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quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Companha do Anjo da Guarda (na faina da arribação)

Embora existissem outras artes de pesca, a Arte Xávega que pescava desde o S. João (24 de Junho) até finais de Outubro sempre que o mar o permitia, era responsável por trazer na faina muitos homens e mulheres divididos em companhas, termo que na Arte Xávega designa as pessoas, as redes e o próprio barco.

Costa da Caparica, colecção Passaporte-Loty n° 64, Pescadores enrolando as cordas da rede, c. 1960.
Delcampre

Em cada companha imperavam os laços de parentesco e de origem, sendo cada uma conhecida pelo nome do barco com que pescavam. Estavam subordinados a uma hierarquia rigorosa em que cada um dos membros ocupava um lugar específico em função das tarefas que desempenhava na faina da pesca. 

Costa da Caparica, colecção Passaporte-Loty n° 65, Pescadores varando um barco, c. 1960.
Delcampre

A companha era uma espécie de família alargada, formando um grupo coeso em permanente competição com as outras companhas, rivalizando no sucesso dos lanços, através da quantidade e qualidade do peixe trazido à praia em cada lanço.

Costa da Caparica, colecção Passaporte-Loty n° 66, Pescadores arrastando o seu barco, c. 1960.
Delcampre

Não é possível descrever aqui a dureza do trabalho quando a pesca se realizava sem recurso a quaisquer meios mecânicos e todo o esforço no mar e em terra era realizado por músculos humanos. (1) 

Costa da Caparica, colecção Passaporte-Loty n° 67, Pescadores arrastando o seu barco, c. 1960.
Delcampre

Contudo, enquanto tentativa de aproximação faremos uma descrição resumida e necessariamente incompleta da composição da companha e dos principais momentos que pontuavam cada lanço da Arte Xávega. (1)



(1) Francisco Silva, Costa Fronteira, Fronteiras Urbanas Ensaios sobre a humanização do espaço, 2014

Informação relacionada:
O Património Marítimo-Fluvial. Um Valioso Bem Cultural a Preservar.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Ao largo! Os mesteirais do mar

O seu esforço, o seu heroísmo e a sua tragédia

Rumoreja doce, a onda, em embalo e acalento. Dedos de espuma afloram a epiderme da terra, em caricias longas de namorado. O sol mordisca ao de leve a tona glauca das aguas, irisando a crista franjada das vagas pequeninas. Gaivotas, aos bandos, abatem as azas pandas sobre a campina movediça e mergulham os colos alvos na babujem do engodo, gualdindo solregas grandes tassalhos de peixe. Ao largo, o mar, percorrida toda a gama dos verdes, vai acabar azul, confundindo-se com o ceu. Passam revoadas de alciones. É a alegria da manhã.

Na Costa da Caparica - Alguns aspectos da vida do pescador (cliché de A. Santos)
A Batalha, n.° 21, 21 de Abril de 1924

Na praia, sobre a areia loira, garotos tisnados, como santolas loucas, retouçam ao sol. Os barcos varados, brilhantes de côres, trescalam a maresia. Dos casebres negros, encolhidos contra-o-vento, vem a falacia cantada do mulherio e um fartum acre de peixe e alcatrão. Velhos em farrapos, faces rugosas, cobertas de liquens do, mar, ou glabras polidas como rocha batida da vaga — compõem serenamente as redes trigueiras.

Surge agora um grupo de homens falando alto, barbaramente. Molda-lhes o tronco solido uma sueira grossa e a cabeça chamorra ocultam-na no longo barrete, herdado dos seus avós do Oriente remoto. É a companha. O mestre, um alto, ruivo, tem um sueste que brilha e todos levam á vela as pernas vermelhas, velosas.

— P'ró mar?! perguntam os que ficam, na quietitude marasmada do sonho.

— P'ró mar ! — respondem os que seguem para a labuta moirejada, para a aventura, quiçá para a morte. E lá vão gingando, nodoa de sombra na claridade da praia.

Acomodam-se os utensilios a bordo.

— Arreia ! — E o barco desliza suavemente por sobre os paus encebados. Feita a manobra, a postos a companha, ao sinal da largada, todos dizem:

— Voga!

O mar tem afagos de extranha volupia ao beijar rochas hirtas, torturadas. Singram ao largo velas de purpura, fulgindo ao sol, e outras cinzentas plumbeas, como ceu de tempestade. É assim auspicioso e agoirento o espectaculo do mar.

*
*     *

Ferrado o pano, o barco apoitou, que o fundo fofo de algas era proximo. Á proa, o-do-remo-da-roga vinha espalhando mancheias de engodo, num gesto largo de semeador. E começou a faina da pesca.

*
*     *

O mar é a grande oficina da liberdade. Onde quere que deitem as suas redes ou mergulhem as suas linhas, os que dele vivem e nele morrem, nunca ouvem: — "Alto! Isto pertence-me !" O — "é meu" — não se diz no mar. O mar é de todos. Não tem leis, nem balizas.

O pesqueiro que hontem foi farto, hoje está deserto. Vamos que o mar é largo e lá em baixo reina a abundancia!

Emigram as especies marinhas, veem outras novas; a tempestade afugenta e mata os pescadores, logo a bonança os alicia e favorece. É assim o mar, onde tudo é mudavel e transitorio e só constantes a sua infinita vastidão e deslumbrante riqueza. E mais — o seu augusto misterio...

Que o mar tem indefinidas, espirituais influencias nos seres e nas almas, sobretudo — nas ideias. É um eterno gerador de beleza e pira onde arde constante o foge da liberdade. Até onde chegam as suas emanaçães sadias, a vida tem uma agitação promissora. Os continentes que o mar penetra e recorta são os mais progressivos, aqueles onde as ideias dc liberdade florescem com mais pujança. Exemplos? Olhemos para, o mapa do mundo.

O mar é o simbolo da Revolta e da Pureza. Não ha dejecto que o manche, nem obstaculo que não derrube.

*
*      *

Acabara a pescaria. No fundo do barco a farta colheita — triunfo daquela tarde — fulgia nas escamas brilhantes do pescado, que manchas baças de epidermes viscosas cortavam. Viam-se peixes de todos os tamanhos e das côres mais bizarras, desde o safio, longo, sombrio, coleante, ennovelando-se em contrações agónicas ao peixe-rei, pequenino, vermelho-tenso, saltitante e brincalhão como um menino folgado. O mestre, agarrado ao remo da espadela, mão em pala sobre os olhos claros, murmurou para companha:

— Cia!

