terça-feira, 25 de dezembro de 2018

A Casa dos Pescadores

A natureza corporativa do Estado e a mobilização da ideologia corporativista para impor à nação um sistema económico e social fortemente institucionalizado foram princípios acolhidos na Constituição de 1933.

Costa da Caparica, Casa dos Pescadores, Comissão Municipal de Turismo, ed. Neogravura, Mario Novais, 1946.
Delcampe - Bosspostcard

A adoção do corporativismo como doutrina oficiosa da "revolução nacional" teria propósitos políticos eminentemente instrumentais: reforçar o poder do Estado nas suas relações com os grupos sociais e interesses organizados; garantir uma paz social compulsiva, quer por meio da inibição da liberdade sindical do trabalho, quer através da institucionalização de uma convergência artificial entre o "capital" e o "trabalho"[...]

Em matéria de seguros sociais, a Constituição de 1933 enunciava muito vagamente as responsabilidades do Estado. Quase dois anos depois do plebiscito constitucional foi publicada a lei de bases da previdência corporativa. Diploma que embora explicitasse os vários regimes de seguro social da ordem corporativa, limitava-se a definir as futuras Casas dos Pescadores como "instituições de previdência" [...]

Nas suas Memórias, Pedro Teotónio Pereira recorda que, desde que Salazar o incumbira de dirigir as Corporações, em 1933, fizera planos "de criar para os pescadores uma norma de organização sindical que lhes permitisse realizar inteiramente os seus fins económicos e sociais através dum tipo de organismo para eles criado" [...]

Embora tenha ponderando cautelosamente a questão dos pescadores, o Subsecretariado de Estado das Corporações e Previdência Social não solicitou qualquer estudo a etnógrafos de serviço no sentido de legitimar a opção que andava a definir. Qual antropólogo andarilho, em 1933 o próprio Teotónio Pereira terá percorrido a costa algarvia para verificar o que sobrava dos velhos compromissos marítimos.

Aspecto do bairro piscatório da Costa da Caparica, 1938.
Arquivo Nacional Torre do Tombo

Como relata o antigo responsável das Corporações e Previdência, nesse afã de resolver a questão da pesca e dos pescadores, ele próprio bateu as praias do litoral, compondo uma espécie de inquérito naturalista do qual, obviamente, não há registo [...]

Real ou imaginário, o inquérito a que se refere Teotónio Pereira exprime a intenção de legitimar a fórmula corporativa de enquadramento das populações marítimas.

Costa da Caparica, vista aérea, 1930-1932.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Confirma também que o Governo verificou, primeiro, se seria prudente autorizar a criação de sindicatos corporativos ou se, de outro modo, seria preferível optar por instituições semelhantes às Casas do Povo, organismos de previdência rural que haviam sido criados no primeiro fôlego da organização corporativa, em setembro de 1933 [...]

Por pouco tempo, e apenas numas poucas localidades, Salazar admitiu a criação de sindicatos de pescadores. Entre 1933 e 1934 foram criados três: um em Setúbal (de âmbito distrital, com sede provisória no Seixal), outro na Nazaré e o terceiro em Buarcos (Figueira da Foz).

Todos seriam extintos em fevereiro de 1938, com suspeitas de participação insidiosa na greve dos bacalhoeiros do ano anterior. As ações de protesto que se registaram em diversos meios piscatórios entre 1933 a 1937, em especial as greves dos sardinheiros de 1934 e 1935 e a "greve da matrícula" dos pescadores de bacalhau, apressaram o governo a declinar de vez qualquer solução de tipo sindical para os pescadores [...]

Federação Nacional para a Alegria no Trabalho (F.N.A.T.).
Costa da Caparica, aspecto do almoço dos trabalhadores dos Sindicatos Nacionais, 1937.
Arquivo Nacional Torre do Tombo

Apesar da discutível autenticidade da decantada obra social das pescas, conduzida por Henrique Tenreiro, esse edifício de propaganda e realidade exprimiu-se num vistoso programa de assistência à "gente do mar". Obra social que o regime sempre apresentou, em Portugal e no estrangeiro, como emblema de um desacreditado sistema corporativo.

Como se explica este paradoxo? E como se compreende que as Casas dos Pescadores tenham funcionado com severas limitações de autonomia associativa e, ainda assim, tenham concretizado uma obra de assistência e previdência muito saliente no sistema corporativo português? [...]

Bairro piscatório da Caparica, comandante Tenreiro e dr. Pimenta da Gama, 1938.
Arquivo Nacional Torre do Tombo

Por finais de 1936 Salazar remetera à Assembleia Nacional a proposta de lei sobre o regime jurídico das futuras Casas dos Pescadores. O conteúdo pouco se afastava do texto final que seria vertido na Lei n.º 1953, de 11 de março do ano seguinte. A proposta de lei começava por sublinhar o perfil e a vocação originais das Casas dos Pescadores: organismos de previdência destinados a garantir o seguro corporativo contra acidentes de trabalho, bem como a assistência material, moral e religiosa.

