[...] pela janela gradeada via passar os veraneantes que regressavam da praia, dobrados ao peso dos guarda-sóis, basto enfadados , num carreiro sem fim. Pareciam zombies, de carnadura flácida, jeito mortiço e olhar vazio.
Esta época obriga as pessoas a ir para a praia, a aturar a incomodidade de areias peganhentas, águas geladas, golpes de vento, bafos de multidão, peixes venenosos, miúdos turbulentos, sal na pele, transpiração, queimaduras, insolações, chatices, para confirmar que as práticas rituais só são válidas com algum desconforto. Há que prestar uma contrapartida pela conformação ao social. Está estabelecido pelas leis férreas do planeta.
Costa da Caparica. Delcampe |
[...] Cremilde, sentada num sofá estampado de flores, cujos castanhos e cinzentos não se sabia bem se eram obra do artista desenhador ou do uso continuado, ia folheando a Elle e perorando destarte:
─ Vem aqui que as varizes não têm cura. A operação pode aliviar um bocado mas cura é que não há. É um médico que diz. Traz fotografia e tudo.
Costa da Caparica, década de 1980. Delcampe |
Joel chegou-se à janela com o intuito de baixar a gelosia, tarefa árdua, científica e complicada, com aqueles fios todos num emaranhamento marujo. [...] As ruas ficavam cheias de gente, [...] os contentores transbordavam de lixo [...]
Costa da Caparica, vista aérea, década de 1980. Delcampe |
Ainda por cima, havia bichas no supermercado e o ambiente estava impregnado por fumos de churrasco de frango dos restaurantes improvisados, geralmente governados por bigodaças imundos, com barretes às três pancadas, muito refractários às inspecções das actividades económicas [...] (1)
(1) Mário de Carvalho, Era bom que trocássemos algumas ideias sobre o assunto, ed. Caminho, 1995
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