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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Clube Náutico Mare Nostrum

A propósito das festas recentemente levadas a efeito na Cova do Vapor destinadas a conseguir os fundos necessários para melhorar as suas instalações, parece-nos oportuno traçar em breves linhas o que foi e é o Clube Nàutico "Mare Nostrum", e o que poderá ser, uma vez que disponha de maiores facilidades e meios de expansão.

Cova do Vapor, Clube Náutico Mare Nostrum, Revista Stadium n° 107, 1944.
Hemeroteca Digital de Lisboa

O "Mare Nostrum" foi fundado por funcionários dos Hospitais Civis de Lisboa e. de início, exclusivamente destinado a es!es. Criou rápidamente simpatias para ele convergindo depois funcionários de outros Ministérios. Quando da oficialização dos seus estatutos, a 1 de Abril de 1936, deixou de se fazer qualquer restrição à admissão de sócios, além dos usuais.

A principal finalidade do clube foi a de dar incremento do desporto da vela. O problema do elevado custo das embarcações e os pesados encargos que incidem sobre os feus possuidores, foi encarado de frente pelo "Mare Nostrum", construindo nas suas instalações modelos de barcos de preços acessíveis a todas as bolsas e concedendo facilidades para a sua aquisição (...) (1)

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O lugar onde surgiram os aglomerados de barracas que tomaram a designação de Cova do Vapor e Lisboa Praia situa-se no extremo oeste do concelho de Almada, numa zona onde a dinâmica fluvial e marítima criou condições para a instalação de habitações de apoio aos banhistas, sobre as areias então emersas, encontrando aqui, no domínio público marítimo, um espaço que podiam ocupar mediante o pagamento de uma licença anual.

O cabedelo, dito golada do Tejo, a ponte cais e as denominadas Cova do Vapor e Lisboa-Praia, 1953.
 Flickr

Respondendo ao fluxo cada vez maior de banhistas às praias da margem sul, oriundos de Lisboa, a praia da Trafaria, onde se chegava facilmente por barco, encontra-se inserida num núcleo urbano consolidado sem possibilidades de crescimento; por outro lado, a Costa da Caparica encontra-se a mais de quatro quilómetros de distância da Trafaria, e a oferta de alojamento balnear é menos acessível.

Estão assim criadas as condições para o surgimento de uma zona balnear popular, acessível através da ligação fluvial com partida de Belém e onde é possível encontrar alojamento económico, a chamada “praia dos tesos”.

clique para aceder às imagens

Parece ter havido, durante as primeiras décadas, uma adequação da ocupação sazonal ao avanço e recuo do cordão dunar, através da relocalização das construções existentes. Esta situação inverteu-se com a progressiva consolidação do edificado, a partir da década de 70 (...) (2)


(1) Stadium n° 44, 1943
(2) Estudo de atuação e promoção dos recursos culturais, naturais e paisagísticos na Cova do Vapor

Artigos relacionados:
Os Cachopos
Mar da Calha
Trafaria e Cova do Vapor em 1946
Galeria da Cova do Vapor

Leitura relacionada:
Stadium n° 107, 1944

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

As primitivas barracas dos pescadores

Segundo uma tradição que parece consistente, teriam sido os ilhavenses, vindos do Norte na sua avançada pioneira de exploração de novas pescarias, quem primeiro se estabeleceu na Costa da Caparica, até então deserta; e, imediatamente após eles, os algarvios, vindos do Sul. Uns e outros, além da pesca e da organização que esta implica, trouxeram consigo os seus hábitos e costumes próprios, que implantaram nestas paragens.

A Praia do Sol, As primitivas barracas dos pescadores, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 111.
Delcampe

Passados os primeiros tempos, em que toda essa gente permanecia na Caparica apenas durante a época da safra, nos meses de Outubro, Novembro e Dezembro, vivendo em "singelas e pequenas choupanas, a que largavam fogo quando se retiravam para as suas terras", começa a dar-se a sua fixação: os ilhavenses ao Norte, sobre um medo elevado que existe perto do ponto onde agora se situam as barracas dos pescadores; os algarvios ao Sul, cada qual em seu bairro, fazendo vida separada.

Paisagem com pescadores e cabana de palha a arder, Joaquim Manuel Rocha (1727-1786).
Palácio do Correio Velho

Os algarvios, para se abrigarem, construíram sem dúvida barracas de estorno ou junco, idênticas às que usavam na sua terra de origem, e com os mesmos materiais que ali também se encontram. A habitação tradicional característica do pescador ilhavense, no Norte, é o palheiro de tabuado, apenas com a cobertura em estorno.

Costa da Caparica, cabanas de colmo e tabuado.
Estampa, Madrid, 13 de fevereiro 1932

As mais antigas notícias de que dispomos referentes à Costa da Caparica, dos séculos XVIII e XIX, mencionam, como veremos, exclusivamente um aglomerado de "barracos de palha" (à excepção de Rocha Peixoto, que no seu estudo sobre os "Palheiros do Litoral", datado de 1898, in «Portugália» I, Porto, 1899, pp. 79 96, fala na "imutável traça" do palheiro de tabuado, mas cuja excessiva generalização já denunciamos);

Costa da Caparica, Antigas casas de pescadores, Acção Bíblica (Aliança Bíblica), década de 1930.
Delcampe

se estes termos correspondem a uma indicação rigorosa e precisa, temos de supor que aqui, onde sem dúvida a madeira para o tabuado seria de difícil e dispendiosa obtenção, esses pio neiros ilhavenses adoptaram, não a forma da sua habitação tradicional, mas a dos seus co vizinhos algarvios, mais fácil de construir, que teriam imitado e usado até muito tarde.

Costa da Caparica, Casa de pescadore, Luiz Salvador Jr., 1947.
Luís Salvador Júnior

Mas, como veremos, é de admitir que se trate de uma mera generalização sem qualquer preocupação de exactidão, e que desde muito cedo houvesse casas de tabuado, e apenas com telhados de colmo, além de barracos inteiramente em estorno.