No plano da assistência, a formulação era menos concreta e ainda mais doutrinária: "As Casas dos Pescadores têm por dever conservar e acarinhar todos os usos e tradições locais, especialmente os de natureza espiritual, que estejam ligados à formação dos sentimentos e virtudes da gente do mar" [...]

Costa da Caparica, O padre Baltasar pregando à multidão na praia da Costa da Caparica, 1937.
Arquivo Nacional Torre do Tombo

A 23 de fevereiro de 1938 foram concedidos alvarás autorizando a criação e funcionamento das Casas dos Pescadores de Buarcos (capitania do porto da Figueira da Foz), de Aveiro e da Nazaré. Como sabemos, fora precisamente em Buarcos e na Nazaré que o governo consentira a criação de sindicatos de pescadores, que agora extinguia para pôr em seu lugar organismos corporativos de cooperação social [...]

Conduzida pela respetiva Junta Central, a implantação da rede de Casas dos Pescadores depressa atingiu as principais localidades costeiras do continente e os centros de pesca das ilhas adjacentes. Em 1946, já funcionavam 24 Casas, além das secções do Seixal, Caparica e Ericeira [...] (1)


(1) Álvaro Garrido, Assistência e Previdência no mar português A ação social das Casas dos Pescadores (1933-1968)

Leitura relacionada:
Patrícia Silva, Rui Ramos, Comunidades piscatórias...

domingo, 9 de dezembro de 2018

Costa da Caparica, ponta seca por Anne Marie Jauss

Anne Marie Jauss, filha de dois pintores, Georg Jauss e Caroline Jauss, nasce em Munique em 3 de fevereiro de 1902. Estuda em Munich, Merano e Stuttgart, e depois na Escola Estatal de Artes Aplicadas de Munich.

Costa da Caparica por Anne Marie Jauss.
Panorama n.º 11, Outubro 1942

Anne Marie torna-se pintora e é notada na sua cidade natal e em Berlim, mas, em 1932, temendo o regime nazi, emigra para Portugal, onde permanece catorze anos. Vive em Lisboa e arredores, ganha a vida como pintora, ilustradora, arquiteta de interiores, designer e artista de cerâmica.

Costa da Caparica, vista da Quinta de Santo António e da Mata Florestal, tomada do Alto do Robalo, década de 1930.

Em 1946, ela vai para Nova York e depois para Nova Jersey, onde constroi uma casa em 1962 e onde vive até ao fim  dos seus dias.

A Praia do Sol, Panorama dos Capuchos, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 107, década de 1930.
Delcampe, Bosspostcard

Anne Marie ilustrou mais de setenta livros, principalmente livros infantis. Um deles, "A Pastagem", de sua autoria, ganhou um prêmio.

Costa da Caparica, Miradouro dos Capuchos e Caparica, ed. Passaporte, 39, década de 1950.
Delcampe, Oliveira

Anne Marie Jauss morreu em 13 de setembro de 1991, em Milford, New Jersey, aos oitenta e nove anos. (1)

Lisboa, Anne Marie Jauss.
Panorama n.º 28, 1946


(1) Terence E. Hanley

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

O padre Mathias (não Matheus...) da Sobreda

Por escrupulosa prudencia deixámos de publicar no passado número o que na vespera acontecêra com o façanhoso Padre Mathias (Matheus lhe chamam erradamente os impressos e o povo) e de que já hoje vai cheia toda a cidade.

António Feliciano de Castilho director da Revista Universal Lisbonense (1841-1845)

O nosso artigo que já estava composto era em todas suas partes exactissimo: como porém grave, e de escandalo, fôsse o seu assumpto e as provas, hoje superabundantemente accumuladas, ainda então não existissem, entendemos que se no callar totalmente o facto desfalcavamos a nossa folha, no amadurecel-o para a publicidade nos desempenhavamos de um dos principaes deveres de jornalistas.

Revista Universal Lisbonense

Sahimos tardios com a notícia, compensaremos esse desar com a brevidade da narração.

Na manhã de 11 d’este Maio, aparelhava-se, para dizer missa na freguezia da Encarnação o Padre Mathias Antonio. Havia quatro mezes que elle ahi exercitava essa e outras funcções do sacerdocio com venia e boa paz do Reverendo Prior, a quem para esse fim exhibira uma licença assignada pelo Em.mo Patriarcha D. Patricio. Alguns Padres d’aquella e das visinhas Parochias o tractavam como a bom collega; e os fieis o haviam em conta de mui digno do oficio, que muito curiosamente preenchia, de prégador e confessor. 

