segunda-feira, 20 de março de 2017

Mário Bengala

Mário Bengala é um homem das Terras da Costa. Descendente das duas grandes "tribos" da zona: os pescadores vindos de Ílhavo e os vindos do Algarve, em tempos divididos por grandes rivalidades, com os primeiros a instalar-se a partir do final do século XVIII na parte Norte da Costa e os segundos, um pouco mais tarde, no Sul. Os de Ílhavo sabiam pescar mas também trabalhar a terra e foi esse o destino de Mário Bengala, que se tornou um dos maiores agricultores das chamadas Terras da Costa.

Mário Bengala, Terras da Costa, 2005.
Imagem: A Promessa, Lugar do Real

"O meu avô Raimundo descendia de algarvios, e casou com a minha avó que descendia de ílhavos. Os ílhavos dedicavam-se à terra e ao mar, não tinham fome".

Bengala está sentado numa cadeira de plástico, debaixo de um telheiro, no meio dos terrenos que continua a cultivar logo à entrada da Costa. A estrada que vem de Lisboa passa ali ao lado, e à nossa volta são campos de couves, abóbora, batata.

Costa da Caparica, Praia do Sol, Vista Parcial, ed. desc.
Imagem: Delcampe

"Isto eram tudo juncais. Há 82 anos o mar chegou aqui, até morreram vacas afogadas. Depois é que as Matas Nacionais fizeram a mata, para fazer as dunas, e a água salgada deixou de entrar aqui".

Costa da Caparica, a duna artificial ou escarpado, 1930-1932.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Mário Bengala está desesperado. Como os outros agricultores das Terras da Costa ouviu dizer que vai ser construída uma nova estrada de acesso à Fonte da Telha que vai atravessar as suas terras (um projecto que não faz parte do CostaPolis). 

"E as pessoas vão para a rua? Viver onde, com 42 contos? Passando aqui uma estrada o que é que fica para amanhar? Nada. Têm que fazer as contas com as pessoas, isto não pode ser assim". A voz altera-se-lhe, os olhos enchem-se de lágrimas. 

Costa da Caparica, Terras da Costa e Cabo Espichel, ed. Passaporte, 7, década de 1950.
Imagem: Delcampe

"Isto é a vida das pessoas, o meu avô nasceu aqui. Não roubem a gente, pela vossa saúde".

Foi o avô de Mário Bengala e os outros agricultores que transformaram os antigos juncais em terras férteis usavam restos de peixe, caranguejos e até santolas para adubar a terra, e os vegetais começaram a crescer tanto que as Terras da Costa eram consideradas um dos celeiros de Lisboa. Depois, em burros, iam até ao mercado da capital vender. 

Costa da Caparica, transporte de mercadoria pelas dunas, década de 1920.
Imagem: Espólio Agro Ferreira

Como Joaquim Cavalinha teve esperança de ser levado para o seminário, Mário Bengala também sonhou em deixar a Costa e ir para a Marinha Mercante.

Mas os problemas sucederam-se. Primeiro foi o padre que, porque nunca o via na missa "não há ninguém aqui do campo que tenha tempo para ir à missa" , achou que ele era comunista e recusou-se a passar o papel que exigiam na Marinha confirmando era católico. 

Costa da Caparica, ed. Lif, 04, Igreja da Nossa Senhora da Conceição, 1945
Imagem: Delcampe

"Apareceu o 25 de Abril, ele pensava que eu era comunista, e até veio beijar-me as mãos. E eu 'ó senhor prior, não me faça isso por amor de Deus', e ele 'ó Mário perdoe-me que lhe fiz tanto mal'".

Surgiram problemas familiares - uma complicada história que envolve uma discussão com o pai, um relógio partido e a promessa da mãe de lhe comprar um igual, mas de ouro, e ainda um dinheiro guardado com sacrifício pela mãe e escondido no forno de ferro, e que acabou queimado no dia em que Mário, sem saber de nada, resolveu assar umas batatas doces. 