Parece terem sido os ilhavenses os que também primeiro ali passa ram a viver com carácter permanente; os algarvios regressavam ao Algarve quando acabava a safra. Ainda em 1770, esta praia era habitada todo o ano apenas por um número muito reduzido de pessoas, e só no ano seguinte ali se fixaram os primeiros « mestres da pesca», dois ilhavenses – Joaquim Pedro e José Rapaz – e dois algarvios – José Gonçalves Bexiga e Romualdo dos Santos –, "em barracas já com maiores comodidades", e com as suas companhas.

Desenho da Costa antiga, autor António Lopes Martins, Col. Particular.
Rui Manuel Mesquita Mendes (fb)


"Dado o exemplo, em anos a seguir, ali se fixaram também os mestres José dos Santos, Jerónimo Dias, João Lopes e Manuel Toucinho". O principal motivo da subsequente fixação também dos algarvios teria sido o receio de perderem a sua zona de pesca (Agro Ferreira, "A Praia da Costa (Caparica) – Terra de Pescadores", Lisboa, 1930, pp. 20, 22, 30 31).

A rivalidade entre ilhavenses e algarvios era grande, mas o elemento nortenho acusava uma certa supremacia, e os algarvios foram-se amoldando; as próprias moradias do bairro velho dos pescadores parecem se mais com as da Costa Nova do que com as do Algarve.

Com o decorrer do tempo, os dois grupos acabaram por se fundir; mas essa primitiva rivalidade perdura, ainda em nossos dias, nos partidos dos jogos dos garotos, que opõem sempre os do Norte contra os do Sul (em 1870 contavam se na Costa da Caparica 307 chefes de família, na sua maioria descendentes de gentes do Norte (António Correia, "A acção dos pescadores de ílhavo em Costa da Caparica", in "Arquivo do Distrito de Aveiro", n.° 130, Aveiro, 1967, pp. 113 118).


Um dos primeiros cuidados destes pioneiros nortenhos foi a construção da igreja, também de junco e tabuado; o cemitério local data de 1780, mas só em 1848 foi murado [de facto trata-se de outro cemitério, mais recente, v. O cruzeiro do lugar da Costa].

Nos princípios do século XIX, a Costa da Caparica era ainda apenas um aglomerado de barracas de palha, na expressão de Pinho Leal; a primeira casa de pedra e cal data de cerca de 1800; quando D. João VI visitou a Caparica em 1823 ou 1824, hospedou se nessa casa, que era a única ainda então existente no lugar, e que é hoje conhecida pelo nome de casa da Coroa, no largo da Coroa (porque o seu dono, em comemoração do acontecimento, mandou incrustar na sua frontaria as armas reais daquele monarca, sobre a esfera armilar (cf. Pinho Leal, vol. 2, pp. 97 98, Lisboa, 1874, " PAM", s. v. Caparica), ver também "A Praia da Costa" (Agro Ferreira), p. 30).

Costa da Caparica, Casa da Coroa, Cruz Louro, 1935.
Rui Manuel Mesquita Mendes (fb)

Em 1840, um grande fogo, chamado da "Quinquilheira", devorou 98 barracas; em 1864, outro, devorou cerca de 60; e em 1884, outro ainda, devorou também cerca de 60.

Por volta de 1900 a Costa da Caparica continuava a ser apenas um arraial de barracas; "a única casa mista de cantaria e madeira, era uma taberna" (Raquel Soeiro de Brito, "Palheiros de Mira», p. 23"). [esta generalização não corresponde à verdade, em 1859 já existiam diversas construções em alvenaria, v. Maria Rita do Adrião (1811-após 1903)].

Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, colégio do Menino Jesus e casas típicas de pescadores, década de 1900.
Arquivo Municipal de Lisboa

Mais uma vez, porém, não podemos saber se essas barracas seriam de estorno ou tabuado; mas cremos que, pelo menos nessa altura, já ali existiam casas deste último género, embora sem dúvida a par de bar racos de estorno, de que aliás chegaram até quase aos nossos dias alguns exemplares: além dos barracos pròpriamente ditos, há que acrescentar, como bem notou Fernando Castelo Branco, outros, construídos sobre barcos fora de uso, que se vêem em duas aguarelas de Roque Gameiro (v. O Alfama, 3 de 3), que supo mos poder datar desta mesma época, e a que já nos referimos; ora esses barracos são precisamente de tabuado (horizontal), e apenas com a cobertura em estorno (Fernando Castelo Branco, "O estudo das construções de materiais vegetais do Litoral Português", in "Mensário das Casas do Povo", Ano XXIII, n.° 265, Lisboa, 1968, ano XII, n.° 264, 1968, p. 9).

Acresce que os homens velhos da localidade tão longe quanto podem, lembram se da Caparica, como um aglomerado sobretudo de casas de tabuado, tal como ainda hoje.

Costa da Caparica, Praia do Sol.
Bairro dos Pescadores, Cruz Louro, 1934.
BestNet Leilões

Seja como for, a partir de então, a construção em tabuado toma certa mente maior incremento, enquanto os velhos barracos do tipo algarvio se vão extinguindo, acompanhando os rápidos progressos que se verificam nos locais que passam a ser frequentados por veraneantes (Raquel Soeiro de Brito, op. loc. cit.).

Segundo Agro Ferreira, até 1922 esta povoação era constituída apenas por «uma centena de barracas de colmo», a par de «umas dezenas de barracas de tijolo e meia dúzia de casas abarracadas de pedra e cal » (Agro Ferreira, "As praias da Costa – indevidamente chamada da Caparica". I Congresso National de Turismo, II Secção, Lisboa, 1936 – A "Praia do Sol"). Mas, pelas razões apontadas, é difícil saber se a expressão, além das coberturas, se refere também às paredes.

