terça-feira, 3 de dezembro de 2019

O anjo ancorado

O seu livro de estreia foi "Os Caminheiros e Outros contos", que o situou, de, imediato, na primeira linha dos nossos ,escritores mais vigorosos e originais.

Fonte da Telha, José Cardoso Pires, à direita, na companhia de Alves Redol (detalhe),1957.
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O vo­lume suscitou apaixonantes polémicas, que se reacenderam mais tarde, com a publicação dos seus outros dois li­vros, "Histórias de Amor" e «Anjo Ancorado". (1)

Em primeiro lugar o assunto de O Anjo Ancorado apresenta-se, mais do que em qualquer outro livro de José Cardoso Pires, trabalhado em cortes ostensivos e rigorosos de planos, conforme a sua propensão para os contrastes profundos.

José Cardoso Pires com a esposa e uma senhora inglesa,
June,  amiga do casal, em Fonte da Telha, local on de escreveu,
totalmente, o novo romance "Anjo Ancorado", 1959.
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Estrutura intencional: dum lado o carro de desporto de João (um objecto real, com determinada função); do outro a aldeola de pescadores «sem barcos para discutirem com as águas do oceano» (um povoado sem função concreta, que Guida, para acalmar o seu remorso burguês ainda por cima abstractiza quando o imagina criado por uma onda bíblica).

Dum lado a caça desportiva («um mero, um realíssimo mero» apanhado a dormir ou como que por dádiva de Júpiter); do outro, a caça ao perdigoto (uma ave que mal cabe na cova de um dente, «uma coisa que ainda mal saiu do ovo» pela qual o velho arrisca a vida na ponta das falésias) — e, indo até mais longe, num terceiro plano, outro tipo de caça: a perseguição, à distância, que os rapazitos do lugar costumam fazer ao velho sempre que este descobre um pássaro. (...)

Luta pela vida demonstrada pelo princípio dos contrastes. Uma luta tão expressamente primitiva que se nos impõe como uma metáfora do struggle for life da lei da selva. (2)

José Cardoso Pires, à direita, na companhia de Alves Redol.
Fonte da Telha, 1957.
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Em O Anjo Ancorado o ambiente ressalta do contraste entre o casal e o automóvel e a aldeia e seus habitantes. 

Nos últimos tudo é primitivo, a começar pela fome, enquanto nos primeiros — burgueses palavrosos de má consciência — a modernidade da técnica lhe aumenta o conforto. 

Suave descida aos infernos (atente-se na descrição da travessia da aldeia e nos comentários de Guida Sampaio) há tanta soberba e distância entre os dois passageiros e os aldeões como entre o carro e «os casinhotos de S. Romão».(...)

José Cardoso Pires e Alexandre O'Neil.
Costa da Caparica, 1958.
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A luta travada entre o homem e o mero e entre o velho e o perdigoto, assim como o inútil combate contra o tempo em que se amargura Ernestina, combate de que o astuto garoto será árbitro, são águas-fortes destinados a avivar o clima dos desocupados e a torná-lo responsável daquela pesada desigualdade. (3)


(1) O Seculo Ilustrado 1133 19 de setembro de 1959
(2) CITI: Mais profundamente... O Anjo Ancorado
(3) CITI: O Anjo Ancorado

Leitura adicional:
Publico Magazine 19 de junho de 1994

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Costa da Caparica de José Cardoso Pires
A janela de José Cardoso Pires

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