terça-feira, 28 de junho de 2016

Sobre o projecto de Cassiano Branco

A aproximação da construção à área costeira limitou a forma de ver a possibilidade e potencialidades locais de crescimento urbano, resultando em aglomerados habitacionais próximos da praia, por vezes até de uma forma potencialmente perigosa.

Costa da Caparica, vista aérea, 1930 — 1932.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Por estas razões talvez o plano de Cassiano Branco fosse utópico para a época mas também será verdade afirmar que seria em muitos aspectos um plano actual, realista caso tivesse sido implementado, atribuído um rumo bem diferente àquela região.

Costa de Caparica, Praia Atlântico.
Pormenor de Solução Urbanística, Cassiano Branco, Arquitecto, 1930.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Observemos então a proposta de Cassiano Branco ou o postal e, a partir dele, desenvolvemos algumas reflexões, necessariamente especulativas essencialmente porque não existem textos que acompanhem a reflexão sobre o território, que pretendem descodificar as motivações, compreender os enquadramentos e comentar um desejo de uma nova cidade.

Hotel, Pormenor de Solução Urbanística, Cassiano Branco, Arquitecto, 1934.
Imagem: Costa da Caparica: de Cassiano Branco à realidade

O postal que representa uma proposta utópica para a Costa da Caparica, que seguramente não é somente um simples postal, prefigura uma cidade de lazer, particularmente apetrechada com equipamentos desportivos, lúdicos e culturais, que também, seguramente, não são imagem de Portugal dos anos 30, como não é igualmente representativa das tendências urbanísticas impostas pelo Estado-Novo.

Casino, Pormenor de Solução Urbanística, Cassiano Branco, Arquitecto, 1934.
Imagem: Costa da Caparica: de Cassiano Branco à realidade

Efectivamente, só na década seguinte se realizaram em Portugal alguns Planos de Urbanização de algumas estâncias de férias do litoral, cujos programas são quase exclusivamente a habitação unifamiliar, o hotel, o mercado e a igreja, não tendo contudo um caracter tão abrangente no território como o Plano da Costa da Caparica de Cassiano Branco.

Costa da Caparica, Hotel Praia do Sol, ed. Passaporte, 10, década de 1950.
Imagem: Delcampe

Refira-se uma vez mais que os limites deste plano não são claros mas, referenciando a extensão da Arriba Fóssil, quase que podemos afirmar que ele se estende desde a Costa da Caparica até à zona da Fonte-da-Telha.

Costa da Caparica, ed. Gama Freixo.
Imagem: Delcampe

São propostas registadas em planta que apresentam uma estrutura viária disciplinada e hierarquizada em função de pequenas rotundas ou praças, à qual corresponde também uma hierarquização do programa.

Costa da Caparica, ed. Gama Freixo.
Imagem: Delcampe

Prevalece um cenário de Cidade-Jardim muitas vezes associado à intenção de preservação e aproveitamento do património vegetal pré-existente.

Costa da Caparica, Miradouro dos Capuchos e Caparica, ed. Passaporte, 39, década de 1950.
Imagem: Delcampe, Oliveira

A cidade jardim é um modelo de cidade concebido por Ebenezer Howard, no final do Séc. XIX, consistindo em uma comunidade autónoma cercada por um cinturão verde num meio-termo entre campo e cidade.

Costa da Caparica, vista aérea, c. 1980.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

A ideia era aproveitar as vantagens do campo eliminando as desvantagens da grande cidade, mas nem sempre pode ser um sinónimo de eco-cidade. (1)

Ilustração de Cassiano Branco, L'Illustration 4963, 16 April 1938.
Imagem: Old french Adverts

Art Deco: estilo que surgiu na década de 1920 ganhando força nos anos 30 na Europa e na América do Norte e do Sul e que abrangeu a moda, a arquitectura, as artes plásticas, o design gráfico, a tipografia e o design industrial.

O estilo deve o seu nome à Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais modernas (em francês: Exposition Internationale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes), realizada em Paris, em 1925.

Essencialmente era um estilo decorativo que combinava luxo, e ornamentação formal, e que apresentava cores discretas, traços sintéticos, formas estilizadas ou geométricas... (2)


(1) Rufino, A. M. A. C. P, Costa da Caparica: de Cassiano Branco à realidade, Lisboa, , 2014
(2) Rufino, A. M. A. C. P, Idem


Artigos relacionados:
Costa da Caparica — urbanismos

Informação relacionada:
Arquivo RTP: Vida & Obra de Cassiano Branco

sábado, 25 de junho de 2016

Eu gosto é do verão...