Havia que virar de bordo rápido. Uma aragem fria arrepiava a flor das aguas, cortando; e uma mancha de tinta alastrava no horizonte, para o Sul.

*
*     *

Foi assim: O vento cresceu; tiveram que ferrar a vela e apear o mastro. Começou a cavar vaga, abrindo beiçanas de chaga com pús e gangrena nos bordos A abobada do ceu desceu mais e, de negra que era fficou amarela esgazeada. Ouviu-se, a principio ao longe, a restolhada dos trovões. Depois, mais perto, cada vez mais perto, o estalido seco dos coriscos, abrindo clareiras nos ares, logo seguidas do ribombo soturno.

O vento cresceu ainda. Chuva, em cordas grossas, vivas, caia. Alijada a carga, o barco era um ponto negro, longo tempo oculto agora nos desfiladeiros lugubres, presagos das ondas, logo projectado para o alto no dorso sombrio da vaga.

Deveria ser noite já. A tragedia da noite, em que se é mais só e desapercebido, para lutar com a dôr. O barco derivava á tôa. Ele só e a imensidade em combate singular. Dentes cerrados de anciedade, olhos pávidos de terror, dorsos abroquelados ao peso da desgraça, suando, resfolegando, praguejando e rezando — a companha ora esgotava o barco, ora se atirava para um bordo para o equilibrar, ora caia de bruços quando um golpe da vaga empinava ao alto o esquife. E assim esteve horas, na agonia.

Depois, o mar, enraivecido, torvelinhou, comprimiu mais, num abraço de desespero, a fragil presa. Rangeram as taboas, rugiram os homens e, num ultimo arranco, o ponto negro desapareceu na vastidão imensa do mar em furia.

Na praia, encharcada, mulheres de negro, com os filhos ao colo, gritavam:

— Misericordia!

O heroismo ignorado da brava gente do mar é temperado em beleza; mais — em sacrificio. Mal enxutas as lagrimas de dó pelos que se foram, voltam os pescadores á labuta, ao ganha pão dos seus, á paixão do mar. Face á Dôr e á Morte, são altivos, porque, mais do que quaisquer outros seres humanos — são livres. O mar que lhes dá pão e ensino, gozo para os sentidos e jazida na morte, dá-lhes tambem — nobreza. (1)


(1) A Batalha, Suplemento Literário e Ilustrado, n.° 21, 21 de abril de 1924

Artigos relacionados:
Os pescadores de Raúl Brandão
Mário Domingues (1899-1977), escritor
etc.

Leitura relacionada:
Casa Comum, A Batalha, Suplemento Literário e Ilustrado. Propriedade da C.G.T.
A Batalha, Suplemento Literário e Ilustrado, dados editoriais
Artigos de Mário Domingues em "A Batalha, Suplemento Literário e Ilustrado"

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Os pescadores de Raúl Brandão

Atravez dos Livros

As suas ideias, os seus sentimentos e a sua beleza

Já está publicado o anunciado livro "Os pescadores" de Raúl Brandão cujas primícias de um excerto já foi dado aos leitores deste semanário literário gozar, devido à gentileza muito especial do autor. 

Tratando-se de um escritor que já conquistou de há muito a sua consagração definitiva, embaraçados nos seriamos para apreciar o seu estilo conciso e brilhante, Limitamo-nos, portanto, a dizer que Raúl Brandão afirma mais uma vez neste seu trabalho as eminentes qualidades de escritor inconfundivel, de castiça correcção e que sabe levar a extremos de perfeição a magia da palavra literária.

No prólogo deste seu ultimo trabalho diz-nos Raúl Brandão que quando regressa do mar vem sempre estonteado e cheio de luz que o trespassa. Foi assim tambem que nos sentimos ao concluir a impressionante leitura do seu livro que é uma verdadeira epopeia, um esplêndido cântico ao mar infinito e misterioso. 

"Os pescadores" são o primeiro volume da serie "A vida humilde do povo português" que aquele poderoso escritor se propõe escrever. Nas suas páginas palpita a existência da dôr e sacrificio que é a vida do pescador, agitam-se as suas cóleras, e os seus desesperos, seja êle da Foz do Douro ou da costa de Caminha à Póvoa, da ria de Aveiro ou de Mira, das Berlengas ou da Nazaré, de Lisboa, Setúbal, Cezimbra e Caparica, de Olhão, Tavira ou Sagres.

Cliché António dos Santos
[Pescadores na Costa da Caparica]
A Batalha n.° 5 (suplemento literário), 31 de dezembro de 1923

Os pescadores são a narrativa, ora suavemente enternecedora, ora ligeiramente graciosa, ora intensamente dramática, de vida, carácter, costumes e da faina rude e das condições de trabalho do pescador de Portugal; e neste largo campo de sensações o autor, sob uma forma interessante, atraente e impressionista, faz-nos conhecer minuciosamente as diferenças etnicas caracteristicas das nossas colónias pescatórias, alguns tipos magnificamente desenhados de pescadores, termos familiares das regiões, a paisagem e riqueza das nossas costas, as várias espécies de peixe que mais abundam nas nossas águas, embarcações, aparelhos e processos de pesca, dando-nos, em episódios de acção profundamente dramática em que se movimentam figuras cheias de sentimento e de caracteres magistralmente acentuados, a impressão da angustia indefinida em que vive essa gente, da tortura inquisitorial, do constante sobresalto dos mães e das mulheres que veem partir os seus homens para o mar, e das doloridas almas das vitimas que caminham resignadas, fatalistas, para o sacriticio. 

A morte do arrais — encontrado morto no cabedelo, no dia seguinte ao da tempestade, com as mãos crispadas agarradas ainda ao leme do barco que o mar, na sua fúria indomável, partiu pela quilha, não é o único quadro trágico que o livro contem, se bem que seja um dos mais pungentes lances, mordido de cores singulares, em que o clamor do mar que mete mêdo se confunde com os gritos de aflição e de desespêro das mulheres e os choros das crianças no cais, em que a cólera do mar porfia com o esfôrço hercoler de salvação dos homens. De não menos emocionante intensidade aquela outra scena da morte de dois irmãos encontrados unidos um ao outro, o mais velho erguendo nos braços o mais pequeno procurando salvá-lo. Razão tinha a mãe, a Maria da Sé, em não querer deixar o mais pequeno ir ao mar! Quando o surpreendia com os outros brincando nas poças com barquinhos de cortiça ela bem lhe batia para que ele perdesse o sestro. Mas o mar atraia-o  irresistivelmente. E na ansia de ir ao mar, como o pai, como os irmãos, como os homens, lá foi, até que lá ficou como já tinha ficado o pai... 