Foi a vez de Mário prometer que trabalharia até poder dar à mãe o dinheiro para ela cumprir a sua promessa. Ainda hoje tem no pulso o relógio de ouro, testemunho desta história de promessas cumpridas. No meio de tudo isto acabou mesmo por ficar. E aos 13 anos pediu ao pai um bocado de terra para semear.

Praia do Sol, C. Caparica, ed. José Nunes da Silva, s/n, Poço de Bomba, Chafariz
Imagem: Delcampe

Agora não sabe o que vai ser o futuro. Sozinho, enorme, no meio das suas terras, o cabelo branco impecavelmente penteado, está desolado. 

"Tirava daqui toneladas de hortaliça, couves, nabos, cenouras, alfaces, alhos franceses. Depois levaram o Mercado Abastecedor para cascos de rolha. Marcaram os preços das couves no Natal a 25 cêntimos o quilo, e cada mulher que anda aí a trabalhar quer ganhar um conto de réis por hora. Não chega. Tenho ali batatas que não sei o que hei-de fazer com elas, aqui há tempos deitei mais de 50 caixas para um contentor. Estamos a afundar. 

Costa da Caparica, vista geral, década de 1980 — 1990.

Não há ninguém que queira trabalhar no campo. Dizem 'ah, é muito calor'. Depois da minha geração morrer não sei como isto vai ser". (1)


(1) Alexandra Prado Coelho, A nova Costa já chegou, Público, 23 de agosto de 2009

Mais informação:
A Promessa, Lugar do Real, 2005

Leitura relacionada:
Mário Bengala: A voz das terras, Gandaia, 30 de setembro de 2012

sábado, 18 de março de 2017

Joaquim Cavalinha

"Fui para o mar com 12 anos, mas aos oito já comecei a enrolar corda", conta, encostado a um dos tractores nas novissimas casas de apoio construídas pelo Polis para os pescadores.

Joaquim Cavalinha (1925-2014).
Imagem: Ao Canto da Memória

Aos 84 anos lembra-se bem de como era quando ele, os pais e os três irmãos viviam "lá no Norte [da Costa], numa barraca de junco", e dormiam "deitados no chão, numa esteira, e quem se descuidasse acabava a dormir em cima do barro".

Frio, é melhor nem falar nisso, e comida era quando havia. "Às vezes passava-se dois ou três dias em que nem se acendia o lume. Depois é que lá apareceu um homem a quem chamavam o Papo Seco e numa garagem antiga começou a fazer panelas de sopa.

Eu comia o comer muito quente, num prato de folha fundo. Eram uns 50 ou 60 rapazes e raparigas que todos os dias iam à garagem comer".  Abana a cabeça: "Um homem daquela qualidade nunca mais aparece".

Adega do Papo-Seco e Pensão Chic, Costa da Caparica, rua dos Pescadores.
Imagem: Costa da Caparica no Facebook

Uma hora foi todo o tempo que Joaquim Cavalinha passou na escola. Não chegou sequer para comprovar se era verdade o que diziam da professora, "a quem chamavam a Beiçuda". "Diziam que era muito má, eu cá só lidei com ela uma hora, não sei se era boa ou ruim". 

Às dez da manhã o pai mandou chamá-lo. "Tinha apanhado um saco cheio daquela sardinha pequenina, uma fortuna naquele tempo. Nem o meu nome aprendi a fazer. O meu pai dizia logo para a gente 'se não vais para o mar nem as papas de milho comes'". 

Costa da Caparica, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, cliché João Martins, década de 1930.
Imagem: Fundação Portimagem

Ainda houve um padre que o veio buscar para o levar para o seminário. "Eu já tinha o saquinho na mão e o meu pai não me deixou ir. Cortou-me as pernas, se calhar. Eu lá aprendia alguma coisa e estava a comer todos os dias certo. Ele dizia que aquilo não era vida para mim". Encolhe os ombros com um ar desalentado. 