Costa da Caparica, interior de uma barraca de pescadores, Cruz Louro, 1930.
Delcampe

Com efeito, Raul Brandão, falando da Costa da Caparica em 1923, dá a entender que as casas aí eram, pelo menos então, de tabuado (Raul Brandão, "Os Pescadores", 1923, p. 248: "Quatro tábuas e um tecto de colmo negro"). E Leite de Vasconcelos, que a visita em 1931, nota que, pouco tempo antes, ainda ali se via grande número de casas de madeira cobertas de colmo, « que vão sendo substituídas por óptimas vivendas» (J. Leite de Vasconcelos, "Etnografia Portuguesa", II, p. 564). "O telhado faz se de barrotes de pinheiro, castanheiro (!), etc., pondo se lhe por cima canas grossas, e sobre as canas feixes de estorno, atado a elas com linhas de carreto. Chamam barracas a estas casas, que vão desaparecendo. Os compartimentos podem ter divisões ou simplesmente cortinas, ou de caniçadas de estorno."

Aspecto do bairro piscatório da Costa da Caparica, 1938.
Arquivo Nacional Torre do Tombo

Note se que este autor publica uma fotografia antiga da Costa da Caparica, em que se vêem alguns escassos barracos que parecem ser de tabuado, no meio de uma chusma de outros inteiramente de estorno, do tipo algarvio, dispersos no areal (J. Leite de Vasconcelos, "Etnografia Portuguesa", III, p. 487 488, e fig. 126, p. 489).

Hoje, na Costa da Caparica, nenhum exemplar subsiste de tais barracas, e domina inteiramente a casa de tabuado, não só para banhistas, numa feição cuidada, como também, no velho bairro dos pescadores, estas térreas, de pau a pique, e tabuado horizontal, virando para a rua a empena, onde se situa a porta; a cobertura em telha de Marselha é a única diferença sensível entre elas e as barracas descritas por Raul Brandão (Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, "Palheiros", p. 95).
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Costa da Caparica, Bairro dos Pescadores.
Arquivo Histórico da Marinha

Embora seja portanto plausível, não se pode contudo, como dissemos, afirmar que essas casas representem a forma primordial das habitações dos ilhavenses que se instalaram na Caparica, que reproduziriam naturalmente o sistema construtivo usado na sua terra de origem; na verdade, se os "barracos de palha" a que alude Pinho Leal, eram de junco, do tipo algarvio, elas serão apenas um estádio habitacional mais adiantado, que se teria então iniciado, após que as condições de vida dos seus moradores melhora ram, e os transportes em geral se tornaram mais fáceis.

Em todo o caso, essa nova forma, aqui na Caparica, teria vindo curiosamente ao encontro da mais velha tradição construtiva da região de origem dos seus primeiros povoadores (note-se porém que, aqui, eles não usaram a construção palafítica característica da sua terra de origem e dos outros povoados por eles criados, e que se justificaria pelas mesmas razões, cf. Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, op. cit. p. 96).
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Costa da Caparica, Bairro dos Pescadores.
Arquivo Histórico da Marinha

Cerca de 9 km a Sul da Costa da Caparica encontra se a Fonte da Telha, "lugarejo de pescadores à beira mar", também "quase totalmente formado por estas primitivas barracas", que "servem de arrecadação, de abrigo de animais e ainda de habitação para o Homem" (Orlando Ribeiro, ap. Raquel Soeiro de Brito, op. cit. p. 23).

A Fonte da Telha surgiu, como povoação, por volta de 1900, e há poucos anos a esta data ainda viviam alguns dos homens que lhe deram começo. Pescadores da Caparica, esses homens deitavam por vezes ali as suas redes de arrasto para terra, e pernoitavam em covas que abriam na duna e sumàriamente abrigavam com estorno, que vergavam amarrando lhe as pontas em cima, de modo a formar como que uma pequena tenda.

A Fonte da Telha (Costa da Caparica, Praia do Sol), Cruz Louro, 1937.
Cruz Louro

Tomada a resolução de aí se instalarem com carácter permanente, eles ergueram barracas, que certamente reproduziram as da Caparica, em que até esse momento tinham vivido.

Em 1934, a povoação, a despeito da sua proximidade da Caparica, que então já evoluirá muito consideràvelmente, mantinha o seu carácter primitivo. Nos últimos anos, graças também à sua frequentação sempre crescente como praia de banhos, o aspecto da Fonte da Telha tem se modificado, e designadamente as barracas de estorno vão sendo ràpidamente substituídas por casas de tabuado ou de materiais duros, que se alinham em arruamentos regulares; mas delas subsistem ainda alguns exemplares.

A estrutura e pormenores de construção dos primitivos barracos da Costa da Caparica, que até aos princípios deste século constituíram, se não a totalidade, certamente uma grande parte, da povoação, já só poderá conhe cer se através dos exemplares ainda existentes da Fonte da Telha, que como dissemos, eram sem dúvida idênticos àqueles (em 1963, ver texto correspondente à nota 279, a descrição de Leite de Vasconcelos das coberturas de estorno das barracas de tabuado da Caparica).


Fonte da Telha, cabana (fig. 254).
Veiga de Oliveira, Galhano, Pereira, Construções primitivas em Portugal

Aqui, a estrutura das paredes consiste numa série de prumos espetados na areia – as muletas; os das paredes laterais são baixos, erguendo se acima do solo pouco mais de 1,50 m; e aos que suportam o pau de fileira (cume), a meio das empenas, chamam prumos de cabeceira.

Os barrotes da cobertura, lançados do frechal ao cume, ficam distantes uns dos outros cerca de 60 cm, e sobre eles pregam-se ou amarram se canas simples ou aos pares, a espaços de cerca de 15 cm. Nas paredes, a ripagem é semelhante, disposta mais espaçadamente.

O estorno do revestimento é cosido a ponto, e o cume leva uma fiada dis posta transversalmente, segura por duas canas, uma em cada vertente; sobre esta fiada dispõe se outra – a combreira – ao correr do cume, também amarrada para as varas. Interiormente as paredes são revestidas de tabuado, colocado horizontalmente (fig. 254).

Na Trafaria, temos indicação da existência – já antes de 1793 – de barracos semelhantes aos de outros pontos da nossa costa, e às "sanzalas ou palhotas" do Brasil e da África, "de palha brava e comprida" ou "folhas dos coqueiros, com paredes de fora de taipa" (Luís António de Oliveira Mendes, "Discurso académico ao Panorama", premiado na sessão pública de 12 de Maio de 1793, in "Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa", Tomo IV, Lisboa, 1812, agradecemos esta indicação ao investigador António Carreira).

