sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Os pescadores de Raúl Brandão

Atravez dos Livros

As suas ideias, os seus sentimentos e a sua beleza

Já está publicado o anunciado livro "Os pescadores" de Raúl Brandão cujas primícias de um excerto já foi dado aos leitores deste semanário literário gozar, devido à gentileza muito especial do autor. 

Tratando-se de um escritor que já conquistou de há muito a sua consagração definitiva, embaraçados nos seriamos para apreciar o seu estilo conciso e brilhante, Limitamo-nos, portanto, a dizer que Raúl Brandão afirma mais uma vez neste seu trabalho as eminentes qualidades de escritor inconfundivel, de castiça correcção e que sabe levar a extremos de perfeição a magia da palavra literária.

No prólogo deste seu ultimo trabalho diz-nos Raúl Brandão que quando regressa do mar vem sempre estonteado e cheio de luz que o trespassa. Foi assim tambem que nos sentimos ao concluir a impressionante leitura do seu livro que é uma verdadeira epopeia, um esplêndido cântico ao mar infinito e misterioso. 

"Os pescadores" são o primeiro volume da serie "A vida humilde do povo português" que aquele poderoso escritor se propõe escrever. Nas suas páginas palpita a existência da dôr e sacrificio que é a vida do pescador, agitam-se as suas cóleras, e os seus desesperos, seja êle da Foz do Douro ou da costa de Caminha à Póvoa, da ria de Aveiro ou de Mira, das Berlengas ou da Nazaré, de Lisboa, Setúbal, Cezimbra e Caparica, de Olhão, Tavira ou Sagres.

Cliché António dos Santos
[Pescadores na Costa da Caparica]
A Batalha n.° 5 (suplemento literário), 31 de dezembro de 1923

Os pescadores são a narrativa, ora suavemente enternecedora, ora ligeiramente graciosa, ora intensamente dramática, de vida, carácter, costumes e da faina rude e das condições de trabalho do pescador de Portugal; e neste largo campo de sensações o autor, sob uma forma interessante, atraente e impressionista, faz-nos conhecer minuciosamente as diferenças etnicas caracteristicas das nossas colónias pescatórias, alguns tipos magnificamente desenhados de pescadores, termos familiares das regiões, a paisagem e riqueza das nossas costas, as várias espécies de peixe que mais abundam nas nossas águas, embarcações, aparelhos e processos de pesca, dando-nos, em episódios de acção profundamente dramática em que se movimentam figuras cheias de sentimento e de caracteres magistralmente acentuados, a impressão da angustia indefinida em que vive essa gente, da tortura inquisitorial, do constante sobresalto dos mães e das mulheres que veem partir os seus homens para o mar, e das doloridas almas das vitimas que caminham resignadas, fatalistas, para o sacriticio. 

A morte do arrais — encontrado morto no cabedelo, no dia seguinte ao da tempestade, com as mãos crispadas agarradas ainda ao leme do barco que o mar, na sua fúria indomável, partiu pela quilha, não é o único quadro trágico que o livro contem, se bem que seja um dos mais pungentes lances, mordido de cores singulares, em que o clamor do mar que mete mêdo se confunde com os gritos de aflição e de desespêro das mulheres e os choros das crianças no cais, em que a cólera do mar porfia com o esfôrço hercoler de salvação dos homens. De não menos emocionante intensidade aquela outra scena da morte de dois irmãos encontrados unidos um ao outro, o mais velho erguendo nos braços o mais pequeno procurando salvá-lo. Razão tinha a mãe, a Maria da Sé, em não querer deixar o mais pequeno ir ao mar! Quando o surpreendia com os outros brincando nas poças com barquinhos de cortiça ela bem lhe batia para que ele perdesse o sestro. Mas o mar atraia-o  irresistivelmente. E na ansia de ir ao mar, como o pai, como os irmãos, como os homens, lá foi, até que lá ficou como já tinha ficado o pai... 

Depois vem a descrição de como vive toda essa gente.