Depois vem a descrição de como vive toda essa gente.

A de Mira vive com simplicidade nos palheiros, casa ideal para pescadores ou pra um velho filósofo como eu. É construida sobre espeques na areia, com táboas de pinho e um fôrro por dentro aplainado. Duram tanto ou mais que a vida; cheiram que consolam, quando novas, a resina, a arvore descascada e a monte; ressoam como um velho buzio e são leves, agasalhadas, transparentes. Por fora escurecem logo, e envelhecendo caem para o lado ou para a frente; por dentro conservam uma frescura extraordinaria, e quando se abre uma janela, abre-se para o infinito. No chão dois tijolos para o lume, em esteiras alguns peixes a secar. Do Natal até maio não há pesca: Vão cavar para o Alentejo ou para mais longe, e as mulheres ficam em casa com os filhos. Alem da jorna, que regula de quatro mil reis a dois mil e quinhentos por dia, todos teem o seu quinhão nos dias de fartura — alguns punhados de sardinha ou de chicharros. Felizes ou infelizes? Não sei bem. Apesar de abandonacios pelo Estado, que os rouba, cobrando-lhes de fisco uma exorbitancia, quatrocentos contos o ano passado e quasi o dobro este ano, não lhes dando em troca uma maternidade, uma pequena biblioteca que os instrua um médico, uma botica, uma estrada; apesar de abandonados pelos homens, sem organização nem instrução, sem um padre que lhes fale em Deus ou nos coisas eternas (a capelinha de madeira está fechada) — esta gente é tão fundamentalmente boa que ha cinquenta anos para cá, não consta de um roubo, de um crime ou de um delito. Pode-se dormir com a porta aberta, Eu nunca fechei a minha.

Quando chegam a velhos e não podem trabalhar, como não ha um simulacro de cooperativa, e a lei do seguro os não abrange, lá se socorrem uns aos outros como podem. A miséria e quasi desconhecida neste pequeno povo de mais de duzentos fogos e de cérca de mil habitantes. Mira, punhado de casebres a apodrecer — é um mundo. A vida aqui não é uma mentira. E todos os dias a arriscam, porque quási todos os dias ouço as mulheres implorando Deus, quando o barco vai ao mar e se enche de agua.

Até aos ultimos anos ninguém enriqueceu em Mira com a pesca.

Mas agora, com os preços excessivos do peixe, tudo mudou de figura. já o ano passado se ganhou muito dinheiro, quando o cabaz de sardinha dava vinte mil reis. Que fará este ano, que regula entre cinquenta e sessenta? ha lanços de cinco contos, e já e diz que alguns se sentam em libras sôbre os buracos que abrem na areia para as esconder. As casas de salga fazem tombem im grande negocio. Enriquece o almocreve, o patrão e o negociante; só o pescador continua pobre e despreocupado. O mar nunca acaba e o mar é deles...

Os pescadores da Nazaré são ingénuos e supersticiosos. Um crime é raro. Não ha policia. Teem um medo ás bruxas que se pelam.

E o pescador de Cezirnbra? Este homem é de instinto comunista. Se um adoece, Os outras ganham-lhe o pão: recebe o seu quinhão inteiro. Se morre, sustentam ate a viuva e os filhos entregando-lhe o ganho que ele tinta em vida. Dão ao hospital e ao asilo uma parte do pescado. Toda a gente tem direito a ir ao mar — toda a gente tem direito á vida. Vai quem aparece, desde que seja maritimo. Acontece que o barco leva hoje quarenta h 'meus e leva vinte amanhã... O produto das artes é dividido em quinhões iguais pela campanha. A pesca do anzol é uma espécie de cooperativa, e a barca quasi sempre dos pescadores. 

Mas este sentimento comunista é vulgar entre a gente do mar.


O pescador é comunista e alegre, o montanheiro desconfiado e triste. 

No mar não ha marcos... diz o autor ao estabelecer o contraste entre Tavira, terra de montanheiros e Olhão, terra de pescadores. 

E continuando:

O maritimo de Olhão tem, como nenhum outro, um grande sentimento de igualdade: estende a mão a toda a gente. É que no mar os homens correm os mesmos perigos. São tambem profundamente religiosos, porque estão a toda a hora na presença de Deus. Duas tábuas, a fragilidade e a incerteza, forçam-nos a contar consigo e com e companha. Arriscam a vida para salvar a dos outros: hoje por ti, amanhã por mim. Homens simples porque a profissão é simples e o meio, grande e eterno, não os corrompe. E como o mar abundante e prodigo não tem cancelas, são generosos, imprevidentes e comunistas. Detestam os tribunais, que não coompreendem, e ignoram a vida da terra. Se a mulher lhes morre, não entram em licitações com os filhos: deixarn-lhe a eles o barco e as redes, e tomem conta do resto. Reparei que em toda as casas havia uma gaiola com um pintassilgo. Os homens do mar tiveram sempre uma grande ternura pelas aves. 

E as mulheres? Não as esqueceu tambem Raul Brandão que no-las retrata com fidelidade e que se curva perante o seu esforço fisico e a sua energia moral, vendo-as calcar todo o dia as estradas vendendo o peixe, trazendo os pequenos ao colo, não se deixando dominar pela desgraça, ou fabricando a graxa, fazendo, lavando e concertando as redes, metendo hombro aos barcos para os deitar ao mar, trabalhando tanto ou mais que o homem, infatigaveis sempre e ainda lhes sobra o tempo para tratar da casa e dos filhos!

E ainda o pior para todas estas mulheres não é serem bestas de carga, dias atraz de dias encharcadas e escorrendo salmoura... A mocidade dura-lhes o que duram as rosas. Quasi sempre de uma belesa delicada, a mulher da beira-mar, com excepção da do Algarve, que é a "prenda da casas", logo que casa carrega com quasi todo o peso do lar, cresta-se e envelhece. Acusam-na de imprevideucia. Imprevidente é o homem, que gasta na taberna tudo o que ganha. O lavrador é avaro, tira o pão da arca a medo, como quem sabe o que ele lhe custa de esforços persistentes — o pescador, num dia de fartura, enche a casa de pão. E o mar inexgotavel não lhe foge... Mas ela não. Ela, remenda, poupa e vai arrancá-lo à taberna. Conheço-lhes desde pequeno os estremos de dedicação e de força diante da desgraça. Esta pobre mulher — terra virgem de ternura — merecia um lugar à parte na nossa terra, pela sua abnegação, pela sua energia, e até pela distinção de sentimentos. Em Mira o lar é sagrado. É-o em to-dos as povoações da costa portutuesa que ficam longe dos centro, corruptores. 

