sábado, 20 de agosto de 2022

Ílhava, bateira dos "ílhos", o elo perdido

Em 1770 as ílhavos já tinham construído uma capela na Costa da Caparica, edificada como habitualmente, em tábuas e colmo. Sendo referida a chegada dos mestres Joaquim Pedro e José Rapaz, os demiurgos do povoamento daquela praia. Facto reconhecido pela Câmara de Almada que viria a atribuir a duas mas da localidade os seus nomes. Em 1870 haveria já 307 familias ali instaladas, a grande maioria idas da laguna.

Barco no Tejo com mau tempo, Emeric Essex Vidal (1791-1861), 1833.
artnet

No processo movido pela Inquisição, a Filinto Elísio, iniciado em 1778, pode ler-se ser este notável poeta" filho de um casal de pescadores", ido de fihavo. Daqui se pode concluir, sem margens para qualquer dúvida, que em meados do século XVIII já essas gentes se tinham fixado por aquelas bandas.

Esta referência documental, se outras não houvesse, desde logo nos elucida sobre a presença daquelas gentes no Tejo, e do seu inseparável instrumento de trabalho — a ílhava — num período longínquo da história, coincidente com o período de penúria lagunar em que se verificou, praticamente, o desaparecimento de toda a vida (piscícola e salífera) em que até ali aquela era pródiga.

Pescadores de Ilhavo, Archivo Pittoresco n° 4 (Tomo III), 1860.
(desenho de Tomás da Annunciação, gravura de João Pedrozo)
Hemeroteca Digital

Mas certo é que existem muitas outras referências. Por exemplo, Baldaque da Silva no seu livro Estado actual das pescas em Portugal, Imprensa nacional, escrito em 1891, salientava que "no século passado" — portanto séc. XVIII — a emigração de gentes da laguna de Aveiro para Lisboa, "era já consistente". (1)

Na costa de S. Jacinto, datam de 1755, as referências às primeiras companhas ali fixaram. Tudo leva a supor que teriam utilizado, já então, um outro tipo de embarcação, entretanto criado e aqui desenvolvido — o meia-lua —, embarcação com uma forma singular que abordámos no citado livro Embarcações que tiveram berço na laguna, Capítulo 6. p. 177.

Perante estas indiciações, e não havendo prova documental que o prove em absoluto, somos levados a concluir que a utilização da ílhava com o chinchorro — uma arte menor — teria sido certamente anterior à data atrás referida", em que se teria consumado o aparecimento do, por muitos designado — em nosso entender não rigorosamente —, barco da xávega.

Depressa teriam os pescadores da borda concluído que o bateirão de mar não respondia eficazmente às exigências de uma pesca intensiva.

Este tipo de embarcação só se poderia fazer ao mar em condições muito especiais, quando não se verificasse quebra (pancada) da vaga, significativa, de modo a permitir lançar as redes nas águas, entre a rebentação e o mar".

Estas eram redes varredouras" que seriam de reduzida dimensão para pesca, à borda, num tempo em que só o trabalho braçal era utilizado para sua recolha. Antecipando em muito, o momento em que se passou a usar a tracção animal —o que viria a acontecer na Companha de Manuel Firmino, na Costa de S. Jacinto, em 1887".

Mas se ali, na borda, os atributos das bateiras não eram os ideais, cedo se descortinou que com uma derivação inspirada nas suas linhas, embora reduzindo-lhe as suas dimensões, o Douro oferecia, sazonalmente, as safras do sável e da lampreia.

E aí, as bateiras lagunares tinham as características certas para cabal desempenho do pretendido. Era apenas coisa de mudar para lá as mesmas, levando tralhas e falico, suficientes, para a safra. Deslocaram-nas desde logo para a Afurada' onde se fixavam durante as épocas de pesca, aí constituindo colónias de dimensão assinalável, profusamente referenciadas ao longo dos séculos XVIII e XIX.

Bateira da Afurada.
Arquivo Municipal do Porto

Teria sido dessa sua fixação na referida zona, e da sua utilização na captura do sável, que adviria a confusão de, muitas vezes, a dava ter sido identificada com a designação de saveiro', hábito que mais tarde se estendeu a outras embarcações, como foi o caso do saveiro (meia-lua), da Capariea, que pescava na borda do mar (...) (2)

Portuguese Shipping in the Mouth of the Tagus, S. Clegg, 1840.
BBC Your Paintings

(...) E saltando para a outra banda, fixaram-se na Trafaria. Em todos estes locais edificaram agregados piscatórios (colónias) de apreciável dimensão, muito característicos nos usos costumes, trancados à aculturação com o exterior.

Trafaria, ilustração Roque Gameiro, 1899.
Hemeroteca Digital

Esta singular preservação de usos, trajes, falas e costumes, foi característica e especificidade mantidas pelo longo período de quase dois séculos, em que varinos. daqui saídos e seus descendentes'', permaneceram por aquelas bandas. (3)


(1) Senos da Fonseca, "ílhava" a bateira lagunar com que os "ilhos" escreveram "história"
(1) Idem
(1) Idem, ibidem

Artigos relacionados:
Anatomia comparada
Bateira do Mar, o elo perdido
Ílhavos
etc.

Mais informação:
As bateiras, genealogia, tipologias, distribuição
Bateira (pesquisa) em Ana Maria Lopes, Marintimidades

Leitura relacionada:
Ana Maria Lopes, Diário de bordo da bateira ílhava : a construção, Museu Marítimo de Ílhavo, 2015
Senos da Fonseca, Embarcações que tiveram berço na laguna
Senos da Fonseca, Embarcaçoes lagunares bateiras e artes
Senos da Fonseca, Factos & História 
Senos da Fonseca, A arte da xávega
Antonio Arthur Baldaque da Silva, Estado actual das pescas em Portugal, Imprensa nacional, 1892

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