Lisboa, Liga Naval e Egreja da Encarnação, Faustino António Martins s/n,  c. 1900.
Delcampe

Testimunhas porém, em segredo convocadas por uma denúncia dada contra elle, entram com o Regedor da Parochia pela Sacristia, e afirmam em sua presença reconhecerem-n'o por leigo. Mathias os combate, primeiro com o escarneo, depois com as injurias; mas o contradictorio de algumas de suas coarctadas, e sobre tudo a perturbação de animo, que vislumbra por todas suas feições e gestos, corroboram a accusação. 

O Regedor requer do accusado a apresentação de titulos, que o abonem de sacerdote; elle lheresponde que os tem em sua casa: partem ambos para lá, mas quasi chegados á porta lhe diz — que esses papeis de repente lhe lembra que param na Secretaria d'Estado com um requerimento em que anda para certa Igreja: — o Regedor lhe dá a voz de preso. — Levado perante o Administrador do 4.° Julgado presiste denodadamente na sua afirmativa: chega até como quer que seja a proval-a com testimunhos, um vocal, outro escripto, de pessoas respeitaveis.

Biblioteca Nacional de Portugal
Confuso o magistrado com a promptidão e naturalidade com que o accusado solve dúvidas e rebate argumentos; mas não ainda interiormente convencido, remette-o prêso para o chefe espiritual do districto; afim de que pela camara ecclesiastica se possam haver as necessarias informações. — Mathias se dissera religioso dos eremitas descalços do convento da Sobrêda; ... nos assentos do archivo lá se encontra Mathias religioso dos eremitas descalços do convento da Sobreda.

Dissera haver sido cura na freguezia da Gollegãa; ... o registo da carta, em que se lhe esse beneficio conferia, não menos apparece. — O Prelado receando, como varão prudente e virtuoso, o vêr exposto um innocente á vergonha, e um presbitero á prisão e rigores da justiça, intercede com a auctoridade, para que sem prejuizo de ulteriores indagações, deixe pernoitar, solto, em sua casa o accusado, que prometera provar no dia seguinte por confrades seus da Sobreda a veracidade da sua, em apparencia mui ingenua, deposição.

Nessa noite o administrador, que promptamente se rendeu aos desejos do Sr. Patriarcha, manda a casa do enigmatico personagem: — encontram-no serenamente adormecido: — este somno acaba quasi de completar a prova de sua innocencia. No dia seguinte Mathias e os seus poucos teres haviam desapparecido. — No Campo de Santa Anna foi visto vender a um adello alguns objectos: — de tarde atravessar o Paço do Lumiar em companhia de uma mulher e dirigir-se pelo caminho de Carnide. 


Lisbonne, Ports de Mer d'Europe, Deroy, Turgis Jne, c. 1840.
Frame

Para toda a parte se expediram de repente ordens contra ellle de prisão com os signaes da pessoa declarados. — Idade uns 44 annos; altura ordinaria; rosto comprido e secco; olhos grandes e azues; nariz regular; cabello preto ondeado; barba preta e cerrada; e todo elle de proporções seccas. 

Emquanto viaja; e algum dos mil braços da justiça o não empolga; digamos a nossos leitores o que a seu respeito se tem podido averiguar.—Mathias Antonio, de obscura geração e filho de um pedreiro, foi pedreiro; miliciano; soldado de cavallaria um; de infanteria um; de provisorios; pintor; ferro-velho; e sombreireiro! — de tudo ha documentos. — Não contente com esta encyclopedia profana de artes e officios, ordenou-se a si mesmo: — foi cura; capellão em varias casas e freguezias, no que se houve com tanta actividade, que muitos dias passavam de tres as suas missas — uma na estrada da Charneca — outra na Encarnação — outra na rua Formosa — outra em Santa Izabel etc.

Rua do Século (antiga Rua Formosa), Lisboa Velha de Roque Gameiro.
roquegameiro.org

Foi pregador e de fama; confessor e bem afreguezado; acompanhador de enterros etc. Finalmente, desejoso de que nenhuma cousa lhe ficasse por experimentar; e cubiçando reunir em si o mais possível de sacramentos — casou — enviuvou; — tornou a casar; e tornou ainda a casar com terceira mulher, tendo viva a segunda: — deixou as duas por uma quarta, com quem não casou: — e parece, que já não foi com a mesma quarta que desappareceu.

Ouvimos que a um dos soldados, que o escoltaram nos seus trabalhos do dia 11, dissera elle; — sou padre e hei-de proval-o; mas que o não fosse, que tinha ninguem com isso? — ou temos liberdade, ou a não temos; se a temos, deixem exercer a cada um a industria que bem lhe parece!