A de Mira vive com simplicidade nos palheiros, casa ideal para pescadores ou pra um velho filósofo como eu. É construida sobre espeques na areia, com táboas de pinho e um fôrro por dentro aplainado. Duram tanto ou mais que a vida; cheiram que consolam, quando novas, a resina, a arvore descascada e a monte; ressoam como um velho buzio e são leves, agasalhadas, transparentes. Por fora escurecem logo, e envelhecendo caem para o lado ou para a frente; por dentro conservam uma frescura extraordinaria, e quando se abre uma janela, abre-se para o infinito. No chão dois tijolos para o lume, em esteiras alguns peixes a secar. Do Natal até maio não há pesca: Vão cavar para o Alentejo ou para mais longe, e as mulheres ficam em casa com os filhos. Alem da jorna, que regula de quatro mil reis a dois mil e quinhentos por dia, todos teem o seu quinhão nos dias de fartura — alguns punhados de sardinha ou de chicharros. Felizes ou infelizes? Não sei bem. Apesar de abandonacios pelo Estado, que os rouba, cobrando-lhes de fisco uma exorbitancia, quatrocentos contos o ano passado e quasi o dobro este ano, não lhes dando em troca uma maternidade, uma pequena biblioteca que os instrua um médico, uma botica, uma estrada; apesar de abandonados pelos homens, sem organização nem instrução, sem um padre que lhes fale em Deus ou nos coisas eternas (a capelinha de madeira está fechada) — esta gente é tão fundamentalmente boa que ha cinquenta anos para cá, não consta de um roubo, de um crime ou de um delito. Pode-se dormir com a porta aberta, Eu nunca fechei a minha.

Quando chegam a velhos e não podem trabalhar, como não ha um simulacro de cooperativa, e a lei do seguro os não abrange, lá se socorrem uns aos outros como podem. A miséria e quasi desconhecida neste pequeno povo de mais de duzentos fogos e de cérca de mil habitantes. Mira, punhado de casebres a apodrecer — é um mundo. A vida aqui não é uma mentira. E todos os dias a arriscam, porque quási todos os dias ouço as mulheres implorando Deus, quando o barco vai ao mar e se enche de agua.

Até aos ultimos anos ninguém enriqueceu em Mira com a pesca.

Mas agora, com os preços excessivos do peixe, tudo mudou de figura. já o ano passado se ganhou muito dinheiro, quando o cabaz de sardinha dava vinte mil reis. Que fará este ano, que regula entre cinquenta e sessenta? ha lanços de cinco contos, e já e diz que alguns se sentam em libras sôbre os buracos que abrem na areia para as esconder. As casas de salga fazem tombem im grande negocio. Enriquece o almocreve, o patrão e o negociante; só o pescador continua pobre e despreocupado. O mar nunca acaba e o mar é deles...

Os pescadores da Nazaré são ingénuos e supersticiosos. Um crime é raro. Não ha policia. Teem um medo ás bruxas que se pelam.

E o pescador de Cezirnbra? Este homem é de instinto comunista. Se um adoece, Os outras ganham-lhe o pão: recebe o seu quinhão inteiro. Se morre, sustentam ate a viuva e os filhos entregando-lhe o ganho que ele tinta em vida. Dão ao hospital e ao asilo uma parte do pescado. Toda a gente tem direito a ir ao mar — toda a gente tem direito á vida. Vai quem aparece, desde que seja maritimo. Acontece que o barco leva hoje quarenta h 'meus e leva vinte amanhã... O produto das artes é dividido em quinhões iguais pela campanha. A pesca do anzol é uma espécie de cooperativa, e a barca quasi sempre dos pescadores. 

Mas este sentimento comunista é vulgar entre a gente do mar.


O pescador é comunista e alegre, o montanheiro desconfiado e triste. 

No mar não ha marcos... diz o autor ao estabelecer o contraste entre Tavira, terra de montanheiros e Olhão, terra de pescadores. 

E continuando:

O maritimo de Olhão tem, como nenhum outro, um grande sentimento de igualdade: estende a mão a toda a gente. É que no mar os homens correm os mesmos perigos. São tambem profundamente religiosos, porque estão a toda a hora na presença de Deus. Duas tábuas, a fragilidade e a incerteza, forçam-nos a contar consigo e com e companha. Arriscam a vida para salvar a dos outros: hoje por ti, amanhã por mim. Homens simples porque a profissão é simples e o meio, grande e eterno, não os corrompe. E como o mar abundante e prodigo não tem cancelas, são generosos, imprevidentes e comunistas. Detestam os tribunais, que não coompreendem, e ignoram a vida da terra. Se a mulher lhes morre, não entram em licitações com os filhos: deixarn-lhe a eles o barco e as redes, e tomem conta do resto. Reparei que em toda as casas havia uma gaiola com um pintassilgo. Os homens do mar tiveram sempre uma grande ternura pelas aves. 