Na Primavera o amor anda no ar.
Na Primavera os bichos andam no ar.

Costa da Caparica, Vista parcial da Praia do Sol, ed. Passaporte, 43.
Imagem: Delcampe

Na Primavera o pólen anda no ar
E eu não consigo parar de espilrar.

Férias na praia, fotonovela iniciada em 30 de maio de 1963 na Crónica feminina.
Imagem: Dias que Voam

No Verão os dias ficam maiores.
No Verão as roupas ficam menores.

Costa da Caparica, Um trecho da praia, ed.Passaporte, 44.
Imagem: Delcampe

No Verão o calor bate recordes
E os corpos libertam seus suores.

Férias na praia, fotonovela iniciada em 30 de maio de 1963 na Crónica feminina.
Imagem: Dias que Voam

Eu gosto é do Verão
De passearmos de prancha na mão.

Costa da Caparica, Aspecto da Praia à hora do banho, Passaporte, 99.
Imagem: Delcampe - Oliveira

Saltarmos e rirmos na praia
De nadar e apanhar um escaldão.

Férias na praia, fotonovela iniciada em 30 de maio de 1963 na Crónica feminina.
Imagem: Dias que Voam

E ao fim do dia, bem abraçados
A ver o pôr-do-Sol
Patrocinado por uma bebida qualquer.

Costa da Caparica, praia de Santo António.
Imagem: Delcampe - Bosspostcard

No Outono a escola ameaça abrir.
No Outono passo a noite a tossir.

Férias na praia, fotonovela iniciada em 30 de maio de 1963 na Crónica feminina.
Imagem: Dias que Voam

No Outono há folhas sempre a cair
E a chuva faz os prédios ruir.

Costa da Caparica, Aspecto da Praia à hora do banho,  ed. Passaporte, 17.
Imagem: Delcampe

No Inverno o Natal é baril.
No Inverno ando engripado e febril.

Férias na praia, fotonovela iniciada em 30 de maio de 1963 na Crónica feminina.
Imagem: Dias que Voam

No Inverno é Verão no Brasil
E na Suécia suicidam-se aos mil


Costa da Caparica, Vista parcial da Praia, ed. Passaporte, 19.
Imagem: Delcampe

E ao fim do dia, bem abraçados
A ver o pôr-do-Sol

Férias na praia, fotonovela iniciada em 30 de maio de 1963 na Crónica feminina.
Imagem: Dias que Voam

Patrocinado por uma bebida qualquer.

Costa da Caparica, Um aspecto da Praia, Passaporte, 21.
Imagem: Delcampe - Bosspostcard

Patrocinado por uma bebida qualquer.

Férias na praia, fotonovela iniciada em 30 de maio de 1963 na Crónica feminina.
Imagem: Dias que Voam

Qualquer. (1)

Férias na praia, fotonovela iniciada em 30 de maio de 1963 na Crónica feminina.
Imagem: Dias que Voam


(1) A Fúria do Açúcar, O maravilhoso mundo do acrílico, Lisboa, Polygram, 1997

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Costa da Caparica por Raul Brandão em 1923

Do outro o mar azul metendo-se, num jorro enorme, pela ampla barra de Lisboa, deslumbrante e majestosa. De onde isto é esplêndido é acolá do alto do convento dos Capuchos. (1)

Miradouro do Convento dos Capuchos, ed. Passaporte, 57, 1966
Imagem: Delcampe

Da horrível Trafaria à Caparica gastam-se dezoito minutos num carrinho pela estrada através do pinheiral plantado há pouco. 

A Praia do Sol, Um trecho da estrada para Trafaria, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 112
Imagem: Delcampe

Os pinheiros são mansos, anainhos e inocentes: — os pinheiros novos são como bichos novos e têm o mesmo encanto. 

Ao lado esquerdo desdobra-se o grande morro vermelho a esboroar, e ao outro lado o terreno extenso e plano rasgado de valas encharcadas. De repente uma curva, algumas casotas cobertas de colmo — Caparica. 