Costa da Caparica, crianças filhas de pescadores, 1938.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

"E isto, é vida? Aos 84 anos devia estar sentado num maple e estou aqui a penar". Penar é ter que esperar pelas seis e meia da tarde para poder ir para o mar, que antes não se pode por causa dos banhistas. É voltar às tantas da manhã para casa. 

É ver a mulher, Adelaide — "aquilo é uma mulher de aço, daquilo já não há"aos 78 anos, a ir para a praça às seis da manhã vender peixe, depois para a lota das cinco às oito, para comprar, e depois novamente das dez da noite até à uma da madrugada. 

O seminário e a escola primária ficaram para trás, esquecidos, e o Joaquim Cavalinha lá foi tirar a cédula marítima mesmo sem saber nadar. "Éramos quatro irmãos, todos pescadores. Para nadar não havia melhor que eles cá na Caparica, e eu não sei mexer um braço. Nunca me lembro de ir ao banho, por isso é que nunca aprendi a nadar".

Mas a sorte protegeu-o. "Tinha 14 anos quando tirei a cédula, estava uma friagem que até metia medo. Eles perguntaram quem era o meu pai. 'O teu pai é o Cavalinha? Ó pá, vai-te vestir'. Ena, que sorte do mundo, ein? O meu pai era um pescador valente a nadar e eles pensavam que o filho era a mesma coisa". Mesmo assim o mar nunca lhe meteu medo. "Se perguntar aí quem é o Cavalinha para o mar, eles que digam, sou o número um. 

Costa da Caparica, Casa da Bíblia, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, c. 1930.
Imagem: Delcampe

O que eu digo a eles é: se um dia me acontecer uma fatalidade agarro-me a um com unhas e dentes e não o largo da mão. Há cinco ou seis anos, na Fonte da Telha, o barco foi mesmo ao fundo, e aquilo era fundo mesmo. 

Estava lá um, agarrei-me logo a ele, e ele 'larga-me da mão', e eu 'largo-te da mão para quê, não largo nada, ao menos estamos aqui os dois a conversar um com o outro'. Deixava-o da mão para ele ir para terra e eu ficar ali sozinho e morrer, não?". 

Se o mar não muda e continua difícil, apesar de cheio de peixe - "às vezes apanhamos às 400 ou 500 caixas de cavala e não há uma fábrica que meta aquilo, tem que se abrir a rede e dar às gaivotas" - a vida à volta mudou. 

O mar como patrimonio, exposicão: arte-xávega na Costa da Caparica, 2015.
Imagem: Francisco Silva

As instalações, estreadas há três meses, não têm comparação com o que havia antes. "Quem disser mal disto diz mal de Deus. A gente lá [nas antigas barracas de apoio à pesca] tinha que se arregaçar por causa da pulga, não se podia estar ali, era uma imundíce. Aqui tem o asseio, a luz. É tal e qual como a gente morar numa barraca e ir morar para um hotel". 

O mal é que o peixe dá cada vez menos. "A semana passada cada homem ganhou dois contos, a semana inteirinha a trabalhar". O peixe não se vende. "É tudo à conta dos espanhóis, peixe de aviário, que não presta para nada. Os restaurantes preferem porque é mais barato, mas o maior crime que eles fazem na vida é preparar aquele peixe. Aquilo nem gosto tem". 