E as mulheres? Não as esqueceu tambem Raul Brandão que no-las retrata com fidelidade e que se curva perante o seu esforço fisico e a sua energia moral, vendo-as calcar todo o dia as estradas vendendo o peixe, trazendo os pequenos ao colo, não se deixando dominar pela desgraça, ou fabricando a graxa, fazendo, lavando e concertando as redes, metendo hombro aos barcos para os deitar ao mar, trabalhando tanto ou mais que o homem, infatigaveis sempre e ainda lhes sobra o tempo para tratar da casa e dos filhos!

E ainda o pior para todas estas mulheres não é serem bestas de carga, dias atraz de dias encharcadas e escorrendo salmoura... A mocidade dura-lhes o que duram as rosas. Quasi sempre de uma belesa delicada, a mulher da beira-mar, com excepção da do Algarve, que é a "prenda da casas", logo que casa carrega com quasi todo o peso do lar, cresta-se e envelhece. Acusam-na de imprevideucia. Imprevidente é o homem, que gasta na taberna tudo o que ganha. O lavrador é avaro, tira o pão da arca a medo, como quem sabe o que ele lhe custa de esforços persistentes — o pescador, num dia de fartura, enche a casa de pão. E o mar inexgotavel não lhe foge... Mas ela não. Ela, remenda, poupa e vai arrancá-lo à taberna. Conheço-lhes desde pequeno os estremos de dedicação e de força diante da desgraça. Esta pobre mulher — terra virgem de ternura — merecia um lugar à parte na nossa terra, pela sua abnegação, pela sua energia, e até pela distinção de sentimentos. Em Mira o lar é sagrado. É-o em to-dos as povoações da costa portutuesa que ficam longe dos centro, corruptores. 

Mas o trabalho pesado não é ainda o pior — o pior é o sobressalto constante da sua vida. A da lavoura tem o lar seguro. Vem o inverno temeroso e a noite que não tem fim. Fechada no casebre, á roda do lar, ela, o homem e a moça, com o filho no berço (ao lado na corte os bois fartos esmoém) — sente-se tranquila; sabe que na arca puida ha meio carro de pão, o suor do seu rosto, e algumas moedas juntas. Pode o temporal abalar o teto de colmo e o nevão cair lá fora. Ardem os raizeiros no lume e as traves de castanho são eternas. O buraco tem alicerces de granito até ao fundo do globo. Quanto ao pescador, esse há-de ir ao mar, unico campo que lavra, ainda que arrisque a vida. Os pequenos pedem-lhe pão e ele não tem outro ofico. O tempo está mau e dias atraz de dias passam. — Sempre vou... — Ela sente o coração oprimido, mas cala-se. Sabe perfeitamente pelos outras o futuro que a espera. Quantas conheci sempre de luto, sem ir muito longe da minha casa!... Por fim diz: — Pois Vai... — As redes, a cesta e ele embarca. Fica com ela um bando de pequenos, e com o coração aos saltos põe o ouvido ã escuta... A onda brame no cabedelo com um eco prolongado. — Não tem duvida, é o mar que chama o leste. — Mas agora, a voz é outra, mais funda, o vento mudou para o sul e a barra cerra-se. — Irão arribar e Leixões?... — Que tempo no mar alto, na noite tragica, e só negrume em roda! Nas mãos de Deus! nas mãos de Deus!

Cabe-lhes sempre o pior quinhão da negra vida, Trabalham o dobro dos homens e vivem mais do que eles, porque sofrem muito mais. 

Retrato de Raul Brandão e de sua esposa, D. Angelina Brandão, Columbano, 1928.
MNAC

E é assim todo o livro de Raul Brandão. Por todas as suas paginas perpassam um suavissimo espirito de humanidade, um proposito de reabilitação e de justiça e um sentimento de respeito pelo Trabalho. 

"Os pescadores" é um livro que comove e... nos faz pensar... (1)


(1) A Batalha n.° 5 (suplemento literário), 31 de dezembro de 1923

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