segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

As primitivas barracas dos pescadores

Segundo uma tradição que parece consistente, teriam sido os ilhavenses, vindos do Norte na sua avançada pioneira de exploração de novas pescarias, quem primeiro se estabeleceu na Costa da Caparica, até então deserta; e, imediatamente após eles, os algarvios, vindos do Sul. Uns e outros, além da pesca e da organização que esta implica, trouxeram consigo os seus hábitos e costumes próprios, que implantaram nestas paragens.

A Praia do Sol, As primitivas barracas dos pescadores, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 111.
Delcampe

Passados os primeiros tempos, em que toda essa gente permanecia na Caparica apenas durante a época da safra, nos meses de Outubro, Novembro e Dezembro, vivendo em "singelas e pequenas choupanas, a que largavam fogo quando se retiravam para as suas terras", começa a dar-se a sua fixação: os ilhavenses ao Norte, sobre um medo elevado que existe perto do ponto onde agora se situam as barracas dos pescadores; os algarvios ao Sul, cada qual em seu bairro, fazendo vida separada.

Paisagem com pescadores e cabana de palha a arder, Joaquim Manuel Rocha (1727-1786).
Palácio do Correio Velho

Os algarvios, para se abrigarem, construíram sem dúvida barracas de estorno ou junco, idênticas às que usavam na sua terra de origem, e com os mesmos materiais que ali também se encontram. A habitação tradicional característica do pescador ilhavense, no Norte, é o palheiro de tabuado, apenas com a cobertura em estorno.

Costa da Caparica, cabanas de colmo e tabuado.
Estampa, Madrid, 13 de fevereiro 1932

As mais antigas notícias de que dispomos referentes à Costa da Caparica, dos séculos XVIII e XIX, mencionam, como veremos, exclusivamente um aglomerado de "barracos de palha" (à excepção de Rocha Peixoto, que no seu estudo sobre os "Palheiros do Litoral", datado de 1898, in «Portugália» I, Porto, 1899, pp. 79 96, fala na "imutável traça" do palheiro de tabuado, mas cuja excessiva generalização já denunciamos);

Costa da Caparica, Antigas casas de pescadores, Acção Bíblica (Aliança Bíblica), década de 1930.
Delcampe

se estes termos correspondem a uma indicação rigorosa e precisa, temos de supor que aqui, onde sem dúvida a madeira para o tabuado seria de difícil e dispendiosa obtenção, esses pio neiros ilhavenses adoptaram, não a forma da sua habitação tradicional, mas a dos seus co vizinhos algarvios, mais fácil de construir, que teriam imitado e usado até muito tarde.

Costa da Caparica, Casa de pescadore, Luiz Salvador Jr., 1947.
Luís Salvador Júnior

Mas, como veremos, é de admitir que se trate de uma mera generalização sem qualquer preocupação de exactidão, e que desde muito cedo houvesse casas de tabuado, e apenas com telhados de colmo, além de barracos inteiramente em estorno.

Parece terem sido os ilhavenses os que também primeiro ali passa ram a viver com carácter permanente; os algarvios regressavam ao Algarve quando acabava a safra. Ainda em 1770, esta praia era habitada todo o ano apenas por um número muito reduzido de pessoas, e só no ano seguinte ali se fixaram os primeiros « mestres da pesca», dois ilhavenses – Joaquim Pedro e José Rapaz – e dois algarvios – José Gonçalves Bexiga e Romualdo dos Santos –, "em barracas já com maiores comodidades", e com as suas companhas.

Desenho da Costa antiga, autor António Lopes Martins, Col. Particular.
Rui Manuel Mesquita Mendes (fb)


"Dado o exemplo, em anos a seguir, ali se fixaram também os mestres José dos Santos, Jerónimo Dias, João Lopes e Manuel Toucinho". O principal motivo da subsequente fixação também dos algarvios teria sido o receio de perderem a sua zona de pesca (Agro Ferreira, "A Praia da Costa (Caparica) – Terra de Pescadores", Lisboa, 1930, pp. 20, 22, 30 31).