Cabanas junto ao mar, Falcão Trigoso, óleo sobre madeira, 1925
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Primitivamente isto foi um grupo de barracas que os pescadores aqui ergueram neste esplêndido sítio de pesca, à boca da barra, a dois passos do grande consumidor. Têm um ar ainda mais humilde que os palheiros de Mira ou Costa Nova. 

Quatro tábuas e um tecto de colmo negro com remendos deitados cada ano: alguns reluzem e conservam ainda as espigas debulhadas do painço.

A Praia do Sol, As primitivas barracas dos pescadores, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 111
Imagem: Delcampe

No imenso areal o barco da duna, sempre o mesmo barco, maior ou mais pequeno, próprio para a arrebentação, de proa e popa erguidas para o céu. 

Praia do Sol, Caparica, ed. José Nunes da Silva, s/n
Imagem: Delcampe

Trabalham seis companhas em catorze barcos. Já trabalharam oito. Cada barco emprega vinte e um homens, contando dez que ficam em terra. 

Costa da Caparica, Entrando no mar, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, cliché João Martins
Imagem: Delcampe

Usam quatro remos: um grande de cada lado e dois pequenos, servindo os maiores para aguentar o barco quando as águas puxam e se vai ao mar a risco. 

A cada remo grande agarram-se três homens e dois aos mais pequenos. O espadilheiro guia o barco com outro remo – a espadilha. Quando há muito peixe fazem-se três lanços cada dia, e trabalha-se todo o ano se o mar deixa. A rede é a de arrasto para a terra.

O barco sai ao mar deixando um cabo nas mãos dos dez homens que ficam no areal, e vai-o largando pouco e pouco — cinquenta e tantas cordas de dezoito braças cada uma. 

Quando o arrais acha que se deve largar a rede, diz: — Em nome da Senhora da Conceição, rede ao mar! – E larga-se o calão, em seguida o alar, depois o saco, e por fim o outro alar e o calão, trazendo-se a corda para a terra. Abica, salta a tripulação e com os homens de terra arrastam a rede. 

Apanha-se sardinha, carapau, e às vezes, em lanços de sorte, e quando menos se espera, a corvina, alguma raia, pargo e linguado. 

Costa da Caparica, Pescadores arrastando o seu barco, ed. Passaporte, 371
Imagem: Delcampe

Uma grande extensão de areal, só areia e mar, barcos como crescentes encalhados e alguns pescadores remendando as redes. 

Costa da Caparica, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n
Imagem: Delcampe

Nem um penedo. Areia e céu, mar e céu. Dum lado o formidável paredão vermelho, a pique, desmaiando pouco e pouco, até entrar pelo mar dentro todo roxo, no cabo Espichel. 

Assombro de luz e cor. Amplidão. As casotas da Caparica aos pés, o mar ilimitado em frente, ao fundo e à direita a linha recortada da serra de Sintra com as casinhas de Cascais e Oeiras no primeiro plano esparsas num verde-amarelado... 

E luz? E o prodígio da luz?... A gente está tão afeita à luz que não repara nela e trata como uma coisa conhecida e velha este azul que nos envolve e penetra e que desaba em torrentes sobre as águas verdes desmaiadas e sobre as terras amarelas e vermelhas até ao cabo Espichel... 

Mas fecho os olhos – abro os olhos... Imensa vida azul – jorros sobre jorros magnéticos. Todo o azul estremece e vem até mim em constante vibração.

Costa da Caparica, ed. desc.

Quem sai da obscuridade para a luz é que repara e estaca de assombro diante deste ser, tão vivo que estonteia... (2)


(1) Raul Brandão, Os Pescadores, Paris, Ailland, 1923, 326 págs, 127,7 MB
(2) Raul Brandão, idem

segunda-feira, 20 de junho de 2016

O Juncal da Trafaria

O dia oito de setembro era o escolhido por Bulhão Pato para a abertura das suas caçadas do inverno no sul do Tejo, e o sitio preferido o Juncal da Trafaria. (1)

Trafaria, c. 1900.
Imagem: Delcampe

Aquella charneca do Juncal, descoberta, erma e agreste, onde, no verão, dardeja o sol implacável, e no inverno sopra o sudoeste, ouvindo-se ao longe o rolar das ondas, é uma paizagem profundamente triste, mas que não deixa de ter encantos. A solidão do deserto está alli, fronteira e contraposta ao bulicio da cidade !

A maré era boa, e aproámos ao Torrão, evitando o fadigoso transito pelo areal.

