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sábado, 14 de maio de 2022

Maria Ritta do Adrião: alojamento local (desde 1859)

Duns apontamentos que nos foram proporcionados pelo Snr. Francisco José da Silva, Mestre das artes de pesca, extrahimos os apontamentos que se seguem e que mal podem aspirar a simples elementos de estudo para a historia da localidade:

Vista aérea da Costa de Caparica (detalhe), 1937.
Arquivo Municipal de Lisboa

A pesca começou a ser explorada na Costa por algarvios e ílhavos que ali vinham pescar nos meses de Outubro, Novembro e Dezembro, chamados da sáfra; construíam então eles próprios umas singelas e pequenas choupanas a que largavam fôgo quando se retiravam para as suas terras.

Em 1770 fixaram ali domicilio, em barracas já com maiores comodidades, com as suas companhas, os mestres: José Gonçalves Bexiga, algarvio, Joaquim Pedro, de Ílhavo; Romualdo dos Santos, algarvio; José Rapaz, de Ílhavo. Dado o exemplo, em anos a seguir, ali se fixaram também os mestres: José dos Santos, Jerónimo Dias, João Lopes e Manuel Toucinho.

Um dos primeiros cuidados dos povoadores foi a construção de uma Igreja — que foi feita simplesmente de junco e taboado.

As simples barracas de pescadores, de junco e colmo, foram-se aperfeiçoando, enchendo-se de conforto e comodidades, até ao ponto de nelas se proporcionarem festas verdadeiramente faustosas a que concorriam dos arredores fidalgos e literatos dos meados do seculo passado.

Ainda há tradições directas de algumas dessas festas e é frequente encontrarem-se na Costa resto de mobílias antigas, das melhores que certamente havia nessa época. Oratórios e imagens sagradas, conservadas religiosamente, constituem verdadeiras preciosidades e dão ideia da opulência com que chegou a viver a colónia piscatória, em tempos áureos. (1)

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Em 1859 José Augusto Sacotto Galache e eu principiámos as nossas caçadas no Juncal da Costa (...)

Um dia, em Dezembro (7), véspera de Nossa Senhora da Conceição, embarcámos, noite cerrada ainda, com Lourenço e seus dois filhos mais velhos.

Tempo sêcco, sem vento, e intensamente frio; a geada caía em carambinas. Proa ao Torrão. Lourenço da Pinha, expansivo, animava os filhos: — Vamos, rapazes, de voga arrancada, que é para aquecer.Havia aguas de monte, e o barco, mal vinha clareando, abicou defronte da Quinta do Miranda (...)

O estômago não tinha a mais leve memoria do almoço; a ambição de caçar no dia seguinte não nos mordia menos de que o appetite voraz. Resolvemos ficar; mas ficar aonde e comer o quê? A sorte.

Entrámos na povoação. Tudo choças de colmo; muitas levantadas sobre o arcaboiço de um velho barco.

Uma casa de um só andar, com armas reaes, bojudas como o abdómen do ladino e bondoso monarcha D. João VI, que foi alli por mais de uma vez.

De pedra e cal meia dúzia de casitas mais, quando muito. íamos andando por aquelle labyrintho de cubatas e á porta de um ferrador demoscom uma rapariguita dos seus dez annos, de cara insinuante, vestido de chita, meias muito brancas, sóccos, cabello em trança e bem tratado.

— Ó pequena, olha lá. Haverá aqui alguma casa onde se possa ficar e se coma alguma coisa?

— Pois não ha, meus senhores!... É a tia Maria Rita do Adrião, accrescentou, dando á sua voz crystallina certa expressão que indicava a grandeza da personagem a quem se referia.

Desenho da Costa antiga, autor António Lopes Martins, Col. Particular.
Rui Manuel Mesquita Mendes (fb)


Levou-nos á tia Maria, e tal foi o agasalho que por mais de trinta annos frequentei aquella casa com o melhor dos meus amigos. (2)

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Dalli a pouco estávamos todos reunidos na casa de jantar da sr.ª Maria do Adrião. Ao lado, na sala, de paredes estucadas, e tecto com relevos — uma surpresa para nós aquella restauração — a menina Cazimira extrahia das gavetas das suas bellas commodas de polimento, e mostrava ingenuamente ás senhoras, as riquezas e os primores da sua guarda-roupa — chales, vestidos de cores garridas, saias com rendas finas, camisas bordadas, lenços de seda de ramagens, que tão bem ficam, e tanto realce dão áquelles rostos campesinos, já illuminados de tons quentes pelo ar do campo e pelo sol. (3)

Maria Ritta do Adrião
O António Maria, 18 de setembro de 1884



(1) Almada na História, Boletim de Fontes Documentais nº 32 (2019)
(2) Bulhão Pato, Memórias, Vol. III, Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1907
(3) Zacharias d'Aça, O Tiro Civil n.° 139, quarta-feira 1 de junho de 1898

Leitura relacionada:
A praia da Costa (Caparica): Estancia balnear, de cura de repouso e de turismo

Artigos relacionados:
Gentes da Costa (e a miguelista exaltada) em 1828
Maria Rita do Adrião (1811-após 1903)
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Nas arribas do mar (prosa)
Nas arribas do mar (faíscas de fogo morto)

terça-feira, 4 de julho de 2017

Maria Rita do Adrião (1811-após 1903)

Em 1859 José Augusto Sacotto Galache e eu principiámos as nossas caçadas no Juncal da Costa. Pelas arribas as perdizes saltavam aos bandos; na planura as codornizes, as narcejas e outra caça de arribação abundantíssima. Vivíamos em Buenos-Ayres.

