Mostrar mensagens com a etiqueta Urbanismo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Urbanismo. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Clube Náutico Mare Nostrum

A propósito das festas recentemente levadas a efeito na Cova do Vapor destinadas a conseguir os fundos necessários para melhorar as suas instalações, parece-nos oportuno traçar em breves linhas o que foi e é o Clube Nàutico "Mare Nostrum", e o que poderá ser, uma vez que disponha de maiores facilidades e meios de expansão.

Cova do Vapor, Clube Náutico Mare Nostrum, Revista Stadium n° 107, 1944.
Hemeroteca Digital de Lisboa

O "Mare Nostrum" foi fundado por funcionários dos Hospitais Civis de Lisboa e. de início, exclusivamente destinado a es!es. Criou rápidamente simpatias para ele convergindo depois funcionários de outros Ministérios. Quando da oficialização dos seus estatutos, a 1 de Abril de 1936, deixou de se fazer qualquer restrição à admissão de sócios, além dos usuais.

A principal finalidade do clube foi a de dar incremento do desporto da vela. O problema do elevado custo das embarcações e os pesados encargos que incidem sobre os feus possuidores, foi encarado de frente pelo "Mare Nostrum", construindo nas suas instalações modelos de barcos de preços acessíveis a todas as bolsas e concedendo facilidades para a sua aquisição (...) (1)

oooOooo

O lugar onde surgiram os aglomerados de barracas que tomaram a designação de Cova do Vapor e Lisboa Praia situa-se no extremo oeste do concelho de Almada, numa zona onde a dinâmica fluvial e marítima criou condições para a instalação de habitações de apoio aos banhistas, sobre as areias então emersas, encontrando aqui, no domínio público marítimo, um espaço que podiam ocupar mediante o pagamento de uma licença anual.

O cabedelo, dito golada do Tejo, a ponte cais e as denominadas Cova do Vapor e Lisboa-Praia, 1953.
 Flickr

Respondendo ao fluxo cada vez maior de banhistas às praias da margem sul, oriundos de Lisboa, a praia da Trafaria, onde se chegava facilmente por barco, encontra-se inserida num núcleo urbano consolidado sem possibilidades de crescimento; por outro lado, a Costa da Caparica encontra-se a mais de quatro quilómetros de distância da Trafaria, e a oferta de alojamento balnear é menos acessível.

Estão assim criadas as condições para o surgimento de uma zona balnear popular, acessível através da ligação fluvial com partida de Belém e onde é possível encontrar alojamento económico, a chamada “praia dos tesos”.

clique para aceder às imagens

Parece ter havido, durante as primeiras décadas, uma adequação da ocupação sazonal ao avanço e recuo do cordão dunar, através da relocalização das construções existentes. Esta situação inverteu-se com a progressiva consolidação do edificado, a partir da década de 70 (...) (2)


(1) Stadium n° 44, 1943
(2) Estudo de atuação e promoção dos recursos culturais, naturais e paisagísticos na Cova do Vapor

Artigos relacionados:
Os Cachopos
Mar da Calha
Trafaria e Cova do Vapor em 1946
Galeria da Cova do Vapor

Leitura relacionada:
Stadium n° 107, 1944

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

As primitivas barracas dos pescadores

Segundo uma tradição que parece consistente, teriam sido os ilhavenses, vindos do Norte na sua avançada pioneira de exploração de novas pescarias, quem primeiro se estabeleceu na Costa da Caparica, até então deserta; e, imediatamente após eles, os algarvios, vindos do Sul. Uns e outros, além da pesca e da organização que esta implica, trouxeram consigo os seus hábitos e costumes próprios, que implantaram nestas paragens.

A Praia do Sol, As primitivas barracas dos pescadores, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 111.
Delcampe

Passados os primeiros tempos, em que toda essa gente permanecia na Caparica apenas durante a época da safra, nos meses de Outubro, Novembro e Dezembro, vivendo em "singelas e pequenas choupanas, a que largavam fogo quando se retiravam para as suas terras", começa a dar-se a sua fixação: os ilhavenses ao Norte, sobre um medo elevado que existe perto do ponto onde agora se situam as barracas dos pescadores; os algarvios ao Sul, cada qual em seu bairro, fazendo vida separada.

Paisagem com pescadores e cabana de palha a arder, Joaquim Manuel Rocha (1727-1786).
Palácio do Correio Velho

Os algarvios, para se abrigarem, construíram sem dúvida barracas de estorno ou junco, idênticas às que usavam na sua terra de origem, e com os mesmos materiais que ali também se encontram. A habitação tradicional característica do pescador ilhavense, no Norte, é o palheiro de tabuado, apenas com a cobertura em estorno.