Costumes portuguezes, um pescador na Trafaria.



(1) Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano, Benjamim Pereira, Construções primitivas em Portugal

Artigos relacionados:
Maria Ritta do Adrião: alojamento local (desde 1859)
Maria Rita do Adrião (1811-após 1903)
Casario
A Costa no século XIX
Não rebenta a vaga
etc.

Tema:
Urbanismo

Polémica sobre outras construções (palheiros, apoios de pesca, restaurantes de praia, residências de veraneio etc.):
Os palheiros da Costa, enquanto evidência da cultura dos pescadores da costa ocidental
Palheiros da Costa da Caparica: em defesa da cultura popular
Estudo de caracterização e avaliação do eventual valor cultural e patrimonial (histórico e arquitectónico) das construções de carácter precário, localizadas na área de intervenção do PP5...

sábado, 20 de agosto de 2022

Ílhava, bateira dos "ílhos", o elo perdido

Em 1770 as ílhavos já tinham construído uma capela na Costa da Caparica, edificada como habitualmente, em tábuas e colmo. Sendo referida a chegada dos mestres Joaquim Pedro e José Rapaz, os demiurgos do povoamento daquela praia. Facto reconhecido pela Câmara de Almada que viria a atribuir a duas mas da localidade os seus nomes. Em 1870 haveria já 307 familias ali instaladas, a grande maioria idas da laguna.

Barco no Tejo com mau tempo, Emeric Essex Vidal (1791-1861), 1833.
artnet

No processo movido pela Inquisição, a Filinto Elísio, iniciado em 1778, pode ler-se ser este notável poeta" filho de um casal de pescadores", ido de fihavo. Daqui se pode concluir, sem margens para qualquer dúvida, que em meados do século XVIII já essas gentes se tinham fixado por aquelas bandas.

Esta referência documental, se outras não houvesse, desde logo nos elucida sobre a presença daquelas gentes no Tejo, e do seu inseparável instrumento de trabalho — a ílhava — num período longínquo da história, coincidente com o período de penúria lagunar em que se verificou, praticamente, o desaparecimento de toda a vida (piscícola e salífera) em que até ali aquela era pródiga.

Pescadores de Ilhavo, Archivo Pittoresco n° 4 (Tomo III), 1860.
(desenho de Tomás da Annunciação, gravura de João Pedrozo)
Hemeroteca Digital

Mas certo é que existem muitas outras referências. Por exemplo, Baldaque da Silva no seu livro Estado actual das pescas em Portugal, Imprensa nacional, escrito em 1891, salientava que "no século passado" — portanto séc. XVIII — a emigração de gentes da laguna de Aveiro para Lisboa, "era já consistente". (1)

Na costa de S. Jacinto, datam de 1755, as referências às primeiras companhas ali fixaram. Tudo leva a supor que teriam utilizado, já então, um outro tipo de embarcação, entretanto criado e aqui desenvolvido — o meia-lua —, embarcação com uma forma singular que abordámos no citado livro Embarcações que tiveram berço na laguna, Capítulo 6. p. 177.

Perante estas indiciações, e não havendo prova documental que o prove em absoluto, somos levados a concluir que a utilização da ílhava com o chinchorro — uma arte menor — teria sido certamente anterior à data atrás referida", em que se teria consumado o aparecimento do, por muitos designado — em nosso entender não rigorosamente —, barco da xávega.

Depressa teriam os pescadores da borda concluído que o bateirão de mar não respondia eficazmente às exigências de uma pesca intensiva.

Este tipo de embarcação só se poderia fazer ao mar em condições muito especiais, quando não se verificasse quebra (pancada) da vaga, significativa, de modo a permitir lançar as redes nas águas, entre a rebentação e o mar".

Estas eram redes varredouras" que seriam de reduzida dimensão para pesca, à borda, num tempo em que só o trabalho braçal era utilizado para sua recolha. Antecipando em muito, o momento em que se passou a usar a tracção animal —o que viria a acontecer na Companha de Manuel Firmino, na Costa de S. Jacinto, em 1887".

Mas se ali, na borda, os atributos das bateiras não eram os ideais, cedo se descortinou que com uma derivação inspirada nas suas linhas, embora reduzindo-lhe as suas dimensões, o Douro oferecia, sazonalmente, as safras do sável e da lampreia.

E aí, as bateiras lagunares tinham as características certas para cabal desempenho do pretendido. Era apenas coisa de mudar para lá as mesmas, levando tralhas e falico, suficientes, para a safra. Deslocaram-nas desde logo para a Afurada' onde se fixavam durante as épocas de pesca, aí constituindo colónias de dimensão assinalável, profusamente referenciadas ao longo dos séculos XVIII e XIX.

Bateira da Afurada.
Arquivo Municipal do Porto

Teria sido dessa sua fixação na referida zona, e da sua utilização na captura do sável, que adviria a confusão de, muitas vezes, a dava ter sido identificada com a designação de saveiro', hábito que mais tarde se estendeu a outras embarcações, como foi o caso do saveiro (meia-lua), da Capariea, que pescava na borda do mar (...) (2)

Portuguese Shipping in the Mouth of the Tagus, S. Clegg, 1840.
BBC Your Paintings

(...) E saltando para a outra banda, fixaram-se na Trafaria. Em todos estes locais edificaram agregados piscatórios (colónias) de apreciável dimensão, muito característicos nos usos costumes, trancados à aculturação com o exterior.

Trafaria, ilustração Roque Gameiro, 1899.
Hemeroteca Digital

Esta singular preservação de usos, trajes, falas e costumes, foi característica e especificidade mantidas pelo longo período de quase dois séculos, em que varinos. daqui saídos e seus descendentes'', permaneceram por aquelas bandas. (3)


(1) Senos da Fonseca, "ílhava" a bateira lagunar com que os "ilhos" escreveram "história"
(1) Idem
(1) Idem, ibidem

Artigos relacionados:
Anatomia comparada
Bateira do Mar, o elo perdido
Ílhavos
etc.