A Praia do Sol, Uma vista parcial, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 108, década de 1930.
Imagem: Delcampe

Do outro lado da Costa, em direcção à Arriba"daqui lá são dois minutos, mas veja lá se os percebe, olhe que eles têm um sotaque diferente", avisa Cavalinha - está um contemporâneo do pescador, mas de um outro mundo. (1)


(1) Alexandra Prado Coelho, A nova Costa já chegou, Público, 23 de agosto de 2009

Leitura relacionada:
Joaquim Cavalinha: A voz do mar, Gandaia, 1 de novembro de 2012

sexta-feira, 3 de março de 2017

Retratos de Bulhão Pato

Eu, que não sou deputado, nem conselheiro, nem ministro, nem par do reino, nem escriptor politico, nem democrata façanhoso, nem republicano — moço-fidalgo — vejo-me infelizmente compellido a procurar meios de subsistência na vida das letras que é bem triste em toda a parte. (1)

Bulhão Pato (insp. Andy Warhol, Ten Lizes, 1963)

Este nome, incontestavelmente dos mais ilustres que sobredoiram as letras nacionais, está vinculado às saudosas reminiscências da minha meninice, e é-me portanto gratíssimo, ainda que outros motivos não houvesse, o rememora-lo mais uma e muitas vezes.

Raimundo António de Bulhão Pato,
Imagem: Hemeroteca Digital

De tarde, durante alguns dias, e com mais empenho que um espião de ruins tenções, seguia, à distancia, os passos do poeta; vi no Passeio de D. Fernando, já no sitio da Meia Laranja, ou por entre os renques de plátanos e na Cova de Viriato, os meus olhares cravavam-se no poeta rebuçando-me na capa académica, preguntava a mim mesmo por que milagre é que o génio pode incarnar-se num ser que veste e come e fala e passeia como toda a gente.

Um dia, — era eu um imberbe estudantinho de latim, em Viseu, e já colaborador de almanaques e publicações menos vistosas, com tendência, infelizmente não contrariada, para a suposta profissão de letras, — anunciou o Viriato, gazeta da localidade, a chegada do poeta da "Paquita" à capital da Beirã.

Como eu tivesse na memória e no coração a esplêndida poesia de Bulhão Pato, "A um retrato", e como eu não conhecesse, à excepção de Tomás Ribeiro, nenhum poeta em pessoa, a notícia alvoraçou-me naturalmente, e, em vez de solicitar ousadamente uma apresentação fácil, procurei vê-lo e contemplá-lo muitas vezes, sem que ele de mim soubesse nem me visse.

Bulhão Pato por Marciano Henriques da Silva
(museu Carlos Machado em Ponta Delgada).
Imagem: Alexandre Flores

Mas, atentando bem, reconhecia-se que a personalidade fìsica do poeta nãoo se confundia com qualquer personalidade. Àinda na mais familiar conversa com Paulo Melo Borges, — os jornalistas da terra, — o olhar, a voz de Bulhao Pato não eram a voz, o gesto, do comum dos mortais; havia ali, como diria Camões:

aquele não sei quê,
que aspira não sei como.

Estávamos ainda em pleno romantismo; e a formosa beladura negra de Bulhão Pato, agitada pelas brisas. Pavia, trazia-me a ideia a cabeleira de Childe-Harold aos ventos do Oceano. Na fronte desafogada e no sorriso discreto, na palavra cadenciada, meio solene e afectuosa, no gesto espontâneo e seguro, havia mui de meiguice e majestade, de soberania e de doçura que me subjugava e me atraia.

Bulhão Pato em Uma arribada em calma branca, Revista Serões,  1907.
Imagem: Hemeroteca Digital

Cheguei a possuir-me da tentação de lhe falar e pedi ao dr. Melo Borges.

— Traz versos para o jornal?— perguntou-me ele.
— Não trago nada; por outra, trago o desejo de que me apresente ao Bulhão Pato.
— Não é preciso; apresente-se você, que ele receberá admiravelmente.
— É preciso, porque eu não tenho coragem para tal. 
— Nesse caso, e como a apresentação só se justifica pelo parentesco literário, traga-me versos e vamos falar com ele. 
— Aceitei alvitre, e fui para casa fazer versos.