Costa da Caparica, cabanas de colmo e tabuado.
Estampa, Madrid, 13 de fevereiro 1932

As mais antigas notícias de que dispomos referentes à Costa da Caparica, dos séculos XVIII e XIX, mencionam, como veremos, exclusivamente um aglomerado de "barracos de palha" (à excepção de Rocha Peixoto, que no seu estudo sobre os "Palheiros do Litoral", datado de 1898, in «Portugália» I, Porto, 1899, pp. 79 96, fala na "imutável traça" do palheiro de tabuado, mas cuja excessiva generalização já denunciamos);

Costa da Caparica, Antigas casas de pescadores, Acção Bíblica (Aliança Bíblica), década de 1930.
Delcampe

se estes termos correspondem a uma indicação rigorosa e precisa, temos de supor que aqui, onde sem dúvida a madeira para o tabuado seria de difícil e dispendiosa obtenção, esses pio neiros ilhavenses adoptaram, não a forma da sua habitação tradicional, mas a dos seus co vizinhos algarvios, mais fácil de construir, que teriam imitado e usado até muito tarde.

Costa da Caparica, Casa de pescadore, Luiz Salvador Jr., 1947.
Luís Salvador Júnior

Mas, como veremos, é de admitir que se trate de uma mera generalização sem qualquer preocupação de exactidão, e que desde muito cedo houvesse casas de tabuado, e apenas com telhados de colmo, além de barracos inteiramente em estorno.

Parece terem sido os ilhavenses os que também primeiro ali passa ram a viver com carácter permanente; os algarvios regressavam ao Algarve quando acabava a safra. Ainda em 1770, esta praia era habitada todo o ano apenas por um número muito reduzido de pessoas, e só no ano seguinte ali se fixaram os primeiros « mestres da pesca», dois ilhavenses – Joaquim Pedro e José Rapaz – e dois algarvios – José Gonçalves Bexiga e Romualdo dos Santos –, "em barracas já com maiores comodidades", e com as suas companhas.

Desenho da Costa antiga, autor António Lopes Martins, Col. Particular.
Rui Manuel Mesquita Mendes (fb)


"Dado o exemplo, em anos a seguir, ali se fixaram também os mestres José dos Santos, Jerónimo Dias, João Lopes e Manuel Toucinho". O principal motivo da subsequente fixação também dos algarvios teria sido o receio de perderem a sua zona de pesca (Agro Ferreira, "A Praia da Costa (Caparica) – Terra de Pescadores", Lisboa, 1930, pp. 20, 22, 30 31).

A rivalidade entre ilhavenses e algarvios era grande, mas o elemento nortenho acusava uma certa supremacia, e os algarvios foram-se amoldando; as próprias moradias do bairro velho dos pescadores parecem se mais com as da Costa Nova do que com as do Algarve.

Com o decorrer do tempo, os dois grupos acabaram por se fundir; mas essa primitiva rivalidade perdura, ainda em nossos dias, nos partidos dos jogos dos garotos, que opõem sempre os do Norte contra os do Sul (em 1870 contavam se na Costa da Caparica 307 chefes de família, na sua maioria descendentes de gentes do Norte (António Correia, "A acção dos pescadores de ílhavo em Costa da Caparica", in "Arquivo do Distrito de Aveiro", n.° 130, Aveiro, 1967, pp. 113 118).


Um dos primeiros cuidados destes pioneiros nortenhos foi a construção da igreja, também de junco e tabuado; o cemitério local data de 1780, mas só em 1848 foi murado [de facto trata-se de outro cemitério, mais recente, v. O cruzeiro do lugar da Costa].

Nos princípios do século XIX, a Costa da Caparica era ainda apenas um aglomerado de barracas de palha, na expressão de Pinho Leal; a primeira casa de pedra e cal data de cerca de 1800; quando D. João VI visitou a Caparica em 1823 ou 1824, hospedou se nessa casa, que era a única ainda então existente no lugar, e que é hoje conhecida pelo nome de casa da Coroa, no largo da Coroa (porque o seu dono, em comemoração do acontecimento, mandou incrustar na sua frontaria as armas reais daquele monarca, sobre a esfera armilar (cf. Pinho Leal, vol. 2, pp. 97 98, Lisboa, 1874, " PAM", s. v. Caparica), ver também "A Praia da Costa" (Agro Ferreira), p. 30).

Costa da Caparica, Casa da Coroa, Cruz Louro, 1935.
Rui Manuel Mesquita Mendes (fb)

Em 1840, um grande fogo, chamado da "Quinquilheira", devorou 98 barracas; em 1864, outro, devorou cerca de 60; e em 1884, outro ainda, devorou também cerca de 60.

Por volta de 1900 a Costa da Caparica continuava a ser apenas um arraial de barracas; "a única casa mista de cantaria e madeira, era uma taberna" (Raquel Soeiro de Brito, "Palheiros de Mira», p. 23"). [esta generalização não corresponde à verdade, em 1859 já existiam diversas construções em alvenaria, v. Maria Rita do Adrião (1811-após 1903)].

Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, colégio do Menino Jesus e casas típicas de pescadores, década de 1900.
Arquivo Municipal de Lisboa

Mais uma vez, porém, não podemos saber se essas barracas seriam de estorno ou tabuado; mas cremos que, pelo menos nessa altura, já ali existiam casas deste último género, embora sem dúvida a par de bar racos de estorno, de que aliás chegaram até quase aos nossos dias alguns exemplares: além dos barracos pròpriamente ditos, há que acrescentar, como bem notou Fernando Castelo Branco, outros, construídos sobre barcos fora de uso, que se vêem em duas aguarelas de Roque Gameiro (v. O Alfama, 3 de 3), que supo mos poder datar desta mesma época, e a que já nos referimos; ora esses barracos são precisamente de tabuado (horizontal), e apenas com a cobertura em estorno (Fernando Castelo Branco, "O estudo das construções de materiais vegetais do Litoral Português", in "Mensário das Casas do Povo", Ano XXIII, n.° 265, Lisboa, 1968, ano XII, n.° 264, 1968, p. 9).

Acresce que os homens velhos da localidade tão longe quanto podem, lembram se da Caparica, como um aglomerado sobretudo de casas de tabuado, tal como ainda hoje.

Costa da Caparica, Praia do Sol.
Bairro dos Pescadores, Cruz Louro, 1934.
BestNet Leilões

Seja como for, a partir de então, a construção em tabuado toma certa mente maior incremento, enquanto os velhos barracos do tipo algarvio se vão extinguindo, acompanhando os rápidos progressos que se verificam nos locais que passam a ser frequentados por veraneantes (Raquel Soeiro de Brito, op. loc. cit.).

Segundo Agro Ferreira, até 1922 esta povoação era constituída apenas por «uma centena de barracas de colmo», a par de «umas dezenas de barracas de tijolo e meia dúzia de casas abarracadas de pedra e cal » (Agro Ferreira, "As praias da Costa – indevidamente chamada da Caparica". I Congresso National de Turismo, II Secção, Lisboa, 1936 – A "Praia do Sol"). Mas, pelas razões apontadas, é difícil saber se a expressão, além das coberturas, se refere também às paredes.

Costa da Caparica, interior de uma barraca de pescadores, Cruz Louro, 1930.
Delcampe

Com efeito, Raul Brandão, falando da Costa da Caparica em 1923, dá a entender que as casas aí eram, pelo menos então, de tabuado (Raul Brandão, "Os Pescadores", 1923, p. 248: "Quatro tábuas e um tecto de colmo negro"). E Leite de Vasconcelos, que a visita em 1931, nota que, pouco tempo antes, ainda ali se via grande número de casas de madeira cobertas de colmo, « que vão sendo substituídas por óptimas vivendas» (J. Leite de Vasconcelos, "Etnografia Portuguesa", II, p. 564). "O telhado faz se de barrotes de pinheiro, castanheiro (!), etc., pondo se lhe por cima canas grossas, e sobre as canas feixes de estorno, atado a elas com linhas de carreto. Chamam barracas a estas casas, que vão desaparecendo. Os compartimentos podem ter divisões ou simplesmente cortinas, ou de caniçadas de estorno."

Aspecto do bairro piscatório da Costa da Caparica, 1938.
Arquivo Nacional Torre do Tombo

Note se que este autor publica uma fotografia antiga da Costa da Caparica, em que se vêem alguns escassos barracos que parecem ser de tabuado, no meio de uma chusma de outros inteiramente de estorno, do tipo algarvio, dispersos no areal (J. Leite de Vasconcelos, "Etnografia Portuguesa", III, p. 487 488, e fig. 126, p. 489).

Hoje, na Costa da Caparica, nenhum exemplar subsiste de tais barracas, e domina inteiramente a casa de tabuado, não só para banhistas, numa feição cuidada, como também, no velho bairro dos pescadores, estas térreas, de pau a pique, e tabuado horizontal, virando para a rua a empena, onde se situa a porta; a cobertura em telha de Marselha é a única diferença sensível entre elas e as barracas descritas por Raul Brandão (Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, "Palheiros", p. 95).
nto".

Costa da Caparica, Bairro dos Pescadores.
Arquivo Histórico da Marinha

Embora seja portanto plausível, não se pode contudo, como dissemos, afirmar que essas casas representem a forma primordial das habitações dos ilhavenses que se instalaram na Caparica, que reproduziriam naturalmente o sistema construtivo usado na sua terra de origem; na verdade, se os "barracos de palha" a que alude Pinho Leal, eram de junco, do tipo algarvio, elas serão apenas um estádio habitacional mais adiantado, que se teria então iniciado, após que as condições de vida dos seus moradores melhora ram, e os transportes em geral se tornaram mais fáceis.

Em todo o caso, essa nova forma, aqui na Caparica, teria vindo curiosamente ao encontro da mais velha tradição construtiva da região de origem dos seus primeiros povoadores (note-se porém que, aqui, eles não usaram a construção palafítica característica da sua terra de origem e dos outros povoados por eles criados, e que se justificaria pelas mesmas razões, cf. Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, op. cit. p. 96).
I); 

Costa da Caparica, Bairro dos Pescadores.
Arquivo Histórico da Marinha

Cerca de 9 km a Sul da Costa da Caparica encontra se a Fonte da Telha, "lugarejo de pescadores à beira mar", também "quase totalmente formado por estas primitivas barracas", que "servem de arrecadação, de abrigo de animais e ainda de habitação para o Homem" (Orlando Ribeiro, ap. Raquel Soeiro de Brito, op. cit. p. 23).