Costa da Caparica, passeio de barco, embarcação Zinha, 1922.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Um areal enorme, cortado de pequenos médãos, coberto duma alta, espessa, e hirta vegetação de juncos verde-negros, entresachados de raras moitas de joina. Arvores ... apenas algumas figueiras na horta do Miranda, á beira do rio! Isto e uns canteiros de morangos, eram os únicos signaes da vida vegetativa, naquelle chão árido e inhospito! A vinha, que elle alli plantara, agonisava, rasteira, enfesada e rachitica.

Plano hydrographico da barra do porto de Lisboa (detalhe), Francisco M. Pereira da Silva, 1857.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

A gente pouca, pallida, anémica, dizimada de continuo pelas febres. As aguas do inverno, estagnadas em charcos, tornados paúes, fermentando-as o sol ardente da canicula, evolavam de si miasmas mortaes, que o vento não varria, e que não poupavam nem as creanças, nem os adultos.

Em dias de sol, com o ar parado, aquelle ermo descampado é uma amostra da paizagem africana  ! Ao fundo, para o lado do Oceano, as cabanas de colmo dos pescadores, baixas e negras, e perto d'ellas a capellinha branca; defronte o cemitério, com os cyprestes esguios, balouçando — como nós — entre a vida e a morte ; á esquerda o Monte — árida rocha a pique, com o seu aspecto de fortaleza ; á direita a praia e o mar ...

Nada mais triste! Um dia, em que lá fiquei, ouvindo, ao sol posto, o toque das Ave-Marias, deu em mim tal melancolia, que desatei a chorar!

Não era ameno o sitio, tampouco o foi, em tempos, a fama dos seus moradores.

— Anda fugido na Costa — era uma phrase corrente na boca do povo, quando se falava de algum criminoso façanhudo, que desapparecera de Lisboa.

Transposto o Tejo, ladrões e assassinos alli se acoitavam e escondiam nas companhas dos barcos de pesca. Assim escapavam no mar aos quadrilheiros de Lisboa, quando lá iam perseguil-os. Uma visita da justiça á Costa — quando a policia estava longe de ser o que é hoje — era uma expedição arriscada, e quasi sempre inútil.

A civilização já lá chegou, e, se não mudou a natureza, mudaram os costumes. Ainda assim não podemos dizer que reina alli sempre uma paz octaviana. Um dia, logo depois de saírem de lá os nossos amigos, um homem, chamado Damião, foi esfaqueado.

A casa da sr.a Maria do Adrião — o nosso hotel — era respeitada, e nós, saindo de lá, não faziamos detença na povoação.

O poeta, installado no seu quartel general venatorio, em casa da sr.a Maria do Adrião, na Costa, havendo caça e dias amenos, deixava-se lá ficar, até que algum sudoeste bravio, dos que costumam açoitar aquella planície d'areia, o forçava a levantar vôo e recolher aos abrigos da cidade [...]

Retrato do poeta Raimundo Bulhão Pato,
Miguel Angelo Lupi, C. 1880
Imagem: ComJeitoeArte

Voltara o silencio áquclles logares. A nuvem negra, que de repente surgiu, a turvar-nos a limpida atmosphera daquelle formoso dia, desapparecera, varrida pela voz do poeta.

Dalli a pouco estávamos todos reunidos na casa de jantar da sr.a Maria do Adrião. Ao lado, na sala, de paredes estucadas, e tecto com relevos — uma surpresa para nós aquella restauração — a menina Gazimira extrahia das gavetas das suas bellas commodas de polimento, e mostrava ingenuamente ás senhoras, as riquezas e os primores da sua guardaroupa — chalés, vestidos de cores garridas, saias com rendas finas, camisas bordadas, lenços de seda de ramagens, que tão bem ficam, e tanto realce dam áquelles rostos campesinos, já illuminados de tons quentes pelo ar do campo e pelo sol.

Uma figura gothica — esta menina Gazimira. Alta e delgada de corpo, nem pallida, nem corada, a voz d"um timbre algo dorido, avara de palavras, os olhos sempre postos no chão, e um não sei que de triste e enigmático, davam-me a impressão de quem não anda satisfeito cá na terra...

Estas figuras, quando teem uma plástica individual, e caracteristica, por apagada que seja nellas a expressão da vida, são, como as estatuas, suggestivas.