Impressionado por uns desgostos de criança, umas nènias, tornando para epigrafe estes versos do canto V da Paquita: 

"Não profiro o teu nome! Venturoso, 
Outro profere agora a teus ouvidos. 
Teu rosto se lhe volve carinhoso, 
Estremecem de amor os teus sentidos; 
Mas ah! que ao menos possam, na tua alma, 
Um eco despertar os meus gemidos!"

As minhas nênias começavam por este teor:

Chegou a hora da suprema angústia! 
Os dias, que a ventura 
vinha doirar com lúcidos fulgores, 
fugìram, como foge na espessura 
arroio que trepida entre verdores. 
Ao rosto magoado 
assoma agora a lágrima das agrimas...

E, num crescendo de tragédia, enchi de rimas uma folha de papel almaço (essa composição, com o título de Emfim, está arquivada na pág. 159 dos meus Quadros Cambiantes, 2.a edição, Coimbra, 1874). 

No dia seguinte, dizia-me Melo Borges: — Não posso apresenta-lo; o Bulhão Pato foi hoje para Farminhão; está em casa do Luis de Campos.

Não pude responder. Dir-se-ia que me abandonava alguém que me era querido, e, se o meu pobre coração falasse, teria dito talvez: — Nunca mais o tornarás a ver! Nessa noite, estudei mal o meu Virgílio e dormi pior. Passaram dias.

Uma tarde, vi sair da casa do Francisco Mendes aquele adorável e malogrado Luis de Campos, que antes de ser par do reino, era mais do que isso,— um coração de oiro e poeta de levantada inspirado. — O Bulhão Pato? Onde está o Bulhão Pato? — Perguntei-lhe eu. — Esteve em nossa casa; caçámos nos fraguedos da Ortigueira; e foi encantado com as nossas paisagens. Viu e falou-lhe?— Contei-lhe tudo, e pediu-me os versos, que deveriam ter sido pretexto da minha apresentação.

Logrei ao menos a satisfação de ver que esses versos de rapaz entusiasmaram a boa e expansiva alma de Luis de Campos, mormente a seguinte estrofe, que ele repetia com calor e na intensão mais cativante:

... esp'rança a esquiva dor levanta a fronte 
... cume de escabrosa, ingreme, rampa;
... sado, ardendo, o peito busca a fonte
... lhe mitigue o ardor, febre e cansado. 
... lisero. trepando, arrasta o passo, 
... até bater na cruz de húmida campa,
... para sempre o estreita em férreo abraço.

Pouca gente se lembrará de Luis de Campos, do parlamentar, do poeta da Granadina, de u ros ornamentos da minha Beira; e menos ain iam dele, se lhe não sobrevivessem irmàos di ) general Antonio Caropos e o par do reino Fra irros Coelho e Campos, que são um vivo reflexo do nobilíssimo carater. e poucos se lembrarão dele, quero eu alistar-me nos poucos, ligando o seu nome ao de Bulhão Pato le quiseram anos; e só em 1875, encontrando-me nas sessões da Academia das Sciências, é q ir a arobi^ào do imberbe estudantito de latim I poeta e sentindo a minha mão apertada pela mancha [...] não pode deixar de curvar-se, em respeitoso afecto, perante a figura moral e literária do glorioso poeta da Paquita.

Educado literariamente ao lado de Alexandre Herculano, na convivência dos mais rigidos carateres de urna sociedade em que eles não abundam, Bulhão Pato, no seu trato social, tomou por uma estrada, que pode ser a de um espartano imaculado, mas que não é o "Chemin des Anges", que leva as grandezas sociais, ás comodidades da vida, ao capitólio de duvidosas celebridades, e ao afecto convencional de camarilhas politicas ou literárias.