Assim se abusa das duas mais sanctas cousas do mundo — da Liberdade, que humanisa a Religião — da Religião, que sanctifica a Liberdade!! (1)


(1) Um padre feito à pressa, Revista Universal Lisbonense n° 33, 19 de maio de 1842

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Convento de Nossa Senhora da Assunção dos Eremitas Descalços de Santo Agostinho

A Santa Reforma de Agostinhos Descalços principiou neste Reino em 2 de Abril de 1663, cuja intro-ducçaõ teve origem na religiosa piedade da Serenissima Senhora D. Luiza, Rainha de Portugal, Mulher d'El-Rei D. João IV. a qual desejando retirar-se do Seculo, e fundar semelhante Reforma, communicou este seu pensamento com o seu Confessor o insigne Fr. Manoel Poeiros, Religioso neste tempo de Nossa Senhora da Graça, o qual naõ sómente lhe approvou aquelle santo projecto, mas lhe persuadiu, que para a subsistencia do tal Mosteiro se lhe fazia preciso haver outro de Religiosos da mesma Ordem.

Retrato Luisa Francisca of Guzmán and Medina Sidonia (1613-1666), atríbuido a Alonso Cano, c. 1630-1635.
Revista Goya

Este conselho adinittio a Serenissima Rainha, e fazendo-o pôr em execuçaô, foi o dito Confessor o primeiro, que com licença do Geral da Ordem vestio o habito da Reforma, e se chamou Fr. Manoel da Conceiçaõ.

Hathi Trust Digital Library
Com elle lambem vestira o mesmo habito cinco Religiosos do mesmo Convento de Nossa Senhora da Graça, insignes em letras, e em virtudes. Fez-se esta funcçaõ em dia de Nossa Senhora dos Prazeres na Ermida de D. Gastaõ Coutinho, onde se descalçáraõ, e tomáraõ posse do Convento chamado do Monte Olivete no sitio do Grillo, huma legoa de Lisboa, que a sobredita Rainha tinha mandado edificar para os novos Religiosos.

O respeito, e grande veneraçaõ , que todos tributavaô a esta admiravel Princeza, fez assustar, e impedir algumas objecções que se levantavaõ contra esta Reforma, a qual desde entaõ continúa com grande augmento, e exemplo, confirmando-lhe o Papa Clemente X, no anno de 1675 todos os seus Conventos.

Daõ estes Religiosos obediencia a hum Vigario Geral, que totalmente os governa , e gozaõ dos mesmos privilegies, e indultos que os Summos Pontifices concedêraõ aos Eremitas de Santo Agostinho. Consta dos seguintes Conventos de Religiosos [ler mais...] (1)

O Convento da Sobreda [Quinta da Tourada] foi doado por Fernão Castilho de Mendonça aos Agostinhos Descalços , [que devido à sua idade avançada lhe fora recusado professar mas"com obrigação de o sepultarem na capela-mor do dito convento no carneiro que está nela feito"] por escritura de 19 de Julho de 1668, não pedindo aquele que na fábrica do convento houvesse memória sua, nem escudo de armas, nem que nela se colocasse o seu nome, apenas pediu que se rezasse por ele uma missa quotidiana.

A topographical chart of the entrance of the river Tagus (detalhe), W. Chapman, 1806.
Biblioteca Nacional de Portugal

No dia 20 os padres tomaram posse do mesmo e no dia 21 nele rezaram a primeira missa, encontrando, nas palavras do cronista da Ordem, uma bela igreja quase terminada, dormitório com 12 celas já feitas, portaria, refeitório, antecoro, sacristia, e uma cerca contendo pomar, vinha, horta, água copiosa, e sete capelas dos sete principais passos da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, enfileirados na parede da cerca [...]

Carta chorographica dos terrenos em volta de Lisboa, 1814.
Biblioteca Nacional de Portugal

Já se achavam feitas imagens de vulto e estavam pagas as obras que faltavam, menos o claustro [...] Os vitrais da igreja eram pintados trazidos da Holanda [...] Tinha um altar privilegiado em 1780 [...] (2)

Tendo-se ja noticiado ao publico, no supplemento deste Diarío N.° 110, que havendo por bem Sua Maggestade, conformar-se com o parecer da junta do Exame do estado actual, e melhoramento temporais das Ordens Regulares, sobre a Suppreção, e extincção, que havião pedido o Vigario Geral e Definitorio da Congregação dos Religiosos Agostinhos Descalços, de alguns Conventos, e Hospicios da sua Ordem.

Lisbonne son port, ses rades et ses environs avec une petite carte routière du Portugal (detalhe), 1833.
Biblioteca Nacional de Portugal

O Prior do Convento de Nossa Senhora da Boa-hora no Bairo dc Belém, faz saber que tendo-se annexado ao dito Convento, o da Senhora d'Assumprão no sitio da Sobreda em Caparica, elle o pertende arrendar, ou aforar; e faz saber, que o dito Convento supprimido, tem bons comodos para qualquer familia , ainda que numeroga; tem boas terras dc vinha , excellentes parreiras e abundancia de arvores de caroço, e alguma de espinho, canas para arranjo das parreiras, e para vender, boa horta, dois grandes poços, cavallariça , lagar, e boa casa de adega quem o pertender arrendar , pode ir fallar com o dito Prior. (3)

A Sobreda (antigamente Suvereda) está ligada com a Charneca pelos terrenos de Vale Figueira.