Mais informação:
As bateiras, genealogia, tipologias, distribuição
Bateira (pesquisa) em Ana Maria Lopes, Marintimidades

Leitura relacionada:
Ana Maria Lopes, Diário de bordo da bateira ílhava : a construção, Museu Marítimo de Ílhavo, 2015
Senos da Fonseca, Embarcações que tiveram berço na laguna
Senos da Fonseca, Embarcaçoes lagunares bateiras e artes
Senos da Fonseca, Factos & História 
Senos da Fonseca, A arte da xávega
Antonio Arthur Baldaque da Silva, Estado actual das pescas em Portugal, Imprensa nacional, 1892

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Chinquilho

Foi este jogo inventado pelos Cabazeiros da Costa, e Trafarianos, para se entreterem em quanto esperão que se recolhão os pescadores, para lhe atravessarem o peixe em prejuizo dos habitantes de Lisboa, entertenimento este, que faz dar muito gasto aos vinhos da Outra-Banda; cujos armazens levão sempre o ganho certo, e teve a sua criação este jogo, no anno em que se pescou a primeira pescada de rasca (arrasto). (1) 

Costa da Caparica, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, cliché João Martins, década de 1930.
Fundação Portimagem



(1) José Daniel Rodrigues da Costa, Comboy de mentiras, vindo do reino petista com a fragata verdade encoberta por capitania

Artigos relacionados:
Sape na barba
Na Trafaria, cena da borda-de-água
Caldeirada à Pescador

Leitura relacionada:
Humor impresso: cultura e política em "O Espreitador do Mundo Novo"


Outros trabalhos do autor:
Internet Archive

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

As praias Trafaria e Caparica em 1900 por Pires Marinho


  1 — Os três directores do Club dos Banhistas da Trataria.
  2 — O banheiro Manuel Martins que salvou ha dias um banhista.
  3 — Antonio da Rocha, por alcunha o "Hersent" da Trataria.
  4 — Um grupo do creanças na praia.
  5 — A casa do monge na Costa do Caparica.
  6 — Na matta da Trataria.
  7 — Ao pé das barracas, na praia da Trafaria.
  8 — Na estrada para a Costa.
  9 — Uma cubata na Costa de Caparica.
10 — As novas casas de Caparica.
11 — Os pescadores a arranjarem a rede.
12 — Um pescador apanhado por uma onda.
13 — Os pescadores puchando para terra um saveiro. (1)


(1) Brasil-Portugal n.° 42, 16 de Outubro de 1900

Pires Marinho:
Occidente, n.° 1253, 20 de outubro de 1913

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Sou pobre Caparicano... (fado do Virgílio)

Apesar de ser pequeno
E viver junto do mar,
O "fadinho" sei cantar
No estilo mais ameno;
Para mim não há "empeno"

Costa da Caparica, turistas, 1938.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

A cantá-lo não me engano,
Porque sou um lusitano,
E, por êle, apaixonado,
Por isso, a cantar o fado,
"Sou o rival do Menano".

Filhos de pescadores da Costa da Caparica, 1933.
Imagem: Hemeroteca Digital

E toda a gente se encanta
Ao ouvir a minha voz,
Por aí corre veloz
A fama desta garganta;
A mim já nada me espanta

Grupo de veraneantes na Costa da Caparica, 1933.
Imagem: Delcampe

Que, em breve, esteja no rol
Dos grandes cantores de escol
Que assombram com sua Arte,
Pois eu, a modéstia aparte,
"Canto como um rouxinol"...

Costa da Caparica, turistas posam à proa de um "Meia Lua".
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Embora eu ande descalço
E pobremento vestido,
Por todos sou bem-querido
Pois não tenho olhar de falso;
Da Honra sigo no encalço,

Costa da Caparica, Wolfgang Sievers, 1935.
Imagem: eBay

Por ser um dever humano,
O meu trabalho é insano
Para não pedir esmola,
E dizê-lo me consola:
"Sou pobre Caparicano".

O repórter de O Século, ouvindo alguns pescadores da Costa da Caparica sobre a grave crise que atravessam, 1938.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Aos domingos venho à praia
Vêr mulheres quási nuas
Que, em Lisboa, pelas ruas,
Usam mui comprida a saia,
E quando no céu espraia

Veraneantes na Costa da Caparica, 1938.
Imagem: Dias que Voam

Seus lindos raios, o sol,
E enquanto dura o "briol"
E fazem bem às barrigas,
Eu canto as minhas cantigas
"E alegro a "Praia do Sol". (1)


(1) Lima Pereira, Ilustração n.° 14, 1933

Artigo relacionado:
O fado do Virgílio



segunda-feira, 26 de junho de 2017

Bulhão Pato, uma caçada no Juncal, por Zacharias d'Aça (VI)

N'aquelle dia, ao romper da manhã — uma manhã de novembro, fresca e luminosa — abicava ao caes do Aterro, fronteiro á Rocha, toda a esquadrilha do patrão Lourenço — três bellos catraios, governados por elle, pelo seu filho mais velho, João — um rapagão desembaraçado, e por outro arraes, alto e membrudo como um athleta, e que hoje é mestre dum dos vapores de Cacilhas.

Rocha do conde d'Óbidos, Alfredo Keil, 1873.
Imagem: Lisboa Mítica no Facebook

Moços e velhos, eram todos marítimos ás direitas, e naquelles barquinhos iam elles á pesca, e por lá andavam, sem medo e á ventura, fora da barra! Quantas vezes, para não faltarem á sua palavra, elles nos vinham buscar alli, tendo perdido a noite no mar! E isto percebiamol-o nós pelo arranjo do barco, denunciante do serviço da noite. Da boca não lhes saiu nunca uma palavra, que podesse ser tomada como um encarecimento interessado, um appello á nossa generosidade!