Raimundo Bulhão Pato, Miguel Angelo Lupi, c. 1880
Imagem: ComJeitoeArte

Nascido em Bilbau, parece que o céu das Vascongadas lhe instilou com o leite materno a independência e a nobre altivez que caraterizam os filhos daquela região. Bulhão Pato viu certamente, na sua infância, como as montanhas das Astúrias encaram majestosas e serenas o golfo que se lhes contorce aos pés, ameaçando-as inutilmente com uma submersão medonha em todos os lances da sua vida, através de tudo e de todos, Bulhão Pato manteve sempre aquela superior firmeza do homem justo, de quem falava o velho Horácio:

Se estalado cair o orbe,
ferem-no as ruinas impávido!

Contemporâneos dele, menos prestadios e mais audazes ou menos escrupulosos, ascenderam às culminâncias do poderio, do renome e da fortuna; e os que lhe não voltaram as costas, dispensaram-lhe simplesmente uma benevolência estéril, quando não uns ares de proteção... platónica. É a história de cada dia: de todos os que sobem, ha dois termos, pelo menos, que deveriam ficar atras de muitos que estão em baixo.

Mas Bulhão Pato, tendo alias a consciencia de si próprio, refreia os ímpetos da sua musa, causticamente satírica, e, poupando os que outrem castigaria, esquece-os generosamente, e chega a considerar-se feliz na sua pacifica tebaida, quer deleitando-se no trato da Arte e da natureza, quer galgando montes e gândaras em cata de perdizes e lavercas, quer dialogando com os pescadores da costa, que sobem o Monte de Caparica, para ver brancas do asceta, e ouvir-lhe a palavra amorosa e sã.

Bulhão Pato, Columbano Bordalo Pinheiro, 1883.
Imagem: MNAC

Do seu Monte de Caparica, olha ele para o mundo, como do alto da torre Eiffel se olhará abaixo que se vê formigando, a toda a hora, a água do rio que leva ao mar e ao esquecimento os ódios, as lutas, as grandezas e as misérias, que chamam e se embatem na prodigiosa cidade, que moeu o coração do mundo.

De longe em longe, Bulhão Pato deixa por ras seu deserto e passa rapidamente pela cidade  certificar bem de que a Providencia é sempre b( to que fogo do céu ainda não calcinou nem v em que se rebolca uma sociedade gangrenada. ta ao seu ermo, onde não ha infeções paludosa ranger de dentes do inferno bíblico.

Embora sem matrícula na irmandade dos felizes, talvez ele nos possa dizer onde está a felicidade!

Bulhão Pato in O António Maria, 13 de novembro de 1884.
Imagem: Hemeroteca Digital

Como se vê, não tanto a biografia nem a critica apenas uns traços, ao acaso, de um esboço m( e dos mais conhecidos, num pais em que teda t nhcce. esboço literário do poeta está feito, n de lodos os que sabem ver com olhos de ver, p nítido da longa e perdurável obra de Bulhão Pato as Memórias e Portugueses na India, e Sob os Ciprestes verso, Cantos e Sátiras, Paquita, Flores agì ou três volumes de versos, são títulos bastante sagrados de uma glória nacional.

Representante de uma época literária, em que o conhecimento da boa linguagem era a primeira condição para se ser escritor, e em que um poeta, para o ser, tinha que familiarizar-se com as regras da metrificação, Bulhão Pato nos seus trabalhos a mais rara correção de meios ao seu dispor o maior número das riquezas e silares ao idioma nacional.

A beleza e correção correspondem, nos escritos de Bulhão Pato a vigor da ideia, a espontaneidade e realismo dos conceitos, a envergadura de um pensamento elevado e nobre. E a tal ponto a forma se casa com a ideia, que está transluz nitidamente através daquela, corno o sangue vigoroso e quente de um organismo poderoso, através de uma epiderme delicada e sã.

Raimundo António de Bulhão Pato,
Imagem: Hemeroteca Digital

Por isso, os livros de Bulhão Pato poderão passar despercebidos ao noticiário indígena e aos amadores de literatura avariada ou de farófias literárias; mas, se alguma coisa do que temos e valemos tem de ficar depois de nós, sobrevivendo a uma sociedade enfermiça e caótica, esses livros ficarão a par daqueles documentos que hão de levar aos nossos actos as memórias mais puras de uma nacionalidade que foi. (2)

Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Hoje almoço em casa do Schwalbach com o Bulhão Pato, o Camara, João Chagas, Antonio Bandeira, etc.