A rivalidade entre ilhavenses e algarvios era grande, mas o elemento nortenho acusava uma certa supremacia, e os algarvios foram-se amoldando; as próprias moradias do bairro velho dos pescadores parecem se mais com as da Costa Nova do que com as do Algarve.

Com o decorrer do tempo, os dois grupos acabaram por se fundir; mas essa primitiva rivalidade perdura, ainda em nossos dias, nos partidos dos jogos dos garotos, que opõem sempre os do Norte contra os do Sul (em 1870 contavam se na Costa da Caparica 307 chefes de família, na sua maioria descendentes de gentes do Norte (António Correia, "A acção dos pescadores de ílhavo em Costa da Caparica", in "Arquivo do Distrito de Aveiro", n.° 130, Aveiro, 1967, pp. 113 118).


Um dos primeiros cuidados destes pioneiros nortenhos foi a construção da igreja, também de junco e tabuado; o cemitério local data de 1780, mas só em 1848 foi murado [de facto trata-se de outro cemitério, mais recente, v. O cruzeiro do lugar da Costa].

Nos princípios do século XIX, a Costa da Caparica era ainda apenas um aglomerado de barracas de palha, na expressão de Pinho Leal; a primeira casa de pedra e cal data de cerca de 1800; quando D. João VI visitou a Caparica em 1823 ou 1824, hospedou se nessa casa, que era a única ainda então existente no lugar, e que é hoje conhecida pelo nome de casa da Coroa, no largo da Coroa (porque o seu dono, em comemoração do acontecimento, mandou incrustar na sua frontaria as armas reais daquele monarca, sobre a esfera armilar (cf. Pinho Leal, vol. 2, pp. 97 98, Lisboa, 1874, " PAM", s. v. Caparica), ver também "A Praia da Costa" (Agro Ferreira), p. 30).

Costa da Caparica, Casa da Coroa, Cruz Louro, 1935.
Rui Manuel Mesquita Mendes (fb)

Em 1840, um grande fogo, chamado da "Quinquilheira", devorou 98 barracas; em 1864, outro, devorou cerca de 60; e em 1884, outro ainda, devorou também cerca de 60.

Por volta de 1900 a Costa da Caparica continuava a ser apenas um arraial de barracas; "a única casa mista de cantaria e madeira, era uma taberna" (Raquel Soeiro de Brito, "Palheiros de Mira», p. 23"). [esta generalização não corresponde à verdade, em 1859 já existiam diversas construções em alvenaria, v. Maria Rita do Adrião (1811-após 1903)].

Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, colégio do Menino Jesus e casas típicas de pescadores, década de 1900.
Arquivo Municipal de Lisboa

Mais uma vez, porém, não podemos saber se essas barracas seriam de estorno ou tabuado; mas cremos que, pelo menos nessa altura, já ali existiam casas deste último género, embora sem dúvida a par de bar racos de estorno, de que aliás chegaram até quase aos nossos dias alguns exemplares: além dos barracos pròpriamente ditos, há que acrescentar, como bem notou Fernando Castelo Branco, outros, construídos sobre barcos fora de uso, que se vêem em duas aguarelas de Roque Gameiro (v. O Alfama, 3 de 3), que supo mos poder datar desta mesma época, e a que já nos referimos; ora esses barracos são precisamente de tabuado (horizontal), e apenas com a cobertura em estorno (Fernando Castelo Branco, "O estudo das construções de materiais vegetais do Litoral Português", in "Mensário das Casas do Povo", Ano XXIII, n.° 265, Lisboa, 1968, ano XII, n.° 264, 1968, p. 9).

Acresce que os homens velhos da localidade tão longe quanto podem, lembram se da Caparica, como um aglomerado sobretudo de casas de tabuado, tal como ainda hoje.

