sábado, 30 de setembro de 2017

A duna...

Em 1882, os Serviços Florestais compraram à Câmara Municipal de Almada, os areais móveis, desde a margem esquerda do Tejo até à Costa de Caparica e no ano seguinte iniciaram-se os trabalhos de fixação da duna da Trafaria e dois anos depois, na Costa de Caparica. (1)

Costa da Caparica, Praia de S. João de Caparica, 2016.
Imagem: Rui Granadeiro

Não se descreve, diz o illustrado agrônomo [Henrique de Mendia], porque difficilmente se imagina o árido e desolador aspecto d'estes incultos areaes formados por uma infinidade de dunas de mediana altura em extremo moveis nos logares mais desguarnecidos da pobre é dispersa vegetação rasteira, que n'outros pontos existe com proveito e castigados por um sol ardente que se reffecte e espelha de continuo na silica brilhante.

Plano hydrographico da barra do porto de Lisboa (detalhe), Francisco M. Pereira da Silva, 1857.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

É esta a paisagem que o viajante descobre á entrada do nosso primeiro porto e da nossa primeira cidade, e é n'este meio que existe uma povoação de muitas almas, acossada pelas areias que procuram de continuo atacar-lhe as trincheiras rudemente defendidas, sem uma estrada regular, que a ponha em eommunicação com os logares populosos, tendo no mar o seu quasi exclusivo sustento, procurado á custa de heroicos esforços tantas vezes impotentes e nas exhalações deletérias dos pantanos do Juncal o germen constante das febres paludosas de que annualmente enfermam familias inteiras.

Costa da Caparica, estacionamento do Snack-Bar da Praia do Rei, 1964.
Imagem: Fotold.com (fb)

Bem triste povoado e desgraçados habitantes que teem por unico abrigo a choupaqa de colmo, mais pobre do que  a cubata de negro, sem que ao menos encontrem na organisação d'este as forças indispensaveis para reagir e lutar contra os miasmas exhalados pelas águas estagnadas e putridas que os prostam ás vezes tão repentinamente como se um accidente os accommettera de imprevisto. (2)


Em 1897, as Dunas de Caparica são descritas como sendo muito baixas e em grande parte alagadas e pouco movediças, tendo a sua maior largura junto ao Tejo (Costa, 1953). O primeiro processo utilizado na formação das dunas consistiu na construção de ripados ou paliçadas móveis (método francês), revelando-se pouco eficaz, pois as madeiras eram pouco resistentes à acção do mar e das tempestades (Dias, 1953). 

Costa da Caparica, Mário Novais, 1946.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

Em 1906, Mendes de Almeida iniciava estudos e experiências na Costa de Caparica com os seguintes objectivos: "I) abrigo de sementeiras pela formação de uma duna litoral de sebes; II) Supressão da cobertura de mato e sua substituição pela sementeira de cereais e abrigo de sebes; III) Substituição dos pinheiros indígenas por essências de maior crescimento e valor, ensaiando as plantações de acacias, eucaliptos e pinheiro exóticos." (Neves, 1972).

Costa da Caparica, Praia de S. João de Caparica, 2016.
Imagem: Rui Granadeiro

Para tal, Mendes de Almeida utiliza o sistema alemão que consiste na formação da duna litoral por meio de sebes duplas formadas de ramagem, na fixação das areias pela divisão da superfície em quadrados feitos com pequenas sebes mortas, de ramos, canas e matos, e sebes vivas de gramíneas, salgueiros, e na plantação dos quadrados com várias essências, em que predominam as resinosas (Boletim da Direcção Geral da Agricultura, 1912).

Costa da Caparica, Praia de S. João de Caparica, 2016.
Imagem: Rui Granadeiro

No seu estudo sobre a vegetação das dunas da Costa da Caparica, Costa (1953) refere-se às espécies de acácia existentes na Mata Nacional das Dunas da Costa da Caparica e Trafaria: A. longifolia, A. pycnantha, A. retinodes, A. cyclops, A. cultriformis, A. decurrens.