A Fonte da Telha surgiu, como povoação, por volta de 1900, e há poucos anos a esta data ainda viviam alguns dos homens que lhe deram começo. Pescadores da Caparica, esses homens deitavam por vezes ali as suas redes de arrasto para terra, e pernoitavam em covas que abriam na duna e sumàriamente abrigavam com estorno, que vergavam amarrando lhe as pontas em cima, de modo a formar como que uma pequena tenda.

A Fonte da Telha (Costa da Caparica, Praia do Sol), Cruz Louro, 1937.
Cruz Louro

Tomada a resolução de aí se instalarem com carácter permanente, eles ergueram barracas, que certamente reproduziram as da Caparica, em que até esse momento tinham vivido.

Em 1934, a povoação, a despeito da sua proximidade da Caparica, que então já evoluirá muito consideràvelmente, mantinha o seu carácter primitivo. Nos últimos anos, graças também à sua frequentação sempre crescente como praia de banhos, o aspecto da Fonte da Telha tem se modificado, e designadamente as barracas de estorno vão sendo ràpidamente substituídas por casas de tabuado ou de materiais duros, que se alinham em arruamentos regulares; mas delas subsistem ainda alguns exemplares.

A estrutura e pormenores de construção dos primitivos barracos da Costa da Caparica, que até aos princípios deste século constituíram, se não a totalidade, certamente uma grande parte, da povoação, já só poderá conhe cer se através dos exemplares ainda existentes da Fonte da Telha, que como dissemos, eram sem dúvida idênticos àqueles (em 1963, ver texto correspondente à nota 279, a descrição de Leite de Vasconcelos das coberturas de estorno das barracas de tabuado da Caparica).


Fonte da Telha, cabana (fig. 254).
Veiga de Oliveira, Galhano, Pereira, Construções primitivas em Portugal

Aqui, a estrutura das paredes consiste numa série de prumos espetados na areia – as muletas; os das paredes laterais são baixos, erguendo se acima do solo pouco mais de 1,50 m; e aos que suportam o pau de fileira (cume), a meio das empenas, chamam prumos de cabeceira.

Os barrotes da cobertura, lançados do frechal ao cume, ficam distantes uns dos outros cerca de 60 cm, e sobre eles pregam-se ou amarram se canas simples ou aos pares, a espaços de cerca de 15 cm. Nas paredes, a ripagem é semelhante, disposta mais espaçadamente.

O estorno do revestimento é cosido a ponto, e o cume leva uma fiada dis posta transversalmente, segura por duas canas, uma em cada vertente; sobre esta fiada dispõe se outra – a combreira – ao correr do cume, também amarrada para as varas. Interiormente as paredes são revestidas de tabuado, colocado horizontalmente (fig. 254).

Na Trafaria, temos indicação da existência – já antes de 1793 – de barracos semelhantes aos de outros pontos da nossa costa, e às "sanzalas ou palhotas" do Brasil e da África, "de palha brava e comprida" ou "folhas dos coqueiros, com paredes de fora de taipa" (Luís António de Oliveira Mendes, "Discurso académico ao Panorama", premiado na sessão pública de 12 de Maio de 1793, in "Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa", Tomo IV, Lisboa, 1812, agradecemos esta indicação ao investigador António Carreira).

Costumes portuguezes, um pescador na Trafaria.



(1) Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano, Benjamim Pereira, Construções primitivas em Portugal

Artigos relacionados:
Maria Ritta do Adrião: alojamento local (desde 1859)
Maria Rita do Adrião (1811-após 1903)
Casario
A Costa no século XIX
Não rebenta a vaga
etc.

Tema:
Urbanismo

Polémica sobre outras construções (palheiros, apoios de pesca, restaurantes de praia, residências de veraneio etc.):
Os palheiros da Costa, enquanto evidência da cultura dos pescadores da costa ocidental
Palheiros da Costa da Caparica: em defesa da cultura popular
Estudo de caracterização e avaliação do eventual valor cultural e patrimonial (histórico e arquitectónico) das construções de carácter precário, localizadas na área de intervenção do PP5...

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Descida do Cabedelo

succedeo vir huns dos Saveiros sahindo da costa, que fica ao Sul da trafaria, a donde a dianados bosques, fabricou entre as margens do mesmo Tejo, e reconcavas daquellas penhas, huma celebre anceada, em que os ditos Saveiros vivem a mayor parte do anno aquartellados, em suas cabanas (...) (1)

Costa da Caparica, Descida (e Ponta) do Cabedelo, ed. desc., década de 1920.
Delcampe

Há 15 milhões de anos, deu-se a formação das rochas que constituem a arriba fóssil, sedimentos e fósseis de organismo marinhos, posteriormente a formação da camada superior, constituída por areias e cascalheiras de cor avermelhada. Nesta época a arriba era o limite do território, estava em contacto com a água (...)