João Lourenço já vinha com elles de Belém, trazendo as suas melliores espadas — o Thiers, a Norma, o Tibau, e outros. Acompanhavamn-o o Eusébio, e o Joaquim Tavares, da Junqueira, como elle creado da Casa Real, boa espingarda e sizudo companheiro. Um excellente rapaz. 

Iam senhoras também comnosco, mas, se eu escrevesse em estylo clássico, não poderia dizer que nós formávamos o cortejo de Diana, a caçadora. Nem a sr.ª D. Maria da Piedade, a irmã do illustre poeta, nem as outras senhoras, suas amigas, tinham a minima pretenção a "sports-women". A maré era boa, e aproámos ao Torrão, evitando o fadigoso transito pelo areal.

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*   *

Bem auspiciado o dia. Encontrámos logo as codornizes á beira mar, no principio do matto. Cruzavam-se os rastros, como de costume, mas os cães, práticos do terreno e conhecedores da caça, logo destrinçaram a meada. D'ahi a pouco estavam todos parados á mostra do que ia na frente.

Paul da Outra banda, Pântano, Vista do Alfeite, Charco de Corroios, José Malhoa, 1885.
Imagem: Blog do Noblat

Formoso e singular espectáculo! Impressiona a todos este repentino estacar dos perdigueiros. A passo, a trote, a galope, que vam, ao sentirem a caça próxima, ficam de improviso immoveis, na posição em que ella os surprehendeu! Apenas um quasi imperceptível tremor denuncia nelles a vida.

Os nossos — eram sete ou oito — pareciam fundidos! Todos firmes em diversas attitudes, conforme o seu estylo de caçar. Norma, na frente, de cabeça alta e dominadora, apontava a caça; ao lado della o Thiers, marcando de mais longe, inclinava-se para o lado d'onde lhe vinham os effluvios; o Tibau, um cão preto como azeviche, arrastara-se como um reptil até ao centro do grupo, estacando súbito ! Os outros, mais affastados, vinham correndo e parando por sympathia, por influencia, e iam assim compondo e completando o maravilhoso quadro! Inteiriçados, alguns com o pello arripiado, não moviam um musculo!

Como eu registro aqui impressões antigas, direi que na minha vida de caçador nunca mais tornei a ver coisa assim. Um grupo como este jamais artista algum o compoz.

Diversos os animaes na pelagem, no desenho, na estatura, alguns d'elles — o Thiers, a Norma, a Jóia — eram verdadeiras estampas: a mesma variedade tinham nas attitudes elegantes. As senhoras, surprehendidas e encantadas pela belleza da scena, approximaram-se, e todos nós formámos um arco, tendo no centro os cães parados.

Na ponta esquerda estava Bulhão Pato. Á sua voz a Norma deu a pancada.

Em vão — a codorniz tinha-se furtado.

Então os perdigueiros romperam a mostra, e partiram de novo em todas as direcções, em busca da caça, que lhes fugira. Não tardaram em achal-a, e eil-os outra vez estacados. A Norma mantinha a dianteira — a codorniz tinha-a ella apontada. E como já não havia defeza, porque estava no limite do matto, ella pôz-se nas azas. 

O vôo, estridulo no arrancar, denunciava um macho. Naquella estação, naquelles logares as codornizes encontram abundante e succulento pasto nas myríadas de pequeninos caracoes, que cobrem litteralmente as joinas. Alli se preparam para a grande travessia da sua emigração para a Africa. 

Aquella, como não havia vento, voava baixo, mas distanciava-se rapidamente. Ouviu-se um tiro. A codorniz caiu.

A pontaria certeira foi de Bulhão Pato — pensará o leitor, que vae seguindo, e ás vezes anticipando, os factos... Não foi, e devia ser. Era o mais velho, o mais graduado — era o cabeça, o chefe. 

Mas entre nós havia um que, por ser o mais novo, o menos experimentado, se esqueceu de tudo isso, e, enthusiasmado com os lances daquelle jogo, não se conteve... A codorniz caiu redonda, mas eu — que fui o tal atirador — também caí logo em mim, e vi que, apesar da pontaria certeira, havia errado!

Aqui fica o meu — Peccavi...

Pato, confiado em si, tinha-a deixado alargar. Não viu d'onde partira o tiro, e perguntou de quem fora.

— Fui eu. 
— Está bem. Bom tiro. Deixa-a ver — disse elle. 
— Está gorda. Mas aqui ha mais. Vamos devagar.

Effectivamente as paradas rcpetiram-se, e d'ahi a pouco dez codornizes tinham alli encontrado "sua fim". Escusado é dizer que foram quasi todas mortas por elle, que era de todos nós a melhor espingarda.

Coitadas, como o seu destino era atravessar um estreito, passaram por um — mas não foi o de Gibraltar.

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O sol ia apertando. As senhoras deixaram-nos, e tomaram, com as creadas, o caminho da Costa.

Grupo do Leão, 1881, O Brejo, José Malhoa.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Á nossa esquerda tinhamos, em frente, a vinha do Miranda, bom abrigo para a caça, e, á direita, descobria-se a praia fronteira ao mar; mas no limite d'ella, á beira do matto, appareciam-nos, aqui e alli, alguns lagos, que as chuvas do outono tinham formado.

A agua era tão limpida, que se lhe via o fundo; apenas algumas moitas de juncos lhe sombreavam a superfície, que refíectia as raras nuvemzinhas brancas, que pairavam quietas no ar. Aquelles lagos eram tentadores.

Se elles tivessem narcejas...

— Vou-me aos lagos — disse eu ao meu amigo. Está-me sorrindo a idéa de lá encontrar certas senhoras... 
— Pois vae. Eu não vou, não me quero agora molhar. Tu não te importas com isso. Talvez lá estejam algumas. Eu cá vou andando para a tapadinha. 

Eu fui, e ellas lá estavam. Não eram aos centos, ainda assim encontrei as bastantes para errar uma dúzia de tiros. Mas não errei todas. Não sei o que as narcejas teem commigo; o que é certo é que eu — que em theoria, a frio, prefiro as perdizes e as gallinholas — quando defronto com ellas, nos terrenos alagadiços, que são os seus predilectos, perco a cabeça, e não ha lamas, nem aguas, nem lodos de marnotas, que me impeçam de as fuzilar! Será a difficuldade do tiro? Talvez. E é provável que seja, porque é a caça que mais se erra.