Costa da Caparica, Praia do Sol.
Bairro dos Pescadores, Cruz Louro, 1934.
BestNet Leilões

Seja como for, a partir de então, a construção em tabuado toma certa mente maior incremento, enquanto os velhos barracos do tipo algarvio se vão extinguindo, acompanhando os rápidos progressos que se verificam nos locais que passam a ser frequentados por veraneantes (Raquel Soeiro de Brito, op. loc. cit.).

Segundo Agro Ferreira, até 1922 esta povoação era constituída apenas por «uma centena de barracas de colmo», a par de «umas dezenas de barracas de tijolo e meia dúzia de casas abarracadas de pedra e cal » (Agro Ferreira, "As praias da Costa – indevidamente chamada da Caparica". I Congresso National de Turismo, II Secção, Lisboa, 1936 – A "Praia do Sol"). Mas, pelas razões apontadas, é difícil saber se a expressão, além das coberturas, se refere também às paredes.

Costa da Caparica, interior de uma barraca de pescadores, Cruz Louro, 1930.
Delcampe

Com efeito, Raul Brandão, falando da Costa da Caparica em 1923, dá a entender que as casas aí eram, pelo menos então, de tabuado (Raul Brandão, "Os Pescadores", 1923, p. 248: "Quatro tábuas e um tecto de colmo negro"). E Leite de Vasconcelos, que a visita em 1931, nota que, pouco tempo antes, ainda ali se via grande número de casas de madeira cobertas de colmo, « que vão sendo substituídas por óptimas vivendas» (J. Leite de Vasconcelos, "Etnografia Portuguesa", II, p. 564). "O telhado faz se de barrotes de pinheiro, castanheiro (!), etc., pondo se lhe por cima canas grossas, e sobre as canas feixes de estorno, atado a elas com linhas de carreto. Chamam barracas a estas casas, que vão desaparecendo. Os compartimentos podem ter divisões ou simplesmente cortinas, ou de caniçadas de estorno."

Aspecto do bairro piscatório da Costa da Caparica, 1938.
Arquivo Nacional Torre do Tombo

Note se que este autor publica uma fotografia antiga da Costa da Caparica, em que se vêem alguns escassos barracos que parecem ser de tabuado, no meio de uma chusma de outros inteiramente de estorno, do tipo algarvio, dispersos no areal (J. Leite de Vasconcelos, "Etnografia Portuguesa", III, p. 487 488, e fig. 126, p. 489).

Hoje, na Costa da Caparica, nenhum exemplar subsiste de tais barracas, e domina inteiramente a casa de tabuado, não só para banhistas, numa feição cuidada, como também, no velho bairro dos pescadores, estas térreas, de pau a pique, e tabuado horizontal, virando para a rua a empena, onde se situa a porta; a cobertura em telha de Marselha é a única diferença sensível entre elas e as barracas descritas por Raul Brandão (Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, "Palheiros", p. 95).
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Costa da Caparica, Bairro dos Pescadores.
Arquivo Histórico da Marinha

Embora seja portanto plausível, não se pode contudo, como dissemos, afirmar que essas casas representem a forma primordial das habitações dos ilhavenses que se instalaram na Caparica, que reproduziriam naturalmente o sistema construtivo usado na sua terra de origem; na verdade, se os "barracos de palha" a que alude Pinho Leal, eram de junco, do tipo algarvio, elas serão apenas um estádio habitacional mais adiantado, que se teria então iniciado, após que as condições de vida dos seus moradores melhora ram, e os transportes em geral se tornaram mais fáceis.