Costa da Caparica, turistas, 1932.
Imagem: Delcampe - Bosspostcard

Este autor referencia A. retinodes como a espécie mais abundante (presente em 78% dos inventários) em 50 inventários fitossociológicos realizados no acacial em 1953, seguida de A. longifolia (presente em 10% dos inventários). 

Costa da Caparica, encontro Jacista (Juventude Agrária Cristã), 1938.
Imagem: Delcampe - Bosspostcard

Em 1957 procedeu-se ao reconhecimento local das dunas desde a Trafaria até à Caparica, tendo sido elaborado um Relatório apresentado ao Ministro das Obras Públicas. 

Costa da Caparica, ed. José Nunes da Silva s/n, década de 1940.
Imagem: Delcampe

Neste documento conclui-se que "o problema da protecção se não limita apenas às dunas, mas estende-se, também às praias adjacentes" e pode ler-se que "As dunas são, em grande parte, revestidas de vegetação em que se observam: a Acácia (A. cyanophylla, Lindl.), com predomínio do Estorno (Ammophila arenaria L.) e o Bálsamo ou Chorão (Mesembryanthemum edule L.)". 

Costa da Caparica, vista da Quinta de Santo António e da Mata Florestal, tomada do Alto do Robalo, década de 1930.
Imagem: ed. desc.


A arriba fóssil da Costa de Caparica representa um sítio de grande interesse que importa conservar. No texto da criação da PPAFCC (Decreto-Lei nº 168/84, de 22 de Maio de 1984) pode ler-se: "A Paisagem Protegida tem como objectivos preservar as características geomorfológicas e as comunidades existentes, promovendo o seu equilíbrio biológico e paisagístico". (3)



(1) Daniela Lourenço, Avaliação de áreas invadidas por espécies de acacia..., 2009
(2) Henrique de Mendia cf. artigo original de Gervásio Lobato publicado no Diário de Notícias e republicado em A Realeza, de Duarte Joaquim Vieira Júnior, edição 1 de de 2 de setembro de 1882, e no Diário de Belém, edição de 3 de outubro de 1882.
(3) Daniela Lourenço, idem

Artigos relacionados:
Valle de Trafaria e pantano do Juncal
Arriba Fóssil

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Sobre a nova Mina de ouro da outra banda do Tejo

Lida em 10 de Maio de 1815.
Por José Bonifácio de Andrada e Silva.


Os motivos que me induzirão a escolher de preferencia o terreno da bahia, que começa na ponta da Trafaria, e vai findar no Cabo de Espichel, para estas tentativas e pesquizas, forão as noticias históricas que tinha obtido da Torre do Tombo; das quaes consta, que os Ourivieiros ou Mineiros da Adiça, que fica três quartos de legoa ao Nascente da nova Mina, desde o tempo do Senhor D. Affonso Henriques, em que já estavão em lavra estas terras, até o do Senhor D. João III, que as doou a hum certo António da Fonseca, sempre se conservarão em trabalho constante e lucrativo, a pezar do muito ouro, que pelas navegações do immortal Infante D. Henrique, nos vinha então da Costa da Mina.

Carta chorographica dos terrenos em volta de Lisboa (detalhe), 1814.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Que as antigas Minas da Adiça forão de muita utilidade á Coroa e ao Reino, o provão os grandes privilegios concedidos pelos nossos Reis aos Mineiros, em huma longa serie de Cartas de confirmação desde o principio da Monarchia até os fins do Reinado do Senhor Rei D. João III em que cessarão esses serviços; talvez porque passarão da Coroa para as mãos de António da Fonseca.

A Adiça formava hum Couto Real com Juizes próprios e privativos postos por ElRei nos primeiros tempos, e chamados então "Quinteiros" e depois eleitos pelos próprios Mineiros. Tinhão estes o privilegio de se queixarem immediatamente a ElRei das pessoas, quaesquer que fossem, que lhes não cumprião seus foros e isenções; ou os íncommodavão em seus trabalhos e occupações.