Mas o trabalho pesado não é ainda o pior — o pior é o sobressalto constante da sua vida. A da lavoura tem o lar seguro. Vem o inverno temeroso e a noite que não tem fim. Fechada no casebre, á roda do lar, ela, o homem e a moça, com o filho no berço (ao lado na corte os bois fartos esmoém) — sente-se tranquila; sabe que na arca puida ha meio carro de pão, o suor do seu rosto, e algumas moedas juntas. Pode o temporal abalar o teto de colmo e o nevão cair lá fora. Ardem os raizeiros no lume e as traves de castanho são eternas. O buraco tem alicerces de granito até ao fundo do globo. Quanto ao pescador, esse há-de ir ao mar, unico campo que lavra, ainda que arrisque a vida. Os pequenos pedem-lhe pão e ele não tem outro ofico. O tempo está mau e dias atraz de dias passam. — Sempre vou... — Ela sente o coração oprimido, mas cala-se. Sabe perfeitamente pelos outras o futuro que a espera. Quantas conheci sempre de luto, sem ir muito longe da minha casa!... Por fim diz: — Pois Vai... — As redes, a cesta e ele embarca. Fica com ela um bando de pequenos, e com o coração aos saltos põe o ouvido ã escuta... A onda brame no cabedelo com um eco prolongado. — Não tem duvida, é o mar que chama o leste. — Mas agora, a voz é outra, mais funda, o vento mudou para o sul e a barra cerra-se. — Irão arribar e Leixões?... — Que tempo no mar alto, na noite tragica, e só negrume em roda! Nas mãos de Deus! nas mãos de Deus!

Cabe-lhes sempre o pior quinhão da negra vida, Trabalham o dobro dos homens e vivem mais do que eles, porque sofrem muito mais. 

Retrato de Raul Brandão e de sua esposa, D. Angelina Brandão, Columbano, 1928.
MNAC

E é assim todo o livro de Raul Brandão. Por todas as suas paginas perpassam um suavissimo espirito de humanidade, um proposito de reabilitação e de justiça e um sentimento de respeito pelo Trabalho. 

"Os pescadores" é um livro que comove e... nos faz pensar... (1)


(1) A Batalha n.° 5 (suplemento literário), 31 de dezembro de 1923

Artigos relacionados:
Costa da Caparica por Raul Brandão em 1923

quinta-feira, 30 de maio de 2019

Barcos meia-lua (Aveiros, não Saveiros...)

No imenso areal o barco da duna, sempre o mesmo barco, maior ou mais pequeno, próprio para a arrebentação, de proa e popa erguidas para o céu. (1)

Costa da Caparica Saveiros Meia-lua da Caparica  Marinha de Pesca.
Comissão Cultural da Marinha

Com o nome de aveiros, e não de saveiros, são estes barcos denominados na mesa do imposto chamada do Tragamalho. 

Saveiro, alijo e savara, gravura, João Pedroso, 1860.
Hemeroteca Digital

Talvez seja corrupção do primitivo nome que tinham quantos barcos vem ao Tejo da cidade de Aveiro, que são muitos. (2)

Com o nome de aveiros, e não de saveiros...
Hemeroteca Digital

Também as populações do litoral se deslocam: pescadores de Ílhavo e Ovar fundaram colónias, como a Costa da Caparica, onde se encontraram com algarvios, vindo depois engrossar a mesma aglomeração gente de Sesimbra e das margens dos esteiros do sul do Tejo [...]

Saveiro da Costa.
Caderno de Todos os Barcos do Tejo, tanto de Carga e transporte como d'Pesca, por Joao de Souza, 1785.

Os saveiros da Costa da Caparica, em forma de crescente, reproduzem um dos tipos de embarcação da Ria de Aveiro. (3)

Barco meia lua da Costa da Caparica usado na pesca da sardinha com rede de arrastar para terra.Construidos primitivamente em Ílhavo (Aveiro) navegavam com uma vela de pendão e um leme provisório que chegados à Caparica eram substituidos por remos.
Origem do fabrico Aquário Vasco da Gama.
Museu de Marinha

Quando os pescadores de Ovar abandonaram, no século XVI, a pesca na Ria e se dedicaram aos trabalhos do mar, fixaram-se primitivamente no lugar onde hoje se ergue a praia do Furadouro, que foi a sua primeira colónia.

Depois, nas estações próprias, partiram para o norte e para o sul, procurando locais para exercer a pesca e estabelecendo outras colónias entre o Douro e o Vouga e, finalmente, atingiram locais do litoral português cada vez mais afastados da terra natal. 

Os pescadores da Costa da Caparica (detalhe), Adriano de Sousa Lopes (1879 - 1944).
cf. estudo para "Quadro de Os Pescadores da Costa da Caparica, no "atelier" de Sousa Lopes" (1927).
Exibido na exposição "Efeitos de luz" (2015) no MNAC (Museu do Chiado)

Nos séculos XVI e XVII, estavam na Torreira e nas Areias mas, durante estes dois séculos, não se fixam nos lugares mencionados, regressando à vila após as fainas marítimas. Na primeira metade do século XVIII, trabalham como marmoteiros na Afurada, numa colónia onde estão já presentes também 92 mulheres. 

Na segunda metade do século XVIII, chegam à Caparica, Santo André e Olhão, para onde eram transportados nos caíques algarvios que se dirigiam a Aveiro para vender os carregamentos de peixe salgado e, de regresso, levavam para o Algarve as bateiras dos pescadores vareiros e murtoseiros, com as suas redes e aprestos. (4)

Barco no Tejo com mau tempo, Emeric Essex Vidal (1791-1861), 1833.
artnet

Nas artes de arrastar para terra figuram as xavegas do Algarve, os saveiros e as meias-luas, de Espinho, Furadouro, S. Jacintho, Costa Nova, Mira, Tocha, Buarcos, Lagos, e outros logares, desde o sul do Douro até a Vieira, reapparecendo, mais abaixo, na costa de Caparica e da Galé, e na praia de Sines. (5)

Saveiro da Costa de S. Jacinto (Aveiro) usado no lançamento das artes de arrastar para terra.
Origem do fabrico Aquário Vasco da Gama

Museu de Marinha

Os "meias-luas" eram antigamente construídos em Ovar pelo construtor Bernardino Gomes. Eram muito mais pequenos do que o "barco do mar" que pode, ainda hoje, ser encontrado em Aveiro.