Em todo o caso, essa nova forma, aqui na Caparica, teria vindo curiosamente ao encontro da mais velha tradição construtiva da região de origem dos seus primeiros povoadores (note-se porém que, aqui, eles não usaram a construção palafítica característica da sua terra de origem e dos outros povoados por eles criados, e que se justificaria pelas mesmas razões, cf. Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, op. cit. p. 96).
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Costa da Caparica, Bairro dos Pescadores.
Arquivo Histórico da Marinha

Cerca de 9 km a Sul da Costa da Caparica encontra se a Fonte da Telha, "lugarejo de pescadores à beira mar", também "quase totalmente formado por estas primitivas barracas", que "servem de arrecadação, de abrigo de animais e ainda de habitação para o Homem" (Orlando Ribeiro, ap. Raquel Soeiro de Brito, op. cit. p. 23).

A Fonte da Telha surgiu, como povoação, por volta de 1900, e há poucos anos a esta data ainda viviam alguns dos homens que lhe deram começo. Pescadores da Caparica, esses homens deitavam por vezes ali as suas redes de arrasto para terra, e pernoitavam em covas que abriam na duna e sumàriamente abrigavam com estorno, que vergavam amarrando lhe as pontas em cima, de modo a formar como que uma pequena tenda.

A Fonte da Telha (Costa da Caparica, Praia do Sol), Cruz Louro, 1937.
Cruz Louro

Tomada a resolução de aí se instalarem com carácter permanente, eles ergueram barracas, que certamente reproduziram as da Caparica, em que até esse momento tinham vivido.

Em 1934, a povoação, a despeito da sua proximidade da Caparica, que então já evoluirá muito consideràvelmente, mantinha o seu carácter primitivo. Nos últimos anos, graças também à sua frequentação sempre crescente como praia de banhos, o aspecto da Fonte da Telha tem se modificado, e designadamente as barracas de estorno vão sendo ràpidamente substituídas por casas de tabuado ou de materiais duros, que se alinham em arruamentos regulares; mas delas subsistem ainda alguns exemplares.

A estrutura e pormenores de construção dos primitivos barracos da Costa da Caparica, que até aos princípios deste século constituíram, se não a totalidade, certamente uma grande parte, da povoação, já só poderá conhe cer se através dos exemplares ainda existentes da Fonte da Telha, que como dissemos, eram sem dúvida idênticos àqueles (em 1963, ver texto correspondente à nota 279, a descrição de Leite de Vasconcelos das coberturas de estorno das barracas de tabuado da Caparica).


Fonte da Telha, cabana (fig. 254).
Veiga de Oliveira, Galhano, Pereira, Construções primitivas em Portugal

Aqui, a estrutura das paredes consiste numa série de prumos espetados na areia – as muletas; os das paredes laterais são baixos, erguendo se acima do solo pouco mais de 1,50 m; e aos que suportam o pau de fileira (cume), a meio das empenas, chamam prumos de cabeceira.

Os barrotes da cobertura, lançados do frechal ao cume, ficam distantes uns dos outros cerca de 60 cm, e sobre eles pregam-se ou amarram se canas simples ou aos pares, a espaços de cerca de 15 cm. Nas paredes, a ripagem é semelhante, disposta mais espaçadamente.

O estorno do revestimento é cosido a ponto, e o cume leva uma fiada dis posta transversalmente, segura por duas canas, uma em cada vertente; sobre esta fiada dispõe se outra – a combreira – ao correr do cume, também amarrada para as varas. Interiormente as paredes são revestidas de tabuado, colocado horizontalmente (fig. 254).

Na Trafaria, temos indicação da existência – já antes de 1793 – de barracos semelhantes aos de outros pontos da nossa costa, e às "sanzalas ou palhotas" do Brasil e da África, "de palha brava e comprida" ou "folhas dos coqueiros, com paredes de fora de taipa" (Luís António de Oliveira Mendes, "Discurso académico ao Panorama", premiado na sessão pública de 12 de Maio de 1793, in "Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa", Tomo IV, Lisboa, 1812, agradecemos esta indicação ao investigador António Carreira).

Costumes portuguezes, um pescador na Trafaria.



(1) Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano, Benjamim Pereira, Construções primitivas em Portugal

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Tema:
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