Escarpements formés par le Miocène et Pliocène entre Costa de Caparica et Adissa [Adiça], cliché P Choffat, c. 1900.
Imagem: Internet Archive

Não pagavão jugada, nem imposto algum de suas herdades e fazendas: não hião á guerra: não respondião em causa civil ou criminal perante algum Juiz, que não fosse o seu próprio: ninguém pousava em sua casa; nem se lhe tomava cousa alguma do seu contra sua vontade: estavão isentos de todos os encargos e officios do Concelho , até mesmo da Almoraçaria; e o que mais he, até estavão livres dos Pedidos Reaes de géneros e dinheiro, e dos encargos de Candelária: finalmente podiâo emprazar perante ElRei todo e qualquer Juiz, que fosse contra algum destes privilégios.

Tudo isto consta da Carta de Confirmação do Senhor Rei D. Manoel de 2 de Maio de 1497, onde vem inseridas todas outras mais antigas desde o Senhor D. Affonso III. O Senhor Rei D. João III confirmou antes da doação já mencionada , os mesmos privilégios pela sua Carta de 17 de Abril de 1526.

Parece pelos documentos que examinei, que até o Senhor Rei D. Duarte formavâo os Mineiros huma companhia ou sociedade "montanistica"; e náo só pagavão o quinto do ouro que tiravão por sua conta; mas erão também obrigados a lavrar por conta d' ElRei certos sítios daquella costa. Em tempo porém do Senhor D. Duarte mudou-se esta administração a requerimento dos Mineiros, em huma capitação annua, pelo ouro que lavra vão no chamado Medão ou Barreira, que acompanha e fica sobranceira ás praias desta costa: ficavâo porém obrigados a lavrar a Mina do sitio chamado da Malhada, quando entendessem ser tempo próprio de se apanhar o seu ouro, do qual pagavão metade a ElRei.

Os Adiceiros formarão então huma companhia composta de vinte, e huma pessoas, chamadas Mineiros mores, incluidos neste numero hum Mestre, e hum Escrivão; e de vinte e três outros chamados Mineiros menores. Os primeiros pagavão por cabeça annualmente duas coroas de bom ouro, e os segundos huma só. Deste modo a capitação dos Mineiros, afora a metade do ouro que se apanhava na Malhada, de que não sei a quantia, montava a sessenta e cinco coroas de ouro, que julgo serem das antigas do Senhor Rei D. Pedro, por não haver outras cunhadas até o Senhor Rei D. Duarte.

Almada - Banhada por um Mar de histórias
Vídeo: cmalmada

Ora cincoenta destas dobras de ouro fino fazião hum marco, e por tanto vinha a importar esta capitação no tempo de agora em valor intrínseco 144$640 reis com mui pouca differença. Tal foi a sabedoria e magnanimidade do Senhor Rei D. Duarte, que soube contentar-se com huma tão diminuta renda, para assim animar a classe interessante dos Mineiros, de que Portugal havia tirado grandes proveitos, e os Senhores Reis huma parte mui principal do seu Património.

Devo esperar da sabedoria do nosso Augusto Principe, que tão gloriosamente caminha pela estrada de seus Augustos Avos, que haja de favorecer as nossas nascentes Minas, de que foi o Creador, com o mesmo amor e patrocinio, que merecerão as antigas a seus Augustos Antecessores. 

Além destas noticias accresceo o ter sabido que alguns homens ás escondidas e sem licença tinhão ha poucos annos gandaiado algum ouro por estes sítios, e o vendião aos Ourives de Lisboa. Animado de tâo boas esperanças logo que cessarão os perigos da guerra desastrosa, que felizmente acabou, mandei fazer pesquizas successivas, para me certificar da abundancia de ouro, e calcular pelo preço presente dos jomaes, se me era possível restabelecer essas antigas Minas.

Começarão estas pesquizas em Outubro de 1813, e se concluirão em 25 de Maio de 1814; então cheio de summo prazer, por ver realizadas as minhas esperanças , paticipei ao Governo destes Reinos o seu resultado, e pedi a sua approvação, e algumas providencias de que preecisava, que me forão logo concedidas. e os primeiros ensaios e pesquizas forão feitos em tres differentes sitios, 1.° nas visinhanças da antiga Adiça, 2.° no sitio chamado a Ponta do mata, onde fiz abrir a Mina que hoje se lavra com o nome Principe Regente, e no dos Olhos d'agoa mais ao Sul, e distante do primeiro perto de legoa e meia.