Saveiro da costa norte, "Sempre vim", 1920.
Museu de Marinha

Os primeiros barcos eram, apesar de tudo, bastante grandes: o seu comprimento era de 10,80 metros e a sua boca 2,85 metros,como está representado num modelo da Colecção Seixas no Museu de Marinha, construído à escala de 1:25, cujas linhas e plano de construção foram retirados por José Pessegueiro Gonçalves em 1920 de uma embarcação existente denominada "SEMPRE VIM". 

Saveiro da costa norte, "Sempre vim", 1920.
Museu de Marinha

Estas grandes embarcações eram construídas com quatro bancadas para os remadores e as posteriores, mais pequenas, e em menor número, que mediam 8,50 x 2,40 metros aproximadamente, eram construídas com três. 

Saveiro da costa norte, "Sempre vim", 1920.
Museu de Marinha

A parte de ré do casco era deixada aberta para permitir espaço no qual era alojada a rede, as suas numerosas poitas e flutuadores de cortiça e os cabos de puxar. (6)

Meia lua "Ha-de ser o que Deus Quiser", TR-306-L. Registada na Delegação Marítima da Trafaria, em 18 de setembro de 1946 por Vitorino José, que a mandou construir ao carpinteiro naval, Marcolino Ferreira, no estaleiro de Porto Brandão. Destinava-se à pesca local com arte de navegar.

Meia lua da Costa da Caparica, "Ha-de ser o que Deus Quiser", 1946.
Revista da Armada

Em 04 de março de 1950 passou a ser propriedade de António Xavier Carrapinha e António Pinto Ribeiro.

Marintimidades

Lotação: 12 homens; Tonelagem: 4,155. Comprimento: 8,50 m (8,42 m Documento da Delegação Marítima); Boca: 2,40 m (2,35 m Documento da Delegação Marítima); Pontal: 0,80 m (0,84 m Documento da Delegação Marítima). (7)

Outro exemplo expressivo, captado também nos anos 60, é a proa da barca da arte xávega de Monte Gordo. 


Barca de pesca em meia lua do Algarve na zona de Monte Gordo.
Museu de Marinha
No beque, uma cabeça de cobra.

Proa da barca de Monte Gordo, anos 60.
Marintimidades

Local para a cabeleira, ocasionalmente retirada. Olhos bem delineados, postados na proa, sem delimitação da cara. (8)


(1) Raul Brandão, Os Pescadores, Paris, Ailland, 1923, 326 págs, 127,7 MB
(2) Hemeroteca Digital: Archivo Pittoresco, 1860, n° 41, pág. 325
(3) Orlando Ribeiro e Hermann Lautensach, Geografia de Portugal, comentários e actualização de Suzanne Daveau, Lisboa, Edições Sá da Costa, 1999 -1987-, volume III, pp. 754-6 cf. Clara Sarmento, Práticas, discursos e representações da cultura popular portuguesa
(4) Clara Sarmento, Práticas, discursos e representações da cultura popular portuguesa
(5) Ramalho Ortigão, O culto da arte em Portugal, Lisboa, A.M. Pereira, 1896
(6) Revista da Armada
(7) Museu de Marinha
(8) Marintimidades

Artigos relacionados:
Os Meia Lua da Costa de Caparica
Lugar da Costa de Caparica, 12 de setembro de 1833
Arte xávega na Costa da Caparica a Património Imaterial
Ílhavos
etc.

Mais informação:
Ana Maria Lopes, Marintimidades, O meia-lua: da praia para o Museu?...
Leitão, Manuel Leitão, Revista da Armada, Dezembro 2002, (pág. 397, ou pesquisar "Caparica")
Senos da Fonseca, Factos & História 
Senos da Fonseca, A arte da xávega
Caxinas a freguesia
etc.

terça-feira, 28 de maio de 2019

"Deus te guie"

De novo o Deus te guie fez proa ao mar, e o calador foi folgando cabos e pondo coiros a flutuar de oito em oito cordas. O arrais pediu fósforos, chegou o lume ao morrão do caldeiro e fez sinal para terra. Deu o brado de "ninguém reme!" e apagou a chama. 

Costa da Caparica, Deus te guie.

Houve um silêncio no Deus te guie... E o espadilheiro bateu com a pá na água.

— Abriu! Abriu peixe! — chamaram os remos, batendo cada um, depois, com gana. 

Mas os arrais berrou: — Ninguém bate! Aqui, quem dá ordes!?


Desenho do saveiro Deus te guie da Costa da Caparica.
Museu de Marinha
Fez-se tamanho silêncio que só o marulho das águas tem rumor. A bica da vante está voltada ao sul. As mãos do calador atam a corda à rede. Vão descer as primeiras malhas... Todos se descobrem. 

Desenho do saveiro Deus te guie da Costa da Caparica.
Museu de Marinha


E o arrais diz: — Vai em louvor de Nossa Senhora do Cabo! (1)


(1) Romeu Correia, Calamento, Lisboa, Editorial Minerva, 1950

Artigo relacionado:
Arte xávega por Romeu Correia

Leitura relacionada:
Ricardo Salomão, Meia-Lua: O Saveiro da Costa da Caparica, Revista MUSA 4, 2014

sexta-feira, 6 de julho de 2018

Pescadores da Costa da Caparica (1967)

O "meia-lua" era transportado para a borda de água por todos os homens da "companha" que levavam aos ombros uns paus atravessados por cima do barco com esta finalidade.

Excerto do filme Almada - Varanda do Tejo (cor, 35 mm), Ricardo Malheiro, 1967.
Cinemateca Digital

Para ser lançado à rebentação, sem virar, eram necessárias três coisas: uma vara nas mãos do homem da proa ou "vareiro" que resistia ao impulso lateral da corrente que nele actuava; uma vara por baixo da popa, segura por alguns homens do grupo de terra, de um lado ou do outro do barco conforme necessário; e um cabo com um gancho passado a um anel a ré e puxado na direcção oposta.


O barco era então empurrado para a onda e iniciava a progressão com as remadas, guiado por um remo montado a estibordo a ré. 

Regresso de pescadores, Col. Passaporte (LOTY), 370 (61 p/b).
Delcampe

A tripulação consistia no homem da proa (proeiro), seis a oito remadores, um homem a vante para guiar a "arte de arrastar para terra" ou "xávega" assim que esta era lançada pela borda, e o homem do leme que era o patrão e norma1mente o dono da embarcação. 