Imprimem-se indeléveis na memoria, e entram na galeria do nosso mundo interior. E com estas imagens, cujos contornos o tempo vae esbatendo, que os artistas e os poetas compõem os seus quadros, os seus romances, e os seus poemas.

Vanidade ou vaidade, Hans Memling,
Musée des Beaux-Arts de Strasbourg, c. 1485.
Imagem: Wikipédia

Aquella donzella, serena e silenciosa, recortava-se alli, aos meus olhos — destacando do discorde scenario, e parecia ter saído d'algum velho painel flamengo, de Van Eyck ou de Memling — interior de cathedral gothica, ou comitiva castellã, em caçada fidalga, com pagens, lebreus e falcões [...]  

Os pescadores, pobre gente, quando ha peixe andam na sua faina ; quando elle falta vêem-se á porta das choças, ou na praia, olhando, tristes e sombrios, para o mar alto. E d'alli que lhes vem a ventura e a desgraça. Aquella vida, que para nós tem uma grande poesia, traz-lhes sempre deante dos olhos duas sombras negras — a fome em terra, quando escasseia o peixe, e a morte, quando os surprehende o vendaval !


Praia do Sol, Caparica, ed. José Nunes da Silva, s/n
Imagem: Delcampe, Bosspostcard




Sérios e concentrados, mantinham um discreto silencio, quando appareciam onde nós estávamos. Com os rostos semi-occultos, os gabões caídos em largas pregas, tinham um quer que de sombras, movendo-se lentamente naquelle fúnebre scenario.

A nota alegre, única, mas esta vivíssima, eram as creanças. Essas, sim, que vinham sempre visitar-nos. Nós, para elles, éramos a novidade — com os nossos trajos, armas, e perdigueiros. Elles — o bando buliçoso, saltão e gárrulo — corriam para nós, cheios de pittoresco e de vida. Uns de gabõesitos pardos outros de camisolas riscadas, brancas, azues, vermelhas ; alguns semi-nús, mostrando pelos rasgões da fato a pelle trigueira, com os seus tons fulvos ; todos descalços; os cabellos, pretos, loiros, arruivados, crespos e revoltos ; queimados os rostinhos pelo sol, e crestados pelo nordeste.

Costa da Caparica, crianças brincando na praia.
Imagem: Carlos Caria

Algum, mais atrevido, colleava, lenta e sorrateiramente, até á casa do jantar ; os outros miravamnos de longe por entre as portas, com os olhos vivos, esperando a saída. Poderia a vista satisfazer-lhes a curiosidade, mas nós, a este prazer, puramente óptico, ajuntávamos alguma coisa mais tangível.

Os primeiros a receber os nossos dons eram os mais velhos, os que nos tinham prestado algum serviço, que elles, no acto, não se esqueciam de allegar. A esta distribuição seguia-se outra, que era geral. Atirávamos para o monte.

Tinha que ver então ! O bando precipitava-se, ávido e furioso, sobre as mealhas esparsas na arêa. Era uma confusão vivíssima de corpos ás rebatinhas, de cabecitas resfolegantes e afogueadas, de mãos aduncas, luctando, qual de baixo, qual de cima, pela posse do metal. Aqui e alli, d'entre a revolta mole, erguiam-se alguns, cheios de alegria e de poeira, mostrando orgulhosos o premio da lucta. E ella repetia-se, se um olho mais agudo descobria no chão algum cobre, que aos outros escapara.

Depois os vencedores dispersavam. Alguns, raros, paravam nos limites da povoação, levando as mãos aos barretes ; outros iam-se logo, retouçando, aos pulos, pelo areal. Mas alguns ainda nos acompanhavam. Não era o amor, nem a gratidão ...

Costa da Caparica, crianças filhas de pescadores, 1938.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Não tinham apanhado nada, e vinham lastimando-se, até que alguma alma, impaciente ou apiedada repartia com elles os últimos miúdos. Um vintém para cinco, dez réis para três ... Contas difficeis de fazer, mas que elles lá resolviam com a sua arithmetica de pequeninos.

Eram os prémios de consolação.

Com titulos bastantes para ser procurado pelos mestres da venatoria, não os tinha eguaes este sitio para ser frequentado por senhoras. Quem alli as levava, não era a fama das amenidades do logar, éramos nós, os caçadores, auxiliados por um certo estimulo artístico, o da curiosidade do contraste — ver a povoação dos pescadores, com as suas casas de colmo, armadas sobre os barcos!

