terça-feira, 18 de julho de 2017

Lugar da Costa de Caparica, 12 de setembro de 1833

Publicou-se este Decreto na Chronica d'hontem com huma omissão typografica; e porque a mais pequena incorrecção n'hum Diploma de tal natureza he de grave importancia, julgamos necessario reimprimi-lo.

Barco no Tejo com mau tempo, Emeric Essex Vidal (1791-1861), 1833.
Imagem: artnet


Senhor: — Os Mestres das Redes da Costa de Caparica com as suas Companhas, que constituem ahi huma povoação de mais de 600 almas, faltarião ao seu dever, se não apparecessem na Presença de Vossa Magestade Imperial com algum signal de gratidão, e reconhecimento, tanto pela liberdade, e segurança individual de que gozão, vendo quebrados os ferros, com que o Despotismo lhes havia algemado os pulsos, como pela absoluta isenção de Direitos, com que Vossa Magestade Imperial Se dignou favorecer todas as Pescarias, que constituem huma fonte da riqueza da Nação.

A Omnipotencia Divina tem abençoado as penosas fadigas de Vossa Magestade Imperial a favor da liberdade de huma Nação, que se tem mostrado bem digna do ser livre; e dos Legitimos Direitos da Augusta Filha de Vossa Magestade Imperial a Senhora D. Maria II, nossa Rainha; concedendo-lhe huma serie de victorias, que apresenta outros tantos Prodigios, signal evidente da Justiça da Causa, pela qual Vossa Magestade Imperial pugna, pois que o Deos dos Exercitos, e o Rei dos Reis sómente protege o Bem, castigando ao mesmo tempo o mal.

Princesa, Maria da Glória, futura rainha D Maria II, 1833.
Imagem: Wikipédia

Não tanto pelo simples dever de obedecer, como pelo ardente desejo, e sincera vontade de concorrerem, pelo que pertence a exercidos maritimos, em que podem ser uteis, se offerecem com suas Companhas a tudo, que as circumstancias exigirem, para firmar, e sustentar o Throno da Augusta Filha de Vossa Magestade Imperial, que tem por base a Liberdade, e a Justiça.

Digne-se Vossa Magestàde Imperial acctitár os sinceros sentimentos, que esta porção de bons Portuguezes tem a honra de apresentar a Vossa Magestade Imperial; bem como do centro das humildes choupanas, em que vivem, dirigem ao Altissimo, conduzidos pelos sentimentos da verdadeira Religião, as mais assiduas Deprecações, para que defenda a preciosa Vida de Vossa Magestade Imperial, de que tanto ha mister a Nação; para que seja consolidado, e firmado o Throno da Augusta Filha de Vossa Magestade Imperial, Protector da Liberdade e da Justiça, que ha tantos annos se havia convertido em cruelissimas arbitrariedades, pavorosas masmorras, e patibulos cruentos.

Brasão e Coroa do Reino de Portugal antes colocados na "casa da coroa"
Imagem: caparica news

Lugar da Costa de Caparica 12 de Setembro de 1833.

Nós todos abaixo assignados os Mestres das Companhas da dita Costa de Coparica, Termo da Villa de Almada, a saber: Manoel José Martins, José dos Santos, Manoel Ignacio, Francisco Gonçalves, João Lopes Victoria, Pedro Gonçalves. Estes quatro Mestres por não saberem ler nem escrever assignarão de cruz. Manoel Gonçalves, Jeronymo Dias. (1)


(1) Chronica Constitucional de Lisboa, quarta-feira 18 de setembro de 1833

terça-feira, 4 de julho de 2017

Maria Rita do Adrião (1811-após 1903)

Em 1859 José Augusto Sacotto Galache e eu principiámos as nossas caçadas no Juncal da Costa. Pelas arribas as perdizes saltavam aos bandos; na planura as codornizes, as narcejas e outra caça de arribação abundantíssima. Vivíamos em Buenos-Ayres.

Vista do Tejo e da Torre de Belém, Maria Guilhermina Silva Reis.
Imagem: Wikimedia

No inverno, noite ainda, Lourenço da Pinha estava no caes de José António Pereira , com os seus três filhos: o mais velho José, o segundo João, o terceiro Francisco, este muito mocinho ainda para as fainas da travessia do Tejo, às vezes bravias.