Costa da Caparica, Pescadores arrastando o seu barco, ed. Passaporte, 371.
Delcampe

O aparelho de pesca era uma rede de arrasto, lançada em semicírculo de maneira que concentrasse o peixe, normalmente sardinha, e depois trazê-lo para a praia. (1)


(1) Revista da Armada n° 369, dezembro de 2002

Tema:
Arte xávega

terça-feira, 28 de novembro de 2017

São pequenos...

Tem reinado grandes temporaes na nossa costa, e por isso a cidade tem sentido grande falta de peixe.

A varina zangada, Stuart Carvalhais (1887-1961).

Domingo 10 do corrente, na costa de Caparica, apresentou-so o mar em bonança, o que animou uma companha de pescadores. Havia dias que os desventurados não podendo ir ao mar não tinham ganhado dinheiro para pão.

Brasão da Vila de Costa da Caparica (detalhe).

Lá vae para o mar um barco com os seus dezoito homens, lançam a rede e poem-se á capa esperando que o peixe caia.

Costa da Caparica, Ilustracao Portuguesa, 1920.
Imagem: Hemerotreca Digital

Horas eram de recolher a rede e eil-os logo em trabalhosa lida: mas o mar já não estava para graças, e para provar que é coisa com que se não brinca, levantou um enorme vagalhão que accommettendo o barco, levou comsigo os dezoito pescadores, dos quaes apenas escaparam dois, morrendo afogados os dezeseis.

A tragédia da Costa da Caparica, O Domingo Ilustrado n° 91, 1926.
Imagem: Hemeroteca Digital

Este triste acontecimento foi-nos relatado por um pescador; que na segunda feira appareceu em Lisboa, apregoando besugos e dizendo, "são pequenos, mas mataram dezeseis homens". 

Pescador, Tom [Thomaz de Mello] (1906-1990).
Imagem: Almanak Silva

E ha quem diga que não tem medo do mar.

Patriota (1)


(1) Antonio Feliciano de Castilho, Revista Universal Lisbonense, Lisboa, Imprensa dos Tribunais, 1845

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Arte xávega na Costa da Caparica a Património Imaterial

A Arte-Xávega é uma técnica de pesca tradicional que consiste na utilização de uma rede de cerco envolvente que é lançada no mar e depois puxada para terra.


O mar como patrimonio, exposicão: arte-xávega na Costa da Caparica, 2015.
Imagem: Francisco Silva

A Arte, como é designado o conjunto constituído por cordas, alares e saco, é lançada ao mar a partir de uma embarcação, deixando em terra a ponta da corda designada por banda panda. Depois de largar a rede, a embarcação regressa à praia trazendo a outra ponta de corda, designada por banda barca.

Logo que a segunda corda chega à praia inicia-se o processo de alagem em simultâneo de ambas as cordas, puxando para a praia a rede cuja boca do saco se mantém aberta através da utilização de boias e de pesos.

Praia do Sol, C. Caparica, ed. José Nunes da Silva, s/n
Imagem: Delcampe

Esta técnica de pesca, praticada também em outras regiões do país, foi trazida para a Costa da Caparica por comunidades piscatórias de Ílhavo e Olhão, responsáveis pelo povoamento do lugar. 

Adaptando-se às praias e ao mar da Costa da Caparica, a Arte-Xávega adquiriu características específicas que a distinguem de práticas semelhantes utilizadas em outras regiões do país.

Considerada como arte de cerco envolvente de puxar para terra a Arte-Xávega tem uma origem remota que segundo alguns autores remonta à pré-história, estando documentada em diversas regiões do Mediterrâneo mas também no Índico. 

Barco lua na praia de Cox's Bazar, baía de Bengala, Bangladesh.
Imagem: WATEVER

Em Portugal a utilização das redes da Arte-Xávega nos moldes que atualmente se conhecem remontam ao século XVIII e terão sido introduzidas por armadores andaluzes e catalães nas praias do Algarve e da Costa Nova, na sequência da proibição em 1725 da pesca de arrasto nas praias da Catalunha.

Na Costa da Caparica as condições naturais necessárias à utilização da Xávega: praia aberta e sem obstáculos, fundos de areia sem rocha e abundância de peixe, associada à proximidade da foz e estuário do Tejo, atraíram companhas de pescadores oriundos de Ílhavo e Olhão que aqui vinham pescar sazonalmente tirando partido do mar mais calmo e da proximidade do mercado da capital para o escoamento do pescado, principalmente sardinha.

Costa da Caparica, Entrando no mar, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, cliché João Martins

A partir de 1770 ter-se-ão fixado definitivamente na Costa as primeiras companhas oriundas de Ílhavo dando início ao povoamento do lugar, até então despovoado e desprezado pelas populações locais, em parte devido à insalubridade derivada da existência de pântanos e juncais que dominavam a paisagem de areal da costa atlântica da freguesia de Caparica.

Como forma de dar resposta a algumas das necessidades da população que então passou a constituir a povoação da Costa os mestres das companhas organizaram o "Cofre dos Quinhões das Companhas", para o qual cada companha contribuía conforme o pescado vendido, com o rendimento do cofre se pagava anualmente ao “cirurgião”, ao padre e ao escrivão.

Costa da Caparica, Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Mário Novais, 1946.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

O muro de cemitério e a sua pequena capela, assim como o poço que abastecia a população de água potável, foram igualmente pagos com dinheiro do "Cofre", que financiava as festas em honra da padroeira, Nossa Senhora do Rosário, a manutenção da capela e o apoio aos mais desvalidos da comunidade.

Praia do Sol, C. Caparica, ed. José Nunes da Silva, s/n, Poço de Bomba.
Imagem: Delcampe

A organização social destas primeiras comunidades locais baseava-se em laços familiares e laborais, sendo que cada companha constituía como que uma família alargada, num segundo nível.

Os locais de origem marcavam de forma mais profunda a separação social entre ílhavos e algarvios, que ocupavam espaços territoriais diferenciados, cuja linha divisória (atual Rua dos Pescadores) separava os descendentes dos ilhavenses, a norte, dos algarvios, a sul.

Identificam-se entre alguns pescadores e pescadoras indivíduos oriundos do Alentejo que se fixaram na Costa da Caparica e desenvolveram a sua atividade em torno da pesca.

Costa da Caparica, Almada, Passaporte, 69, Pescadores transportando as redes.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Acerca da origem dos membros da comunidade piscatória importa ainda referir que a necessidade de força de trabalho utilizada na Arte-Xávega contribuiu para integrar na comunidade muitos indivíduos de origens desconhecidas que procuravam abrigo e trabalho nas companhas da Arte-Xávega.