Sobreda, Carta dos Arredores de Lisboa — 68 (detalhe), Corpo do Estado Maior, 1902.
IGeoE

Lugar solitário, assente sobre alguns outeiros, que lhe fornecem ao centro o caminho principal, desigual e pedregoso, que lhe circundam a parte baixa, a que chamavam no final do século passado [XVIII] Largo do Rio, em consequência da bica que em parte do ano ali corre e fornece água às lavadeiras, e do poço público que por volta de 1800 a 1830 no mesmo largo foi aberto a expensas de um cavaleiro daquele lugar, o Fidalguinho da Sobreda, Francisco de Paula Carneiro Zagalo e Melo. (4)


(1) Pedro Ignacio Tavares, Noticia historica das ordens religiosas e congregações que existem em Portugal : com huma collecçaõ geral de estampas que representaõ as mesmas ordens, e congregações e noticia da e'poca da sua intruducçaõ, ou creaçaõ nestes reinos, a invocaçaõ, situaçaõ, e anno da fundaçaõ seus mosteiros e conventos. , Lisboa, Na tipografia de Bulhões, anno 1831.
(2) Rui Manuel Mesquita Mendes, Fenómenos de religiosidade popular na Caparica
(3) Diário do governo, 14 de maio de 1821
(4) Duarte Joaquim Vieira Júnior, Villa e termo de Almada: apontamentos antigos e modernos para a história do concelho, Typographia Lucas, Lisboa, 1896

Outra informação:
Crónica Constitucional de Lisboa, quinta-feira, 24 de outubro de 1833
Francisco Silva
Solar dos Zagallos, a Space of Memory and Creativity on the South Bank
Tomáz Zagalo e Melo
António Piano

domingo, 2 de dezembro de 2018

Ruinas da egreja do convento de Nos­sa Senhora da Rosa, em Caparica

O histórico Convento da Senhora da Rosa cerca do Monte de Caparica fundado em 1410 por Mendo Gomes de Seabra e cujos restos acabam de ser demolidos. Diz a tradição que na egreja d'este convento fôra sepultada em 1538 a formosíssima  infanta D. Beatriz [(1504-1538), de facto D. Beatriz fora inumada na catedral Sainte-Marie de Cimiez, arrasada em 1706], filha de D. Manuel, mulher de Carlos III, duque de Sabóia, e mãe do célebre general Manuel Felisberto, o vencedor da batalha de S. Quintino. (1)

Convento da Senhora da Rosa cerca do Monte de Caparica.
Ilustração Portugueza, 24 de novembro de 1913

O Mosteiro de Nossa Senhora da Rosa de Caparica era masculino, e pertencia à Ordem dos Eremitas de São Paulo, Primeiro Eremita. Teve origem em eremitério fundado possivelmente ainda no séc. XIV ou nos primeiros anos da centúria seguinte, no lugar dito da Barriga, no termo de Almada, referido também, noutros documentos do séc. XV, por Cela Nova.

Conforme testemunho do regedor da casa em 1445, o lugar, habitado desde a sua fundação por pobres eremitas, fora reformado por Mendo Seabra (1442?), com a ajuda dos reis D. João I e D. Duarte e do Infante D. João, mestre de Santiago. Sujeitando-o então à Serra de Ossa, nomeou o clérigo João Eanes como regedor deste eremitério e dos de Alferrara e Mendoliva, e nele colocou outros pobres.

Em 1458, pela bula "Speciali gratia", Pio II concedia-lhes a isenção do pagamento da dízima sobre os frutos das herdades da provença.

Em 1466, consta da lista das casas sujeitas à Serra de Ossa. A partir do primeiro quartel do séc. XVI, a casa já surge referida como de Santa Maria da Rosa. A este cenóbio seriam anexados, em 1645, os bens do extinto mosteiro da Junqueira.

Em 1834, no âmbito da "Reforma geral eclesiástica" empreendida pelo Ministro e Secretário de Estado, Joaquim António de Aguiar, executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837), pelo Decreto de 30 de Maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas, ficando as de religiosas, sujeitas aos respectivos bispos, até à morte da última freira, data do encerramento definitivo. Os bens foram incorporados nos Próprios da Fazenda Nacional.