Vista do Tejo e da Torre de Belém, Maria Guilhermina Silva Reis.
Imagem: Wikimedia

No inverno, noite ainda, Lourenço da Pinha estava no caes de José António Pereira , com os seus três filhos: o mais velho José, o segundo João, o terceiro Francisco, este muito mocinho ainda para as fainas da travessia do Tejo, às vezes bravias.

Um dia, em Dezembro [7], véspera de Nossa Senhora da Conceição, embarcámos, noite cerrada ainda, com Lourenço e seus dois filhos mais velhos.

Tempo sêcco, sem vento, e intensamente frio; a geada caía em carambinas. Proa ao Torrão. Lourenço da Pinha, expansivo, animava os filhos: — Vamos, rapazes, de voga arrancada, que é para aquecer.

Vista panorâmica de Lisboa ocidental, Maria Guilhermina Silva Reis.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Havia aguas de monte, e o barco, mal vinha clareando, abicou defronte da Quinta do Miranda [...]

O estômago não tinha a mais leve memoria do almoço; a ambição de caçar no dia seguinte não nos mordia menos de que o appetite voraz. Resolvemos ficar; mas ficar aonde e comer o quê? A sorte.

Entrámos na povoação. Tudo choças de colmo; muitas levantadas sobre o arcaboiço de um velho barco. 

Costa da Caparica, 1907.
Imagem: Delcampe

Uma casa de um só andar, com armas reaes, bojudas como o abdómen do ladino e bondoso monarcha D. João VI, que foi alli por mais de uma vez.

De pedra e cal meia dúzia de casitas mais, quando muito. íamos andando por aquelle labyrintho de cubatas e á porta de um ferrador demos com uma rapariguita dos seus dez annos, de cara insinuante, vestido de chita, meias muito brancas, sóccos, cabello em trança e bem tratado.

— Ó pequena, olha lá. Haverá aqui alguma casa onde se possa ficar e se coma alguma coisa?

Summer day on Skagen s southern shore (detail), Pedrer S Krøyer, 1884.
Imagem: Wikipedia

— Pois não ha, meus senhores!... É a tia Maria Rita do Adrião, accrescentou, dando á sua voz crystallina certa expressão que indicava a grandeza da personagem a quem se referia.

Levou-nos á tia Maria, e tal foi o agasalho que por mais de trinta annos frequentei aquella casa com o melhor dos meus amigos.

A Claudina, a rapariguita que fora a nossa salvação e a nossa guia, passados tempos casou, e, já mãe de filhos, depois de eu estar n'este Monte [desde 1890], morreu, coitada, de uma pneumonia.

Maria Rita do Adrião vive ainda; ha dois annos que veiu visitar-me, na sua burrita, muito lépida, com os seus noventa e três.

As saloias (estudo), Silva Porto.
Imagem: Casa dos Patudos

Teve sempre boa estrella; até na sua visita a minha casa o azar apenas lhe deu um rebate falso. Quando voltava para a Costa perdeu um objecto de certo valor, creio que um brinco, que mão piedosa achou e foi logo annunciar no "Século".

Retrato de Bulhão Pato, Columbano, 1908.
Imagem: MatrizNet

Depois de devorarmos o jantar e pelos barqueiros mandar aviso aos nossos, sol alto ainda, sahimos até á praia [...]

Monte, 1904. (1)


(1) Bulhão Pato, Memórias, Vol. III, Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1907



A casa da sr.a Maria do Adrião — o nosso hotel — era respeitada, e nós, saindo de lá, não faziamos detença na povoação.

Casas de cal e arêa havia lá então duas ou três. Na parede exterior d'uma d'ellas lia-se uma inscripção, em grossas lettras d'almagre, commemorando que a modesta vivenda fora honrada, tal dia, por um rei nosso. Se bem me recordo, foi D. João VI. 

E também me mostraram o tinteiro de faiança nacional, pintalgado de amarello, vermelho e verde — tons crus — de que elle se serviu para escrever ou assignar não me lembro o que. 

Dalli a pouco estávamos todos reunidos na casa de jantar da sr.ª Maria do Adrião. Ao lado, na sala, de paredes estucadas, e tecto com relevos — uma surpresa para nós aquella restauração — a menina Cazimira extrahia das gavetas das suas bellas commodas de polimento, e mostrava ingenuamente ás senhoras, as riquezas e os primores da sua guarda-roupa — chales, vestidos de cores garridas, saias com rendas finas, camisas bordadas, lenços de seda de ramagens, que tão bem ficam, e tanto realce dão áquelles rostos campesinos, já illuminados de tons quentes pelo ar do campo e pelo sol.

in Zacharias d'Aça, Caçadas portuguezas, Lisboa, Secção Editorial da Comp. Nac. Editora, 1898