Bellas Artes, 16, Costa de Caparica, A. Roque Gameiro, Paulo Emílio Guedes & Saraiva.
Imagem: Delcampe

Um trecho da Africa, á vista, e a dois passos de Lisboa !

Bellas Artes, 15, Costa de Caparica, A. Roque Gameiro, Paulo Emílio Guedes & Saraiva.
Imagem: Delcampe

Das classes populares também alguns alli iam fazer as suas ágapes campestres. Mas essas, não raro, tinham um epilogo cómico, quando não trágico. Vinho quasi sempre, e, ás vezes, sangue. Casas de cal e arêa havia lá então duas ou três. Na parede exterior d'uma d'ellas lia-se uma inscripção, em grossas lettras d'almagre, commemorando que a modesta vivenda fora honrada, tal dia, por um rei nosso. Se bem me recordo, foi D. João VI. E também me mostraram o tinteiro de faiança nacional, pintalgado de amarello, vermelho e verde — tons crus — de que elle se serviu para escrever ou assignar não me lembro o que.

Este sertão, inhospito para gente civilisada, foi, durante muitos annos, talvez pelo seu estado de natureza primitiva, um paraiso para os caçadores! Um completo mattagal, alto, denso, e espinhoso. Invernos havia, porém, abençoados, em que parecia ter-se alli aberto a arca de Noé! A caça de arribação em bandos! 

Uma d'essas gravuras — tirada da Chasse illustrée de 1867 — e que está deante de mim, traz-me viva á lembrança, com todos os seus episódios, uma das melhores caçadas que fizemos [...]
Imagem: Fédération Cynologique Internationale

Eram abibes, tarambolas, narcejas, patos, maçaricos reaes, gallinhas d'agua, borrelhos, toirões, codornizes, e depois lebres, e até gallinholas e perdizes, que desciam do monte — tudo com o seu acompanhamento de aves carniceiras, corvos, grifos e milhafres !

Trafaria, Vista dos Moinhos, ed. Manuel Henriques, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Quando Bulhão Pato começou a frequental-o com os seus amigos, ainda o Juncal era isto. Hoje lembra o "locus ubi Troja fuit" ... Aqui foi o Juncal ! ... (2)

Trafaria, Vista dos Moinhos, ed. Manuel Henriques, 08, década de 1900.
Imagem: Delcampe


(1) Francisco Zacharias d'Aça, Caçadas portuguezas: paizagens, figuras do campo, Lisboa, Secção Editorial da Companhia Nacional Editora, 1898
(2) idem

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Costa da Caparica — urbanismos

Uma magnífica praia de fina areia estende-se sobre mais de 25 quilómetros, ao longo da costa Oeste do concelho e até ao Cabo Espichel. 

Plan du Port de Lisbonne et de ses Costes Voisinnes (detalhe), Jacques Nicolas Bellin, 1756.
Imagem: Bibliothèque nationale de France

É a melhor praia dos arredores de Lisboa e tem a vantagem de ser voltada para o Oceano. 

A água do mar é aqui muito mais pura do que nas outras praias próximas da capital.

Foi nesta costa que se formou a primitiva aldeia chamada "Costa de Caparica".

Do lado Norte, esta localidade está ladeada por uma grande mata nacional, que é continuada pela mata da Sociedade do Fabrico dos Explosivos e por uma outra que se estende sobre as encostas da Trafaria, que pertence ao Ministério da Guerra. 

É a mata mais acessível para os habitantes de Lisboa.

Estes dois elementos (praia e mata) e o preço relativamente reduzido da travessia do Tejo fizeram o grande êxito da Costa de Caparica, que não era, há dez ou doze anos, senão um agrupamento de barracas de pescadores e veio a ser uma estação balnear muito frequentada.

Infelizmente, o êxito fez também a desgraça da "Praia do Sol": construiu-se muito e sem qualquer plano previamente estabelecido ou qualquer fiscalização. 

Costa de Caparica, Praia Atlântico.
Pormenor de Solução Urbanística, Cassiano Branco, Arquitecto, 1930.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Veio a ser uma aglomeração totalmente contrária a todos os bons princípios. As ruas são inumeráveis e não calcetadas, as casas são minúsculas, empilhadas uma ao pé da outra, sem espaço à volta de si e com uma distribuição interior feita sem a mínima compreensão.