O Bulhão Pato é um homensinho secco e resistente, de cabeleira e pera branca—miniatura do alentado Pato caçador que todos nós imaginamos ao ler-lhe algumas paginas. Parte no dia 20 para S. Miguel, de passeio... Quando morrer desaparece com elle toda uma epocha:

Bulhão Pato, Rafael Bordalo Pinheiro,
Album Glórias, 1902
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

— Meu rapaz podes ter lido todos os philosophos, que se não tiveres sentimento... Minha mulher, uma velhinha lá fica... Não vae comigo, porque recolhemos em casa uma pequena pobre, pobrissima, e queremos-lhe como se fosse nossa filha.

Retrato de Isabel Pato, José Campas, Caparica, 1908
Imagem: MJM

Sentamol-a á nossa meza... Bem sei que ha por ahi uns moços que dizem mal de mim. Não me importo. Quando vejo um rapaz de talento abro-lhe logo os braços.

Bulhão Pato e Moreira de Almeida com outros cavalheiros no Largo das Cortes.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

No fim do almoço, beija a mão ás senhoras. Conviveu com o Herculano, ouviu-lhe dizer:

— Isto dá vontade de morrer! "Que faria — accrescenta — se vivesse hoje!" — O Conservatorio lembra-lhe o Palmeirim — "que foi da minha creação" — É simpathico, vivo e cheira a outros tempos: conserva, como o linho guardado no fundo d'um armario, o perfume da maçã.

Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

E que contraste com os outros, com o Chagas, com o Schwalbach, sempre aflicto e sempre despreocupado, com o Antonio Bandeira, que, sob uma aparencia futil, é pratico como o diabo, e que conta que foi uma noite em Roma, com alguns portugueses, mulheres e guitarras, bater o fado para as ruinas do Colyseo!

Retrato de Bulhão Pato, Columbano Bordalo Pinheiro, 1908.
Imagem: MatrizNet

Depois, por blague, sustenta com o Chagas, que ninguem devia ter mais de duzentas e cincoenta grammas de principios.

Março 1904. (3)


(1) Bulhão Pato, Novellas, Lisboa, Typographia Universal, 1864
(2) Cândido de Figueiredo, Figuras literárias... , Lisboa, Viuva Tavares Cardoso, 1906
(3) Raul Brandão, Memórias

Leituras relacionadas:
Efemérides
Bulhão Pato na coleção da Hemeroteca de Lisboa

quarta-feira, 1 de março de 2017

No Monte de Caparica

As rapariguinhas da Costa,
que sobem até o Monte,
poisam a giga, e defronte
do seu mais nobre freguês,
quedam-se cheias de enlevo:

Costa da Caparica, Peixeiras, 1901.
Imagem: Biblioteca Nacional de España

— Bonito velho! Não vês?
Vai jantar... chegou da caça...
Pois a sardinha que eu levo,
dava-lha toda de graça!

Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Não terem lido as da Costa
um livro, o "Livro do Monte",
ou não haver quem lhes conte
como o velho delas gosta,
se condói daquela lida,
e em espirito acarinha
a miséria mal vestida.
que do Monte se avizinha!

Pequenas varinas no Cais do Sodré.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Nenhuma, certo, adivinha
os afectos que lhe deve!

Retrato de Bulhão Pato, Columbano Bordalo Pinheiro, 1908.
Imagem: Pintar a Óleo

Aliás, não lhe daria
a cestita de sardinha,
mas de beijos cobriria
aquelas barbas de neve! (1)


(1) Cândido de Figueiredo, Figuras literárias... , Lisboa, Viuva Tavares Cardoso, 1906

Leitura relacionada:
Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896