Zee Caerte van Portugal Daer inne Begrepen de vermaerde Coopstadt van Lisbone (detail),
Lucas Janszoon Waghenaer, 1586.
Wildernis

A Ponta do Cabedelo, como o nome indica é uma “pequena elevação de areia, na foz de um rio, formada por acumulação de sedimentos fluviais e marinhos”, o que indica também que a Descida do Cabedelo foi outrora inundada por água (...)


El Atlas del Rey Planeta (detalhe), Pedro Teixeira, 1634
La descripción de España y de las costas y puertos de sus reinos

“Esta faixa litoral é preenchida exclusivamente por areias, pelo que até finais do século XlX a paisagem era dominada por dunas e juncais que ocupavam as zonas alagadas com água escorrente da arriba” (cf. Centro de Arqueologia de Almada, Actas do 1º Encontro sobre o Património de Almada e do Seixal, 2012)

Plano hydrographico da barra do porto de Lisboa (detalhe), Francisco M. Pereira da Silva, 1857.
Biblioteca Nacional de Portugal

No entanto denota-se o aparecimento do Convento dos Capuchos (1558) no lugar chamado de Outeiro o que significa “Pequena eminência de terra firme, pequeno monte ou coluna”, no cimo da Arriba que “ (...) mais a ocidente, em lugar recatado e isolado, lhes permitia o sossego necessário ao seu modo de vida.”, e no lugar da Descida do Cabedelo, próximo do Convento, é possível verificar uma linha de água bem demarcada que escorre da Arriba.

Arriba fóssil e Convento dos Capuchos, 1952.
Arquivo Municipal de Lisboa

A Descida do Cabedelo aparece como um rasgo na arriba fóssil, sem vestígios aparentes de água, no entanto quase todo o lugar tem a indicação de poços de água (...)

Costa da Caparica,  ed. Passaporte, 7, década de 1950.
Delcampe

Atualmente já é visível a estrada do Miradouro dos Capuchos que parte do Largo existente, em frente ao Convento dos Capuchos, já construída e que culmina num miradouro construído em cima do local onde foram encontrados vestígios arqueológicos, e que olha sobre a Costa da Caparica e Lisboa.

Costa da Caparica, vista tomada do Alto do Robalo, ed. desc.

Perpendicularmente a esta estrada, um caminho que tem como destino o lugar de um rádio-farol, tornando a Ponta do Cabedelo um lugar apenas de contemplação e manutenção de um rádio-farol existente. (2)


(1) Francisco Guevarz, Nova relação da batalha naval, que tiveram os algaravios com os saveiros nos mares, que confinão com o celebrado paiz da Trafaria, Catalumna, 1750)
(2) Mariana Ferreira Raposo, Entre o Mar e a Terra - Costa da Caparica
Paisagem de Transição: Percurso pedonal entre a Costa da Caparica e o Alto dos Capuchos, 2021


Artigos relacionados:
Arriba Fóssil
Costa do Mar
Mar da Calha
Terras da Costa
Cronologia do Convento dos Capuchos (Caparica)



Como de costume o objecto que se descreve neste apontamento já quase não existe. Creio que do cabedelo aqui referido, que atravessava o juncal misturando-se com a duna,  e do qual restou o escarpado, formaria ainda por 1750 uma enseada no mar... contra o mito que conta que o areal da Costa foi depositado pelo terramoto de 1755 e que antes deste não existiria, como há 15 milhões de anos.

Plano geral que representa a Costa do Mar entre Trafaria e Cabo Espichel (detalhe) de Jacob Crisóstomo Pretorius, datado de 22 de Abril de 1789.
Arquivo Histórico Militar, 3/47/AH-2/6 – nº 18468


Não são poucas as teses, relatórios e artigos que recorrem às anotações e imagens que, com origem em trabalhos precedentes de diversos autores, nestas referências ao longo do tempo venho reunindo e categorizando:

Mar de Caparica
Almada virtual
Eventualmente Lisboa e o Tejo

terça-feira, 1 de novembro de 2022

Alegria no trabalho

Suprimindo todas as instituições privadas e públicas – provenientes da República de Weimar – responsáveis pelos interesses trabalhistas como sindicatos e instituições recreativas, o Estado numa atitude totalitária, e visando anular as lutas de classe, criou em maio de 1933 a Frente Alemã para o Trabalho - Deutsche Arbeitsfront (DAF). Presidida por Robert Ley, a DAF tornou-se no principal mediador entre entidades patronais e empregados, acabando por fundar em novembro do mesmo ano a Kraft durch Freude (KdF), uma organização recreativa (...)

Federação Nacional para a Alegria no Trabalho (F.N.A.T.).
Costa da Caparica, aspecto do almoço dos trabalhadores dos Sindicatos Nacionais, 1937.
Arquivo Nacional Torre do Tombo

Numa ação propagandística e pretendendo regulamentar os tempos livres dos trabalhadores, a Obra sindical Alégria y Descanso facultou aos seus associados átimos de educação cultural e artística, viagens e excursões, formação militante e atividades desportivas, sofrendo influência direta das bases práticas e teóricas das suas congéneres – italiana, alemã e portuguesa. Importa mencionar que, antes da sua consolidação em 1940, a direção da Obra sindical se reuniu várias vezes com os quadros administrativos da OND, da FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho), da KdF, entre 1936 e 1938, para discutir e apreender os seus moldes teóricos e formas de atuação (...)