Manuel Pinheiro Chagas, História de Portugal, popular e ilustrada, Volume 3
cf. Roque Gameiro.org

Em 1883, 9 de Maio, foram transferidos os documentos do cartório da Repartição de Fazenda do Distrito de Lisboa, para o Arquivo da Torre do Tombo, no cumprimento da Portaria do Ministério da Fazenda, de 20 de Março de 1865. (2)


(1) Ilustração Portugueza, 24 de novembro de 1913
(2) Arquivo Nacional Torre do Tombo

Artigo relacionado:
Cella Nova, Senhora da Rosa de Caparica

Mais informação:
Chronica dos Erémitas da Serra de Ossa, no reyno de Portugal...
Santuario Mariano e Historia das Imagēs milagrosas de Nossa Senhora...
Chorographia moderna do reino de Portugal...
Corografia Portugueza e descripçam topografica...
Portugal antigo e moderno...

Informação relacionada:
Histórias da História da Charneca de Caparica
Mosteiro da Rosa na revista ARTIS

sábado, 1 de dezembro de 2018

Bulhão Pato, retratado por José Campas

Enquanto estivemos no Lazareto, eu frequentava muito a casa do Tio Pato. Foi sempre muito meu amigo e dava-me o grande prazer de falar comigo em muitos assuntos. Eram horas muito agradáveis para mim as que ficava na sua tão bondosa e inteligente companhia [...]

Retrato de Bulhão Pato (Caparica), José Campas, 1908.
Ilustração Portugueza 27 de abril de 1908

Um dia, convidou o Dr. Afonso Costa para o ir visitar. Ele e seu irmão, foram almoçar comigo à minha Escola, no Lazareto e depois fomos a casa de Bulhão Pato. O Tio Pato ficou muito contente, falaram bastante do presente, do passado, do futuro.

Retratos de Bulhão Pato e Isabel Pato (Caparica), José Campas, 1908.

Do passado lembrou o Tio Pato, a Sogra de Afonso Costa, que também se recordava muito de factos passados na sua mocidade em que o Tio Pato era admirado.

Último retrato de Bulhão Pato, José Campas.
Ilustração Portugueza, 10 de março de 1913

À saída tirámos um retrato que deve estar na minha mala ou na pequena caixa de madeira existente em casa de meu Filho Nuno. Nessa fotografia estavam: o irmão do meu apaixonado e uma Mulher, ele, e o Afonso Costa, seu irmão, eu e mais pessoas, conhecidas ou não, que na rua se juntaram. [...] (1)


(1) Ilda Jorge de Bulhão Pato, Pedaços da minha vida – narrados desde 11 de Fevereiro a 19 de Abril de 1971 cf. Maria Manuela de Moura Pereira, As escolas maternais de Ilda Jorge de Bulhão Pato

Artigo relacionado:
Retratos de Bulhão Pato

Mais informação:
Exposição José Campas (Obra publicada por ocasião da exposição patente no Salão Bobone, Lisboa, de 16 a 31 janeiro de 1929; tem uma relação de museus, galerias e colecções que possuem obras do artista)


José de Sousa Ferreira Campas.
Pintor, natural de Lisboa, nasceu a 14/06/1888 e faleceu a 04/01/1971.
Tirou o Curso de Pintura na Escola de Belas-Artes de Lisboa, obtendo o Prémio Anunciação em 1905-1906. Estagiou em Paris, onde expôs com êxito de 1918 a 1922.
Foi discípulo de Carlos Reis, Jean Paul Laurens, Léon Bonnat, Raphael Collin e J J Duval.
Com os seus quadros recebeu honrosos galardões, como a 1ª medalha em pintura na Sociedade Nacional de Belas-Artes, estando representado no Museu Nacional de Arte Contemporânea [???].
Publicou na imprensa portuguesa valiosos artigos de crítica de arte e polémica, especialmente em "A Voz", tendo sido delegado do Governo Português na Exposição Internacional de Paris, em 1935.
Foi Professor do Ensino Técnico, tendo sido Director das Escolas Técnicas de Lagos e de Abrantes, e emérito restaurador de quadros antigos.
Executou obras apreciáveis tanto de figura como de paisagem [...]
cf. Quem É Quem, Portugueses Célebres, Círculo de Leitores, 2008

domingo, 25 de novembro de 2018

Restos do Convento e egreja dos Capuchos em Caparica

Fora fundado em 1564 por D. Lourenço Pires de Tavora, quarto senhor de Caparica, o convento de capuchos arrabidos, cujas ruinas a nossa gravura reproduz.

Roque Gameiro.org

Na egreja d'este convento está o túmulo do seu fundador, que falleceu a 15 de fevereiro de 1573. D. Lourenço Pires de Tavora fora embaixador de Portugal em Hespanha, sendo imperador Carlos V.

Caparica é povoação situada em frente de Lisboa, na margem esquerda do Tejo. É de fundação muito an­tiga, dando-se ao nome que ella tem, de Caparica, duas tradições muito curiosas, segundo refere Pinho Leal, no seu Portugal antigo e moderno.