Posteriormente ordenei novos exames ao longo do pé da Barreira ou Medão, entre os dois extremos da Adiça e da Ponta do mato; e por elles consegui felizmente certeza de que em toda esta extensão de costa ha mais ou menos ouro, que póde ser aproveitado. Das outras pesquizas, feitas terra a dentro no sitio da Azoia, e Ponte das cabeças, e ultimamente nas Cruzinhas junto á praia, fallarei depois.

Almada, entre o Rio e o Mar
Vídeo: cmalmada

Achando-me sem Mestres, nem obreiros, que soubessem da mineração e apuração de ouro em pó, e sò com o hábil Mineiro Manoel Nunes Barbosa, natural da Capitania des Goyazes, por acaso residente nesta Cidade, e que hoje he o Inspector c Mestre da nova Mina, vi-me forçado a começar hum só serviço para ir attrahindo gente, e faze-la instruir na laboração do ouro, para depois poderem servir de Mestres, e Feitores de novos estabelecimentos, que desejo succcrssivamente ir fazendo em tempo próprio nestes districtos; e em outras Províncias do Reino.

Pela novidade do objecto, e pelo alto preço dos jornaes, que espero diminuão com o tempo, e quando houver maior abundância e barateza de viveres, não pôde ainda este Estabelecimento chegar ao grao de prosperidade e lucro, que delle espero.

Acresce também a falta de tempo para poder recolher no verão mineral em abundância, que depois se haja de lavar pelo inverno, em que as continuas borrascas, chuvas , e grandes marés difficultão, e impedem muitas vezes abrir novas catas, e recolher a pissarra aurífera: todavia com o favor Divino , e á força de zelo e actividade, e com ajuda das sciencias auxiliares, até para aproveitar devidamente a differença das marés nas praias, e escapar das marés vivas, temos lutado felizmente contra os elementos; e a extracção do ouro não tem parado até hoje, a pezar das terriveis invemadas que tem havido, e das ventanias e borrascas continuas que reinão nesta costa geralmente.

No dia 4 de Julho de 1814 se começou pelas três horas da tarde a primeira cata encostada á fralda da Barreira, so sitio já mencionado da Ponta do mato que fica quasi no meio da bahia. Principiou-se este trabalho com três únicos homens, e estes mesmos erão Soldados inválidos do pequeno destacamento, que guarnece aquella Mina. Eu mesmo fui examinar o terreno e a formação, e dar as instrucções e ordens que me parecerão mais convenientes para o methodo e andamento daquelle serviço [...] 

Linha de costa da Torre do Bugio ao Cabo Espichel (fotomontagem).
Observam-se as elevações moinhos do Chibata, Monte Córdova (Serra de S. Luís) e Serra da Arrábida, conforme descrito no Plano hydrographico da barra do porto de Lisboa, Francisco Maria Pereira da Silva, 1857.
Imagem: Mar de Caparica

Assim se por hum lado as ondas do mar embravecido sobre a immensa praia desabrigada contrarião muitas vezes nossos trabalhos mineraes, por outra he o Oceano ao mesmo tempo hum valentíssimo e excellente operário, que ajunta, e deposita as fagulhas sem conto do ouro derramado, e as lava e apura sobre as rampas da praia, que lhe servem então de óptimo bolinete ou lavadouro de concentração, quando acha base firme, qual he o salão ou greda já descripta. (1)


(1) História e memórias da Academia Real das Sciências de Lisboa, Tomo V, Parte I, Lisboa, 1817

Informação relacionada:
Histórias da História da Charneca de Caparica



Património paleontológico da mina da Adiça:
Património paleontológico do Concelho de Almada
As três baleias da Adiça
História e memórias da Academia Real das Sciências de Lisboa, Tomo XI, Parte I, Lisboa, 1831

Baleias da Adiça (Ed. port. National Geographic)
Imagem: Museu Nacional de História Natural e da Ciência