Costa da Caparica, encontro Jacista (Juventude Agrária Cristã), 1938.
Delcampe Bosspostcard

Similarmente ao modus operandi dos restantes regimes fascistas Europeus, o Estado Novo concebeu, a partir de 1933 várias organizações corporativas, paramilitares, opressivas, propagandísticas e recreativas que o coadjuvaram no projeto de centralização de poder e no controlo integral dos vários domínios da vida pública e privada, tendo em vista a construção de um novo «Homem Português» (...)

Costa da Caparica, Jardim da F.N.A.T., ed. Passaporte n° 46.
Delcampe

Instituído no ano de 1933, o Secretariado De Propaganda Nacional (SPN), sob a orientação de António Ferro, tornou-se responsável pela conceção e promoção de uma política cultural popular que, enquanto conduzia os portugueses para os princípios sociais e políticas do Estado, o dotava de uma irrepreensível imagem tradicional de Bom-Gosto. (1)

Bandeira da Federação Nacional para a Alegria no Trabalho (F.N.A.T.).
BestNet Leilões

"A organização corporativa da Nação não deve limitar os seus objetivos ao campo das preocupações de ordem meramente material. Por muito graves e instantes que sejam as solicitações de alguns problemas económicos do momento presente, há que alargar os horizontes do nosso esforço.

Sem um intenso movimento de espiritualização da vida e sem um forte apelo aos valores morais, a obra do Estado Novo poderia renovar materialmente a face da terra portuguesa, mas não seria conseguida a sua vitória mais alta: a transformação profunda da nossa mentalidade, o revigoramento de todos os laços e de todos os sentimentos que mantém a comunidade nacional e a perpetuam através dos tempos. (...)

É preciso estimular o ambiente de puro idealismo em que tais instituições se criaram, manter acesa a chama do entusiasmo e da confiança que o pensamento social do Estado Novo Corporativo fez reacender na consciência das massas trabalhadoras"  (2)


Em 1939, e mesmo antes de se converter em Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI) no ano de 1944, o SPN acumulou novas funções e passou a ter sob a sua alçada a incumbência de estimular e regulamentar a prática turística (...)

Costa da Caparica, fotografia de Pais Ramos,
Panorama revista portuguesa de arte e turismo n° 10, agosto de 1942.
Hemeretoca Digital


Considerando a classe operária como um grupo sensível à criação de associativismos e movimentos de contestação social, o Estado Novo, arvorando a missão de pedagogo nacional, promoveu, adstrito à ação da FNAT, a criação de várias colónias de férias dedicadas aos “trabalhadores inscritos nos sindicatos Nacionais e nas Casas do Povo e as suas famílias”, entre 1935 e 1974.

Costa da Caparica, F.N.A.T. Um lugar ao sol. Pavilhão central, ed. desc. (Neogravura).
Delcampe


Dependendo das débeis condições da Fundação e dos apoios estatais e, inicialmente, restrito à obra desenvolvida na Mata da Caparica, o projeto das colónias de férias nacionais para trabalhadores avançou, durante vinte anos, a título experimental, não existindo condições para identificar, no período em questão, num programa base a si destinado.

Costa da Caparica, Entrada principal para a FNAT, ed. Passaporte, 88, década de 1960.
Delcampe

De facto, apesar de existir empenho por parte do regime e da organização “em melhorar as condições de vida do trabalhador” consagrando “especial atenção à necessidade de assegurar a sua recuperação física”, as fragilidades que a FNAT enfrentou, ao longo dos seus primeiros anos de instituição, não permitiram gerar o equilíbrio necessário para a ampliação desejada da obra «Um Lugar ao Sol».

Apartada da “«cidade de férias» de Cassiano Branco, que se adivinhava veloz e vibrante ao ritmo d’a idade do Jazz-band”, a primeira colónia de férias nacional estruturou-se como uma verdadeira urbanização, de vertente familiar e educativa, adaptando-se ao espaço envolvente em composições de «roupagem» moderna.

Costa da Caparica, F.N.A.T. Um lugar ao sol. Vista aérea, ed. Neogravura.
Delcampe Bosspostcard

“A partir de 1950, atingiu-se o equilíbrio num nível de receitas e de despesas de ordem dos 2,600 contos”, que, conquanto longe de ser o desejável ou “significar desafogo”, permitiu, associado ao terceiro estatuto da Fundação, expandir o projeto das colónias de férias.

Não detendo mais a gestão das colónias balneares infantis e tendo como base a obra de «Um Lugar ao Sol», a FNAT desenvolveu um plano de readaptação dos seus edifícios, anteriormente destinados às crianças, para o público adulto.