Uns dizem que morrendo aqui um velho, declarou no testamento que deixava a sua capa para ser vendida e com o producto da venda se fazer uma capella a Nossa Senhora do Monte. Fez isto rir bastante; mas, sabidas as contas, a boa da capa estava recheiada de bellos dobrões de ouro, que chegaram de sobra para a fundação da capella.

A segunda versão é que, sen­do a Senhora do Monte de muita devoção para estes povos e limitrophes, concorreram todos para se lhe fazer uma esplendida capa, pelo que a Senhora ficou d'ahi em deante sendo conhecida por Nossa Senhora da Capa Rica. (1)


(1) Manuel Pinheiro Chagas, História de Portugal, popular e ilustrada, Volume 4,
cf. Roque Gameiro.org


Artigos relacionados:
Quinta Távora e Mosteiro da deceda
A Costa romântica de Bulhão Pato
Freguesia de Caparica no século XIX

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Costa da Caparica (alguma iconografia perdida e dispersa na fotografia e no cinema)

... vê-se novamente a praia do Estoril, à qual se volta todos os anos, mas também a da Figueira da Foz com banhistas em poses com os novos fato-de-banho e sombrinhas, a praia da Costa da Caparica e outras não identificadas (v. O Notícias Ilustrado, Série II, n.º 69, Lisboa, 6 de Outubro de 1929) [...]

O Notícias ilustrado Série II n.° 374, Lisboa,  8 de setembro de 1929.

A sul do Tejo, a Costa da Caparica, foi fotografada pela sua paisagem por João Martins, numa das suas primeiras colaborações para a revista (v. O Notícias Ilustrado, Série II, n.º 205, Lisboa, 15 de Maio de 1932) [...]

Costa da Caparica, Entrando no mar, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, cliché João Martins, década de 1930.
Delcampe

No interior via-se a "Caparica moderna" em mais uma fotorreportagem de Raimundo Vaissier que fotografa as raparigas de "pijama longo" e o "descanso depois do farnel" (v. O Notícias Ilustrado, Série II, n.º 219, 21 de Agosto de 1932) [...]

"Praia do Sol" na Costa da Caparica, com banhistas, pavilhão, miúdos, barca (v. O Notícias Ilustrado, Série II, n.º 272, Lisboa, 27 de Agosto de 1933) [...]

O Verão de 1935 é inaugurado com uma fotografia de raparigas de fato-de-banho na capa da revista. Seguem-se as habituais fotorreportagens sobre o Estoril, este ano fotografado por Raimundo Vaissier, a Costa da Caparica (v. O Notícias Ilustrado, Série II, n.º 374, Lisboa, 11 de Agosto de 1935) [...] (1)

Caparica
O Notícias ilustrado Série II n.° 374, Lisboa, 11 de Agosto de 1935.

Costa da Caparica (1929) Doc. p/b 35 mm; 
A Praia da Caparica (1931) Doc. p/b 35 mm; 
Caparica, Praia do Sol (1938) Doc. p/b 35 mm Perdigão Queiroga. (2)

Na Praia da Trafaria (1908) p/b 35 mm. (3)

Excerto do filme Almada - Varanda do Tejo (cor, 35 mm), Ricardo Malheiro, 1967.
Cinemateca Digital

Almada - Varanda do Tejo (1967), Ricardo Malheiro;
Do Outro Lado do Mundo - Almada (1971) cor 35 mm António de Macedo. (4)


(1) Portugal (1928-1968) : Um Filme de J. Leitão de Barros
(2) CINEPT (pesquisa: caparica)
(3) CINEPT (pesquisa: trafaria)
(4) CINEPT (pesquisa: almada)

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Marquesa de Alorna na Costa de Caparica

Minha Avó residia, de verão, em Almada, na antiga casa de meus Avós. Um dia recebi uma carta sua, para a ir alli ver e combinarmos conto haviamos de festejar os annos de sua filha D. Henriqueta, nos primeiros dias do mez de Julho.

Almada, vista sul, Joaquim Possidónio Narcizo da Silva, 1862.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Chegando a Almada, com meu irmão, não encontrámos nossa Avó nem parentes, que nos tinham deixado recado para irmos á Costa, onde estavam em uma grande pescaria. 

Traseiras em ruínas do palácio dos marqueses da Fronteira, espólio Cassiano Branco.
Arquivo Municipal de Lisboa

A digressão era longa e não a julgámos muito divertida; comtudo, estava proximo o anniversario que queríamos festejar e nós não queriamos concorrer para que se frustrassem os projectos da nossa respeitável Avó. 

Minha Avó, que, como tenho dito, era um pouco persistente nos seus principios, tinha teimado em ir no seu paquebote, com o seu velho cocheiro e libré da antiga casa de Alorna. 