Eram chamados barraqueiros por habitarem nas barracas da companha, utilizadas para guardar as redes e outros apetrechos de pesca. Esta realidade mantém-se atual, sendo que continuam a habitar nos alvéolos dos pescadores da Costa vários pescadores de origem africana.

A Praia do Sol, O transporte da rede e a faina, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 105.
Imagem: Delcampe

Contudo, na sua maioria, os membros da comunidade piscatória são naturais da Costa da Caparica, sendo a pesca uma atividade que se mantém no âmbito das famílias e um recurso perante a falta de outras oportunidades de ocupação profissional.

A Arte-Xávega seria então o principal método de pesca utilizado de entre outras artes tradicionais de cerco e alar para terra como o Chinchorro, a Rede-Pé, a Mugeira ou o Estremalho, artes que foram proibidas por terem malhagens reduzidas sendo por isso consideradas muito predatórias.

A pesca com a Arte-Xávega, mais precisamente a condução das redes, fazia-se com recurso a embarcações designadas Saveiros ou Barcos de Mar, trazidos pelos pescadores da Beira Litoral (Mira, Torreira, por exemplo onde ainda hoje são utilizados).

Barco de Mar, companha de S. José, praia de Mira.
Imagem: ahcravo's Blog

Eram movidos a remos por tripulações com cerca de vinte remadores a bordo, contudo as condições do mar da Costa da Caparica levaram à transformação dos Saveiros em embarcações mais pequenas e com um desenho ligeiramente diferente a que se chamou Meia-lua (por apresentarem as bicas simétricas enquanto o Saveiro apresenta a bica da proa mais elevada do que a da popa) ou Saveiro da Costa.


Em comum ambas as embarcações apresentavam o fundo plano, que permitia a manobra deslisando sobre a areia, bem como a popa e a proa elevadas para vencer a rebentação das ondas quer à vante quer à ré adaptando-se ao vale da onda.

O meia-lua, de dimensões variáveis consoante o número de remos que levava: dez, oito ou seis, embarcava uma tripulação composta pelo arrais, espadilheiro (manobrava o remo da espadilha colocado à popa que servia de leme), calador (responsável por "meter" e largar a rede), rapaz do pau da corda e os remadores, um por cada remo, conforme a dimensão da embarcação.

Pormenor da praia da Caparica, ed. Fotex, 144
Imagem: Delcampe

A partir de meados do século XX os meias-luas vão sendo substituídos por embarcações mais pequenas designados por "barco de duas bicas", que apresentavam ainda a popa e a proa levantadas mas com as bicas mais baixas, ainda movido a remos mas de mais fácil manobra e adaptado a outros tipos de pesca para além da Arte-Xávega.

Costa da Caparica, Saindo para o mar, ed. Centro de Caridade N. Sra. do Perpétuo Socorro, 173.
Imagem: Delcampe

Na Costa da Caparica a adaptação de motores aos barcos da Arte-Xávega iniciou-se na década de setenta do século XX. Fazia-se nos meia-lua através de um "poço" à popa, onde o motor era introduzido na vertical. Isso obrigava a que, na chegada à praia, o motor tivesse de ser levantado para não bater no fundo.

No sentido de aumentar a segurança e a estabilidade da embarcação, bem como torná-la mais versátil para outros tipos de pesca, foram sendo introduzidas as Lanchas ou Chatas.

Costa da Caparica, Puxando a barca para a pesca,
ed. Centro de Caridade N. Sra. do Perpétuo Socorro, 613.
Imagem: Delcampe - Bosspostcard

A mecanização da alagem através da adaptação de aladores à tomada de força dos tratores, introduzidos na década de setenta do século XX para apoiar as manobras das embarcações e o transporte do peixe, resulta de várias experiências realizadas por alguns armadores locais e generaliza-se a partir de finais da década de oitenta do século XX.

Costa da Caparica, Companha São José, de volta à faina, 2015.
Imagem: Francisco Silva no Facebook

Segundo a opinião de alguns pescadores, recolhida em contexto de diálogo informal, a mecanização dos barcos, do transporte do peixe e da alagem da rede é condição determinante para a sobrevivência da Arte-Xávega na Costa da Caparica, pois já ninguém se sujeitaria ao esforço necessário para realizar manualmente e à força de músculos todas as tarefas necessárias durante uma jornada de pesca.

Costa da Caparica, Pôr do Sol, ed. Passaporte, s/n.
Imagem: Delcampe

A faina da pesca realizada através da Arte-Xávega na Costa da Caparica, sendo praticada no mar e na praia constitui uma atração turística que cativa muitos dos frequentadores da praia nomeadamente banhistas que principalmente durante os meses de verão acorrem em grande número para observar a chegada à praia da rede e a escolha do peixe.

Nesse sentido apesar da proibição desta prática da pesca nas áreas concessionadas entre 09:00 e 19:00 horas, imposta durante a época balnear, alguns concessionários viabilizam o acesso dos tratores através das concessões no sentido de possibilitar a prática da Arte-Xávega.

A possibilidade de comprar peixe na praia diretamente aos pescadores constitui outro atrativo que contribui para a valorização da Arte-Xávega na Costa da Caparica enquanto recurso turístico, para além de favorecer o rendimento das companhas.

Encontram-se jovens de ambos os sexos integrados nas companhas da Arte-Xávega, tendo como principal objetivo auferir de algum rendimento monetário. 

Apesar de se observar alguma falta de interesse por parte das novas gerações em dar continuidade à atividade piscatória na Costa da Caparica, observa-se uma renovação das companhas entre as quais se encontram atualmente três governadas por “donos” com idades na casa dos quarenta anos ou menos.

Nesse sentido considera-se que os conhecimentos e experiência necessária ao governo da Arte, principalmente no que diz respeito à construção e manutenção das redes imprescindíveis à continuidade da prática da Arte-Xávega e sem qualquer viabilidade de produção industrial, se encontram minimamente salvaguardados e com possibilidade de terem continuidade e viabilidade económica.

Costa da Caparica, As redes, aguarela de Manuel Tavares, 1965.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

O património imóvel associado à comunidade piscatória da Costa da Caparica e por inerência à prática da Arte-Xávega relaciona-se com os locais de arrumação dos aparelhos e artes de pesca, bem como a habitação.

Contudo, em virtude do crescimento urbano da cidade da Costa da Caparica, observaram-se a partir da primeira metade do século XX transformações profundas que condicionaram a atual concentração habitacional da comunidade piscatória.

Os primeiros locais de fixação de população na Costa da Caparica dividiam-se em dois núcleos separados pelo traçado da atual Rua dos Pescadores — as famílias de pescadores oriundos do Algarve a norte, e as de Ílhavo a sul.