Costa da Caparica, vista aérea, 1930 — 1932.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Não há um só jardim, nem mesmo uma só árvore que pudesse refrescar esta densa acumulação de casas sobreaquecidas pelo sol ardente. (Mas temos de notar que nos raros pontos onde árvores foram plantadas, estas rapidamente se desenvolvem).

Costa da Caparica, vista aérea, 1930 — 1932.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Aqueles que empreenderam a realização do desenvolvimento desta localidade não perceberam que de tal forma não se atingiam resultados duradouros.

Os fregueses, se eles tiverem a escolha, não quererão continuar a vir alojar-se em casas desprovidas de conforto, sem qualquer jardim, e que se alugam excessivamente caro.

A construção de um bairro balnear moderno, ao lado da aglomeração actual, talvez seja a única maneira a adoptar para obrigar os especuladores a reflectir um pouco sobre o que eles fizeram. 

Seria mesmo muito bom fazer-lhes concorrência (como preconiza o meu associado, o Sr. Arquitecto J. G. Faria da Costa) pela urbanização de outros cantinhos nesta praia, um pouco mais afastados, é verdade, (como a Fonte da Telha), mas cuja situação é ainda mais bonita do que a da Costa de Caparica. 

Centro Turístico Internacional da Costa, separata do Jornal de Almada, 1968.
Imagem: Sesimbra identidade e memória

Bastaria construir até eles uma estrada de circulação rápida e organizar transportes económicos.

A aglomeração da Costa de Caparica está disposta com um certo afastamento do mar e está separada deste por uma duna, parcialmente artificial. 

A beira da água mais próxima fica cerca de 330 metros das casas. 

Portanto, esta praia de areia tem uma largura um pouco excessiva para os banhistas, cansados pelo sol e pelos seus banhos, sobretudo nos dias de grande calor. 

Fonte da Telha, 2006.
Imagem: wikimapia

Por vezes, no fim da tarde, o caminho que eles têm de [sic] percorrer torna-se ainda mais desagradável, por causa do vento do Norte que varre a praia lateralmente e levanta cegantes turbilhões de areia.

Derivado [sic] a isso, o meu associado concebeu o projecto de avançar as construções até à beira da água.

Plano de Urbanização da Costa da Caparica, Faria da Costa, 1947.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

O futuro da Praia do Sol reside no seu arranjo turístico e não na pesca, que não dá ganhos suficientes. 

Os aborígenes deveriam exercer profissões ligadas com o serviço da população flutuante, visto haver neste sítio a possibilidade não só de desenvolver a localidade como praia de Verão, mas também como estação de Inverno.

Nesta eventualidade, a Costa de Caparica deve adquirir um carácter de arranjo mais cuidado e de maior conforto, de que carece muito menos uma estação de banhos de mar. (1)

Costa da Caparica, praias urbanas Costa Polis, 2009.
Imagem: Programa Polis

A intervenção do Programa Polis na Costa de Caparica abrange uma área de aproximadamente 650 ha, compreendendo a frente atlântica de praias entre a Praia do Norte e a Praia da Bela Vista, a frente urbana e zona rural a nascente do centro urbano, a área das dunas sul entre o centro e a foz do Rego bem como uma zona de matas localizada a nascente da Fonte da Telha.

A intervenção compreende a remodelação do actual paredão e a requalificação do espaço público na frente de praias entre a Praia do Norte e a Nova Praia; a criação de áreas de lazer equipadas; a relocalização e construção de novos apoios de praia e instalações de apoio à pesca; o prolongamento da actual avenida marginal (Humberto Delgado) e a construção de estacionamentos de apoio à frente de praias. 

E ainda a reabilitação das obras de defesa costeira e de alimentação artificial das praias com o objectivo de proteger o centro da Costa de Caparica e aumentar a capacidade destas praias, em estreita articulação com [...]

in Programa Polis, Costa da Caparica, Plano Estratégico


(1) Gröer, Etienne de, Plano de Urbanização do Concelho de Almada, PUCA, Análise e Programa, Relatório, 1946, mencionado em Anais de Almada, 7-8 (2004-2005), pp. 151-236.

Leitura adicional:
Contributos para uma História do Ir à Praia em Portugal
A caminho de um novo paradigma de praia: a Costa da Caparica nos anos 1920-1970