Costa da Caparica, F.N.A.T. Um lugar ao sol. Trecho duma avenida, ed. Neogravura.
Delcampe Bossposcard

Enfatizando “as feições de uma obra que Salazar desejava simples, despretensiosa, agradável, higiénica e confortável”, o plano de readaptações, contando com “uma forte carga pedagógica na elevação cultural moral e cívica dos trabalhadores”, dotou os seus edifícios, repetidamente descritos na documentação como «pitorescos» e «com pendor tradicional», de dormitórios destinados a solteiros, quartos familiares, salas de jantar, salas de convívio, bar, casas-de-banho, capela, garagem e áreas funcionais que albergaram cozinhas, despensas e compartimentos destinados a funcionários (...) (3)


(1) Joana Castanheira Gabriel, Arquitetura social da FNAT (1938-1974)..., 2019
(2) Decreto-lei n.º 25 495, 13 de junho de 1935. Diário do Governo n.º 134 - I Série. Presidência do Conselho. Lisboa, p. 857.
(3) Joana Castanheira Gabriel, idem

Artigos relacionados:
Um lugar ao sol
Sobre o projecto de Cassiano Branco
Indevidamente chamada de Caparica
Mata do Estado e Quinta de Santo António

Leitura relacionada:
Panorama revista portuguesa de arte e turismo n° 10, agosto de 1942

sábado, 18 de junho de 2022

A origem das espécies

O evento de 11 de junho, "Exposição Cápsula do Tempo",  foi organizado na Costa do Mar (entre a Trafaria e o Cabo Espichel) pelos descendentes dos Saveiros e dos Algaravios, espécie nova e mais persistente que as anteriores que quer preservar os seus valores e  identidade, apesar invasão dos outras espécies, exógenas, forasteiras causadores da degradação do seu habitat e do ambiente em geral.

Descendentes dos Saveiros e dos Algaravios (a comissão organizadora).
Museu virtual da Costa do Mar

Uma vez estabelecida a origem da Costa do Mar, todos sabemos que, apesar das informações contraditórias de alguns autores, que na origem do topónimo "Trafaria" está o "trafo", o aparelho de pesca. Portanto, quando um indígena da Costa do Mar diz "vendi o trafo", quer dizer que vendeu as redes e ficou com o barco a decorar o areal.

As origens, painel da Exposição Cápsula do Tempo.
Museu virtual da Costa do Mar

A "Nova relação do batalha naval, que tiverem os algaravios com os saveiros nos mares, que confinão com o celebrado paiz da Trafaria, Catalumna, en la imprenta de Francisco Guevarz." (1750), documenta o encontro cordial e amistoso as duas espécies originais que viriam a fundar a localidade, e descreve bem o modo dócil e gentil como os algaravios pediram algum peixe emprestado e a deferência com que os saveiros os receberam e responderam a tal solicitação.

A fixação, painel da Exposição Cápsula do Tempo.
Museu virtual da Costa do Mar

Precursores da espécie dos banhistas (parentes das alforrecas), caixeiros, operários da fábrica moderna, criadas de servir (sopeiras) e velhas (de controlo da natalidade) já nos inícios do século xix aí iam passar os domingos em alegres e atribuladas burricadas. Também a Marquesa de Alorna, então senhora idosa, aí se deslocou com um séquito meio decrépito. O rei D. João VI, o amante das caldeiradas, após várias visitas lá mandou colocar a sua pedra d'armas numa padaria, perto do local onde está hoje o megalito.

O menir (arte contemporânea)
 com notável efeito de pêndulo do escudo em relação à coroa
evoca simbólicamente o efeito da ondulação do mar
representado na calçada adjacente

Como espécie migratória que sou (estava na Torreira, a inventariar as xávegas que existiam em 1997), ainda tentei visitar o evento, mas o ramal da linha do caminho de ferro foi encerrado e não consegui chegar a tempo.

As artes e as suas gentes, painel da Exposição Cápsula do Tempo.
Museu virtual da Costa do Mar

Bulhão Pato, poeta do romantismo e memorialista, Romeu Correia, escritor neorrealista etc. também ficaram apeados. O comboio turístico, Transpraia, "devido à ignorância de uns e à má fé de outros", é uma espécie extinta, ou em vias de extinção.

O desenvolvimento da Praia do Sol, painel da Exposição Cápsula do Tempo.
Museu virtual da Costa do Mar

Entretanto, outra espécie invasora insinua-se com um outro evento, a exposição "Entre o mar e a terra", quer dizer: à babugem, mas com tendência a avançar para o interior, "Projetos de arquitetura para a Costa da Caparica". Esta espécie precisa ser vigiada com atenção, pois estes invasores são persistentes e mais sofisticados e vivem em simbiose académica e sócio-política com outras espécies predadoras/dominantes como atesta o respeito pelo acordo ortográfico.

Consta que nos últimos tempos tem havido um problema com os pombos. Recomenda-se por isso a criação de uma nova espécie, resultante do cruzamento da gaivota com o milhafre, para combater o flagelo.