Costa da Caparica, Vista parcial e Rua dos Pescadores, ed. Passaporte, 72, década de 1960.
Imagem: Delcampe

As habitações primitivas da Costa eram construídas em tábuas e estorno (gramínea que se desenvolve nas dunas).

O primeiro bairro em alvenaria foi construído a norte da Rua dos Pescadores em 1884 por iniciativa do deputado Jaime Artur da Costa Pinto, com a finalidade de alojar as famílias de pescadores cujas habitações haviam sido destruídas por um incêndio.

Costa da Caparica, As novas edificações, 1887, desenho de João Ribeiro Cristino
Imagem: Hemeroteca Digital

Contudo, a partir do primeiro quartel do século XX, com o desenvolvimento da Costa da Caparica enquanto estância balnear e subsequente urbanização da zona norte da povoação as famílias dos pescadores que se aí se haviam instalado foram de alguma forma "empurradas" para sul, onde surgiu o bairro de barracas designado por "Rua 15".

Aspecto do bairro piscatório da Costa da Caparica, 1938.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

A partir da década de sessenta do século XX, com a construção do Bairro dos Pescadores, integrada nas medidas de fomento da pesca tradicional promovidas pelo Estado Novo através do almirante Henrique Tenreiro e da Junta Central da Casa dos Pescadores, sedeada na Costa da Caparica, a maioria dos pescadores da Costa da Caparica passa a dispor de habitação no bairro cuja construção se desenvolverá em três fases.

Acerca da habitação dos pescadores foi possível perceber que a proximidade da habitação ao mar é uma condição determinante para a viabilidade da atividade da pesca, pois a decisão acerca da saída para a faina depende da observação do estado do mar, pelo que a proximidade da praia é determinante na decisão dos mestres e na possibilidade de chamar os camaradas para a faina.

Importa referir que tradicionalmente um dos elementos da companha, geralmente uma criança, tinha a função de "chamador": percorria as habitações dos pescadores gritando "chama o arrais" convocando assim os pescadores para a faina.

Uma das zonas referidas pelos pescadores mais idosos, como local de referência para a comunidade piscatória da Costa da Caparica situa-se onde se encontra o Hotel Praia do Sol.

A Praia do Sol - O Hotel, década de 1930
ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia.
Imagem: Delcampe

Esse local era designado "o Alto" onde se concentrava um núcleo habitacional e onde se via o mar. Quando os alcatrazes caiam mergulhando no mar era sinal de sardinha.

Em data não determinada, quatro famílias da Costa da Caparica foram fundar a povoação da Fonte da Telha, onde se juntam também duas famílias da Charneca.

A Fonte da Telha (Costa da Caparica, Praia do Sol), Cruz Louro, 1937.
Imagem: Cruz Louro

A transformação determinante na história da Costa da Caparica e da sua comunidade piscatória opera-se a partir da década de vinte do século passado com a classificação de estância balnear.

As famílias de pescadores passam então a alugar as suas casas aos "banhistas" habitando durante o verão nas barracas de apoio à pesca, alguns pescadores durante esse período passam a trabalhar como banheiros nas praias concessionadas.

A Arte-Xávega, os seus pescadores e principalmente os barcos meia-lua, constitui uma atração turística, passando a imagem do pescador e do barco meia-lua a estar ligada à promoção turística da Costa como "imagem de marca".

Costa da Caparica, barco meia-lua, Adriano Sousa Lopes, década de 1930.
Imagem: Flickr

Diversos fotógrafos registaram imagens da faina piscatória na Costa da Caparica, sendo que algumas dessas imagens foram publicadas em postais e folhetos turísticos.

Artistas plásticos e fotógrafos, entre os quais se destacam José António Passaporte, João Martins e Júlio Dinis, registaram os métodos de pesca então utilizados na Arte-Xávega constituindo um acervo que permite documentar a Costa da Caparica e das suas gentes durante a primeira metade do século XX.

Importa ainda referir que não se realizou nenhum recenseamento da comunidade piscatória, havendo contudo indícios de que algumas pessoas que trabalham na pesca habitem em outras localidades do concelho, nomeadamente a Charneca e o Monte de Caparica, sem esquecer a Trafaria, povoação piscatória cuja ocupação antecede a Costa da Caparica e onde residem muitos pescadores que também pescam e integram as companhas da Costa.

As novas tecnologias de comunicação e a facilidade das deslocações com recurso a meios de transporte próprios terá introduzido algumas alterações ao nível dos locais de habitação dos pescadores, contudo o caracter familiar da atividade contribui para que na sua maioria a classe piscatória habite na Costa da Caparica.

As principais manifestações religiosas da comunidade piscatória da Costa da Caparica já não se realizam, contudo permanecem na memória coletiva das populações locais demonstrando a religiosidade própria dos pescadores que, não frequentando a igreja, possuem uma forte devoção associada à proteção que esperam receber.

As principais celebrações consistiam numa procissão em honra de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da Costa da Caparica, durante a qual era transportada uma miniatura de meia-lua cuja tripulação é composta por Jesus Cristo e os apóstolos (imagem conservada na primitiva igreja paroquial).

Costa da Caparica, Procissão da Senhora do Rosário, Revista Ilustração, 1937.

A Nossa Senhora do Cabo Espichel constituiu outra das devoções da comunidade piscatória da Costa que, até às primeiras décadas do século XX participava regularmente no Círio do Cabo, percorrendo parte do percurso pela praia.

As práticas de pesca tradicional utilizadas na Costa da Caparica estão dependentes de um conjunto de fatores naturais que condicionam o sucesso da atividade e os riscos associados à navegação que podem colocar em perigo a integridade física dos pescadores.

Costa da Caparica, Almada, Passaporte, 60, Arribação dos pescadores após o lançamento das redes

Nesse sentido, embora seja difícil aferir as crenças e devoções particulares de cada pescador, alguns dos aspetos referidos no Anexo I em 19.3. [ver anexos], nomeadamente a pintura de um olho de cada lado da proa de algumas embarcações assim como os nomes que lhes são atribuídos, constituem no nosso entender aspetos que caraterizam as manifestações de Património Imaterial associadas à Arte-Xávega na Costa da Caparica. (1)



(1) MatrizPCI: Arte-Xávega na Costa da Caparica

Anexos:
MatrizPCI — Chata
MatrizPCI — Arte
MatrizPCI — Bibliografia
MatrizPCI — Multimédia

Temas:
Arte xávega
Saveiro meia Lua
Costa da Caparica