Entrar naquelles lagos era o mesmo que entrar em um tanque. A agua estava tão fria, e em alguns era tão alta, que tive de sair dum rapidamente: sentia já um começo de tontura. O que não me impediu de me metter logo em outro, e de andar assim mais duma hora, a entrar e sair da agua, debaixo d'um sol ardente, e num sitio tão sezonatico. Mas parece que eu andava então á guarda de Deus! Nem sezões, nem nada!

As narcejas tinham já desapparecido deante de mim nos lagos, e a fuzilaria continuava a ouvir-se para as bandas da tapadinha. Encaminhei-me para lá.

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Boa caçada. Pato estava radiante — as codornizes saltavam-lhe das joinas aos pares! E elle já se firmava com ellas, por causa da brisa que se levantara, e tambem por causa dos cartuchos. Contava-as a ellas, e já os contava a elles, que iam rareando no cinto.

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Bulhão Pato, capa de Raphael Bordallo Pinheiro
Paysagens, Lisboa, Rolland E Semiond, 1871


— Então a tapadinha rende — disse-lhe eu. Merece o nome que lhe pozeste. 
— É como vés. Tudo isto está cheio dellas. Mas tu também achaste narcejas. 
— Trago aqui cinco, mas ficaram-me lá muitas. Estão um pouco ásperas. 
— Olha os cães, Zacharias. 

Palavras não eram ditas e três codornizes a saltarem. Estavam espertas, não esperavam. Bastava que os cães as apontassem.

Três tiros. Pato dobrou a duas, e eu matei a terceira.

— Dá cá, Thiers. Olha, estão magnificas. E, dizendo isto, passava-me á mão um esplendido macho, negro e de peito redondo. Todas assim — accrescentou elle. É a sazão da partida.

João Lourenço approximara-se com os seus companheiros. Estendemo-nos em ordem, e a fuzilaria continuou nutrida. Parecia o tiroteio duma linha de atiradores!

Cruzavam-se, por vezes, os tiros, porque a caça, espalhada pelo Juncal, ia-se levantando deante de nós em toda a extensão da linha. Os nossos improvisados "moços de monte" — rapazitos do sitio, que sempre se nos aggregavam — ficavam-se atraz, a descançar nas raras sombras dos médãos, e Pato já ia repartindo comigo os despojos, que lhe começavam a pesar na rede [sacca]. A brisa da manhã cessara, mas as nuvemzinhas brancas quebravam, de quando em quando, o ardor do sol, que nos principiava a morder. Só as meigas nos perseguiam, obrigando-nos a fazer dos lenços guarda-nucas.

[Á altura de meio Juncal fizemos frente á retaguarda em direcção aos lagos. Era a vez das narcejas para todos.]

— Aqui ha rastro d'uma lebre, sr. Pato — disse o João Lourenço, que ia atravessando um claro da areia. E lá vae ella! — gritou elle. Vae ao longo do médão! Ahi á sua direita!

Com elfeito ella ia-se furtando por entre as joinas e os juncos, aos saltos. Estava perto de nós.

— Deixa-a endireitar a carreira — disse Pato.

Era a primeira, que eu alli via. — Agora. E atirou-lhe. A lebre, ao tiro, deu um salto, e atravessou, cortando pelo Juncal. Ia ferida, e os cães, que a tinham visto, seguiram-na, e não tardou que a agarrassem. Estava crivada de chumbo.

— Agora vae um cigarro. E vamos ás narcejas, emquanto o sol não aperta mais. Eu não entro na agua, apesar do nome, mas vocês não fazem ceremonias, e sacodem-m'as para fora.

Quando chegámos já lá estavam outra vez as regadias, como lhes chamam na província, e principiaram a espirrar d'entre os juncositos, que bordavam os lagos.

O tiroteio redobrou então de intensidade, porque ellas — ha pouco batidas por mim — andavam levan- tadas, e saltavam umas atraz das outras, á roda de nós, cruzando-se no ar em todas as direcções.

A esta espécie são dois os momentos em que se lhe pode atirar — quando levantam, e então é um tiro de chofre, ou quando, depois de fazerem os seus zigzagues, ellas acertam o vôo. O mais seguro é chofral-as — o que, em todo o caso, é um tiro de acaso — porque não ha tempo para apontar.

Depois é quasi sempre tarde; ao endireitar vam saindo do alcance. Quem não é pratico, enthusiasma-se, dá muitos tiros, e não mata nenhuma. Foi o que me succedeu nas primeiras vezes, O commum dos caçadores não gosta dellas por isso, mas os outros capricham em emendar a mão, e voltam. E ha tal que as prefere a tudo.

O illustre poeta já então era óptimo atirador. Eu admirava-o, quando o via dobrar os tiros, e também ingenuamente me admirava, quando via cair alguma daquellas bicudas, que eu mal entrevira, ao desfechar.

Para arredondar a conta das narcejas appareceram dois marrequinhos. [Foi] Feliz a nossa visita á região dos lagos.

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Curtas as tardes do inverno. O sol descia rapidamente sobre o horisonte, e as nossas sombras principiavam a alongar-se no chão. Era tempo de nos approximarmos da Costa.

Entrance of the river Tagus with the harbour of Lisbon (detalhe), 1871.
Imagem: British Library

Íamos subindo pelo Juncal, quando a minha cadella — a Jóia — que acabava de me apontar com grande frieza uma codorniz, deu uma fiada rápida, e logo outra, formando um angulo recto com a primeira, e ficou-se como uma rocha... Uma narceja perdida alli, e que apenas saltou caiu. [E logo em seguida uma codorniz.]

Finíssima perdigueira — caçada pelo Manuel Candido, da Charneca, ás narcejas, ás lebres, ás gallinholas e ás perdizes — a primeira vez que a levei ao Juncal, vendo os outros cães accesos no rastro das codornizes, não fazia caso nenhum dellas; e parava a olhar para mim, como admirada, exprobrando-me talvez o eu tel-a arrancado aos seus frondosos pinhaes da Amora e de Corroios, para levantar passarinhos naquelle areal! Depois habituou-se, não deixava escapar uma [— mas era só por cumprir].