Rui Granadeiro, junho de 2022

sábado, 14 de maio de 2022

Maria Ritta do Adrião: alojamento local (desde 1859)

Duns apontamentos que nos foram proporcionados pelo Snr. Francisco José da Silva, Mestre das artes de pesca, extrahimos os apontamentos que se seguem e que mal podem aspirar a simples elementos de estudo para a historia da localidade:

Vista aérea da Costa de Caparica (detalhe), 1937.
Arquivo Municipal de Lisboa

A pesca começou a ser explorada na Costa por algarvios e ílhavos que ali vinham pescar nos meses de Outubro, Novembro e Dezembro, chamados da sáfra; construíam então eles próprios umas singelas e pequenas choupanas a que largavam fôgo quando se retiravam para as suas terras.

Em 1770 fixaram ali domicilio, em barracas já com maiores comodidades, com as suas companhas, os mestres: José Gonçalves Bexiga, algarvio, Joaquim Pedro, de Ílhavo; Romualdo dos Santos, algarvio; José Rapaz, de Ílhavo. Dado o exemplo, em anos a seguir, ali se fixaram também os mestres: José dos Santos, Jerónimo Dias, João Lopes e Manuel Toucinho.

Um dos primeiros cuidados dos povoadores foi a construção de uma Igreja — que foi feita simplesmente de junco e taboado.

As simples barracas de pescadores, de junco e colmo, foram-se aperfeiçoando, enchendo-se de conforto e comodidades, até ao ponto de nelas se proporcionarem festas verdadeiramente faustosas a que concorriam dos arredores fidalgos e literatos dos meados do seculo passado.

Ainda há tradições directas de algumas dessas festas e é frequente encontrarem-se na Costa resto de mobílias antigas, das melhores que certamente havia nessa época. Oratórios e imagens sagradas, conservadas religiosamente, constituem verdadeiras preciosidades e dão ideia da opulência com que chegou a viver a colónia piscatória, em tempos áureos. (1)

oo0oo

Em 1859 José Augusto Sacotto Galache e eu principiámos as nossas caçadas no Juncal da Costa (...)

Um dia, em Dezembro (7), véspera de Nossa Senhora da Conceição, embarcámos, noite cerrada ainda, com Lourenço e seus dois filhos mais velhos.

Tempo sêcco, sem vento, e intensamente frio; a geada caía em carambinas. Proa ao Torrão. Lourenço da Pinha, expansivo, animava os filhos: — Vamos, rapazes, de voga arrancada, que é para aquecer.Havia aguas de monte, e o barco, mal vinha clareando, abicou defronte da Quinta do Miranda (...)

O estômago não tinha a mais leve memoria do almoço; a ambição de caçar no dia seguinte não nos mordia menos de que o appetite voraz. Resolvemos ficar; mas ficar aonde e comer o quê? A sorte.

Entrámos na povoação. Tudo choças de colmo; muitas levantadas sobre o arcaboiço de um velho barco.

Uma casa de um só andar, com armas reaes, bojudas como o abdómen do ladino e bondoso monarcha D. João VI, que foi alli por mais de uma vez.

De pedra e cal meia dúzia de casitas mais, quando muito. íamos andando por aquelle labyrintho de cubatas e á porta de um ferrador demoscom uma rapariguita dos seus dez annos, de cara insinuante, vestido de chita, meias muito brancas, sóccos, cabello em trança e bem tratado.

— Ó pequena, olha lá. Haverá aqui alguma casa onde se possa ficar e se coma alguma coisa?

— Pois não ha, meus senhores!... É a tia Maria Rita do Adrião, accrescentou, dando á sua voz crystallina certa expressão que indicava a grandeza da personagem a quem se referia.

Desenho da Costa antiga, autor António Lopes Martins, Col. Particular.
Rui Manuel Mesquita Mendes (fb)


Levou-nos á tia Maria, e tal foi o agasalho que por mais de trinta annos frequentei aquella casa com o melhor dos meus amigos. (2)

oo0oo

Dalli a pouco estávamos todos reunidos na casa de jantar da sr.ª Maria do Adrião. Ao lado, na sala, de paredes estucadas, e tecto com relevos — uma surpresa para nós aquella restauração — a menina Cazimira extrahia das gavetas das suas bellas commodas de polimento, e mostrava ingenuamente ás senhoras, as riquezas e os primores da sua guarda-roupa — chales, vestidos de cores garridas, saias com rendas finas, camisas bordadas, lenços de seda de ramagens, que tão bem ficam, e tanto realce dão áquelles rostos campesinos, já illuminados de tons quentes pelo ar do campo e pelo sol. (3)

Maria Ritta do Adrião
O António Maria, 18 de setembro de 1884



(1) Almada na História, Boletim de Fontes Documentais nº 32 (2019)
(2) Bulhão Pato, Memórias, Vol. III, Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1907
(3) Zacharias d'Aça, O Tiro Civil n.° 139, quarta-feira 1 de junho de 1898

Leitura relacionada:
A praia da Costa (Caparica): Estancia balnear, de cura de repouso e de turismo

Artigos relacionados:
Gentes da Costa (e a miguelista exaltada) em 1828
Maria Rita do Adrião (1811-após 1903)
Bulhão Pato, uma caçada no Juncal, por Zacharias d'Aça (VI)
Nas arribas do mar (prosa)
Nas arribas do mar (faíscas de fogo morto)