Um dia, em Dezembro [7], véspera de Nossa Senhora da Conceição, embarcámos, noite cerrada ainda, com Lourenço e seus dois filhos mais velhos.

Tempo sêcco, sem vento, e intensamente frio; a geada caía em carambinas. Proa ao Torrão. Lourenço da Pinha, expansivo, animava os filhos: — Vamos, rapazes, de voga arrancada, que é para aquecer.

Vista panorâmica de Lisboa ocidental, Maria Guilhermina Silva Reis.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Havia aguas de monte, e o barco, mal vinha clareando, abicou defronte da Quinta do Miranda [...]

O estômago não tinha a mais leve memoria do almoço; a ambição de caçar no dia seguinte não nos mordia menos de que o appetite voraz. Resolvemos ficar; mas ficar aonde e comer o quê? A sorte.

Entrámos na povoação. Tudo choças de colmo; muitas levantadas sobre o arcaboiço de um velho barco. 

Costa da Caparica, 1907.
Imagem: Delcampe

Uma casa de um só andar, com armas reaes, bojudas como o abdómen do ladino e bondoso monarcha D. João VI, que foi alli por mais de uma vez.

De pedra e cal meia dúzia de casitas mais, quando muito. íamos andando por aquelle labyrintho de cubatas e á porta de um ferrador demos com uma rapariguita dos seus dez annos, de cara insinuante, vestido de chita, meias muito brancas, sóccos, cabello em trança e bem tratado.

— Ó pequena, olha lá. Haverá aqui alguma casa onde se possa ficar e se coma alguma coisa?

Summer day on Skagen s southern shore (detail), Pedrer S Krøyer, 1884.
Imagem: Wikipedia

— Pois não ha, meus senhores!... É a tia Maria Rita do Adrião, accrescentou, dando á sua voz crystallina certa expressão que indicava a grandeza da personagem a quem se referia.

Levou-nos á tia Maria, e tal foi o agasalho que por mais de trinta annos frequentei aquella casa com o melhor dos meus amigos.

A Claudina, a rapariguita que fora a nossa salvação e a nossa guia, passados tempos casou, e, já mãe de filhos, depois de eu estar n'este Monte [desde 1890], morreu, coitada, de uma pneumonia.

Maria Rita do Adrião vive ainda; ha dois annos que veiu visitar-me, na sua burrita, muito lépida, com os seus noventa e três.

As saloias (estudo), Silva Porto.
Imagem: Casa dos Patudos

Teve sempre boa estrella; até na sua visita a minha casa o azar apenas lhe deu um rebate falso. Quando voltava para a Costa perdeu um objecto de certo valor, creio que um brinco, que mão piedosa achou e foi logo annunciar no "Século".

Retrato de Bulhão Pato, Columbano, 1908.
Imagem: MatrizNet

Depois de devorarmos o jantar e pelos barqueiros mandar aviso aos nossos, sol alto ainda, sahimos até á praia [...]

Monte, 1904. (1)


(1) Bulhão Pato, Memórias, Vol. III, Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1907



A casa da sr.a Maria do Adrião — o nosso hotel — era respeitada, e nós, saindo de lá, não faziamos detença na povoação.

Casas de cal e arêa havia lá então duas ou três. Na parede exterior d'uma d'ellas lia-se uma inscripção, em grossas lettras d'almagre, commemorando que a modesta vivenda fora honrada, tal dia, por um rei nosso. Se bem me recordo, foi D. João VI. 

E também me mostraram o tinteiro de faiança nacional, pintalgado de amarello, vermelho e verde — tons crus — de que elle se serviu para escrever ou assignar não me lembro o que. 

Dalli a pouco estávamos todos reunidos na casa de jantar da sr.ª Maria do Adrião. Ao lado, na sala, de paredes estucadas, e tecto com relevos — uma surpresa para nós aquella restauração — a menina Cazimira extrahia das gavetas das suas bellas commodas de polimento, e mostrava ingenuamente ás senhoras, as riquezas e os primores da sua guarda-roupa — chales, vestidos de cores garridas, saias com rendas finas, camisas bordadas, lenços de seda de ramagens, que tão bem ficam, e tanto realce dão áquelles rostos campesinos, já illuminados de tons quentes pelo ar do campo e pelo sol.

in Zacharias d'Aça, Caçadas portuguezas, Lisboa, Secção Editorial da Comp. Nac. Editora, 1898