Até chegarmos ao fim do Juncal, ás Cabanas, a caça não cessou de saltar. Ahi tivemos uma scena — armada de improviso, que se apresentou desde logo com torvo aspecto.

Ao longo do caminho sobranceiro, que atravessa, no alto do Juncal, para as cabanas dos pescadores, havia uma nesga de chão, que o trabalho pertinaz do homem tentara transformar em horta. Em cima, á beira do tal caminho, um poço explicava, e, até certo ponto, justificava aquella pretençao. Couves de talo rijo, esgrouviadas, e meio seccas, era apenas o que alli se via! Á esquerda, em terreno mais alto, duas choças de colmo dominavam esta horticultura, pobre, triste, e agreste, como toda a região daquella costa. O couval não tinha sebes, que o defendessem, e por ahi costumávamos nós passar, á ida e á volta. A plantação era rara, e podiamos, transitar sem prejuizo. 

A invasão das codornizes chegara, naquelle dia, até lá, e quando Bulhão Pato, indo na nossa frente, a certa distancia, entrou na horta, os cães deram logo signal de algumas. Seguia-os elle, attento, quando á porta duma das choças assomou um homem, que lhe falou grosseiramente, começando por um: — Ponha-se lá fora! que soou muito mal aos ouvidos do poeta.

O dialogo travou-se assim rudemente, mas nós, eu e o Joaquim, que estávamos um pouco longe, não percebemos nem estas palavras, nem as que se lhe seguiram, e só conhecemos a gravidade da situação, quando vimos Bulhão Pato, com gestos de ameaça, pôr a espingarda no chão, e avançar para o rústico. Apressámos então o passo, tanto mais que o homem, recuando, entrara bruscamente em casa. 

As primeiras palavras do dialogo não as ouvi, mas ouvi as ultimas — as do poeta . . . Não eram académicas, não, não as posso aqui repetir; mas, num crescendo formidável de violência e de injuria, foram subindo até terminarem no mais agudo dos insultos — agudo no sentido e na palavra — repetida três vezes, a fechar a tremenda apostrophe ! A mais eloquente de certo, que jamais trovejara naquelles campos.

O homem podia voltar, mas não voltou. Temeu-se elle do caçador, cuja voz máscula tinha as impetuo- sas e dominadoras vibrações da cólera, e que avançava para elle com os punhos cerrados ou estaria lá alguém, que o segurou?

Quando nós, seguindo o mesmo trilho de Bulhão Pato, atravessámos a horta e depois, trepando pela rampa, passámos em frente da palhota, olhámos para lá. No escuro da porta não havia ninguém.

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Voltara o silencio áquelles logares. A nuvem negra, que de repente surgiu, a turvar-nos a limpida atmosphtra daquelle formoso dia, desapparecera, varrida pela voz do poeta. 

Costa da Caparica, Manhã na praia da Caparica, Adriano Sousa Lopes (1879 — 1944).
Imagem: MNAC (museu do Chiado)

Dalli a pouco estávamos todos reunidos na casa de jantar da sr.ª Maria do Adrião. Ao lado, na sala, de paredes estucadas, e tecto com relevos — uma surpresa para nós aquella restauração — a menina Cazimira extrahia das gavetas das suas bellas commodas de polimento, e mostrava ingenuamente ás senhoras, as riquezas e os primores da sua guarda-roupa — chales, vestidos de cores garridas, saias com rendas finas, camisas bordadas, lenços de seda de ramagens, que tão bem ficam, e tanto realce dão áquelles rostos campesinos, já illuminados de tons quentes pelo ar do campo e pelo sol.

Uma figura gothica — esta menina Cazimira. Alta e delgada de corpo, nem pallida, nem corada, a voz dum timbre algo dorido, avara de palavras, os olhos sempre postos no chão, e um não sei que de triste e enigmático, davam-me a impressão de quem não anda satisfeito cá na terra...

Estas figuras, quando teem uma plástica individual, e caracteristica, por apagada que seja nellas a expressão da vida, são, como as estatuas, suggestivas. Imprimem-se indeléveis na memoria, e entram na galeria do nosso mundo interior. É com estas imagens, cujos contornos o tempo vae esbatendo, que os artistas e os poetas compõem os seus quadros, os seus romances, e os seus poemas. 

Aquella donzella, serena e silenciosa, recortava-se alli, aos meus olhos — destacando do discorde scenario, e parecia ter saído d'algum velho painel Flamengo, de Van Eyck ou de Memling — interior de cathedral gothica, ou comitiva castellã, em caçada fidalga, com pagens, lebreus e falcões.


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Ás Ave-Marias vínhamos nós nos barcos, já de volta, aconchegados nas mantas, fumando e conversando. Nos paneiros os cães, enroscados, dormiam.

Torre de Belém, Frank Dillon, 1850.
Imagem: BBC Your Paintings

Ouvíam-se, rio acima, as sinetas de bordo, e, para o norte, o tiro de peça da torre de Belém annunciava, com o seu ruidoso pregão, o pôr do sol — um sol poente de outono, illuminando e doirando os aéreos castellos das nuvens, tão cambiantes, diaphanos, e fugitivos, como os da minha phantasia, naquelles áureos tempos da mocidade!...

24 de maio de 1898 (1)


(1) Zacharias d'Aça, O Tiro Civil n.° 139, quarta-feira 1 de junho de 1898


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Tema: Bulhão Pato

Informação relacionada:
Bulhão Pato, Zacharias d'Aça, O Occidente n.° 717, 30 de novembro de 1898
O Occidente n.° 434, 11 de janeiro de 1891
Bulhão Pato, Paquita, Typographia Franco-Portugueza, 1866Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896
Francisco Zacharias d'Aça, Caçadas portuguezas: paizagens, figuras do campo,
Lisboa, Secção Editorial da Companhia Nacional Editora, 1898