Leonor de Almeida Portugal,
4.a Marquesa de Alorna, 8.a Condessa deAssumar (1750-1839).
Wikipedia

A equipagem e a parelha eram tão velhas como a dona e o cocheiro, o caminho arenoso e impraticável para qualquer equipagem; e, tendo nós alugado cavalgaduras e partido, a todo o galope, para a Costa, encontrámos no caminho umas mulheres que nos perguntaram se eramos os meninos da Senhora Condessa d'Oyenhausen e, sabendo que sim, nos disseram que a nossa Avó e Avô estavam enterrados na areia, a pouca distancia d'ellas, e que os machos estavam quasi mortos. 

Quadro, atribuído a Domingos de Sequeira ou a Pellegrini, representando os três irmãos ainda crianças:
D. José Trazimundo, sétimo Marquês de Fronteira, D. Leonor Mascarenhas, Condessa de Alva
e General Dom Carlos de Mascarenhas.
Arquivo Municipal de Lisboa

Accelerámos o passo, intrigados, sem sabermos quem era o nosso novo avô, e achámos o velho cocheiro, desamparado ao pé da carruagem e da parelha, rogando mil pragas a sua ama, declarando que nunca mais havia de servir poetas e dizendo-nos que o rancho das nossas tias se tinha adeantado, ficando minha Avó com Monsenhor Cherubini, que era quem as mulheres annunciaram por meu Avô, os quaes tinham seguido, montados em mulas de moleiro, acompanhados pelo moço da trazeira. 

Seguimos o caminho e, pouco adeante, encontrámos a caravana, dirigida por nossa boa Avó, montada em uma das taes mulas, tendo posto por cima da touca e cabelleira loura um grande chapeu de palha que lhe havia emprestado um pescador da Costa, por causa do grande calor, e conseguindo resolver o seu companheiro a fazer o mesmo, pondo sobre a calva empoada um chapeu semelhante.

Configuraçao do terreno comprehendido entre o pontal de Cacilhas e a praya da Costa, 1810.

Monsenhor ia de casaca á romana e meias encarnadas e o moleiro levava-lhe na mão o chapeu pelos cantos. O velho moço da trazeira seguia a caravana, cansadíssimo e de pessimo humor, e Monsenhor, perdido de riso, exclamava, apontando para minha Avó: Que caricatura! que graça! que espirito! que talento!

Costa da Caparica, brasão e coroa do Reino Unido de Portugal e Brasil antes colocados na "casa da coroa".
Caparica news

Assim chegámos á Costa, onde fomos recebidos pela outra parte do rancho, que se tinha adeantado, e o mestre de desenho, Luiz Thomé de Miranda, que era da partida, fez uma espécie de caricatura da entrada de minha Avó e de seu companheiro, Monsenhor Cherubini, a qual muito sinto ter perdido.  (1)


(1) Memórias do marquês de Fronteira e d'Alorna D. José Trazimundo Mascarenhas Barreto... 1861

Artigo relacionado:
Alcipe

Leitura relacionada:
A Costa da Caparica de Luísa Costa Gomes

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

O Casal da Encosta.

Sobre o viso do monte, e dominando o val,
Alveja o casalito, ao rez d'um pinheiral.
Quando coube em partilha ao dono que o cultiva,
Era tudo um sarçal; mas tinha agua nativa,
E terreno também de boa condição.

Vista de Caparica, tomada dos Capuchos.
Delcampe, Bosspostcard

O dono, inda rapaz, um fero latagão,
Deitou-se a trabalhar, e não largava a enxada
Desde que o, sol rompia á noite já cerrada.

Pouco depois casou. A sua companheira
Não lhe ficava atraz como mulher fragueira.

N'um casal solitário, embora o passaredo,
Logo pela manhã, chilreie no arvoredo,
É precisa outra voz, a voz duma creanca!

Nasceu-lhes uma filha. inda com mais pujança
O pae lidava só no seu torrão estreito:
A mãe trazia agora a creancita ao peito.

*
*     *

Tinha bom lançamento a nova bacellada —
Era o grande remédio! — o pão não deixa nada.
Mas pôr vinha de manta em chão barroso e duro,
E canceira cruel ! Co'a mira no futuro.
Com os olhos na filha, e trabalho inaudito,
Logrou tornar rendoso o breve casalito.

A Praia do Sol, Uma vista parcial, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 108, década de 1930.
Delcampe

Foi crescendo a pequena. Houve uns annos seguidos 
De colheita feraz; os vinhos bem vendidos. 
O parco lavrador, fazendo economias, 
Sonhava no porvir mais descançados dias!

Sonhar, sonhar, sonhar!... Não ha senão sonhar 
Co'as coisas ideaes! — a peste é o despertar! — 
Sonha o bronze também, saudando os desposados: 
Acorda! e dobra... E dobra o dobre dos finados!

*
*     *

Veiu um dia nublado, e ao mesmo tempo quente.
Aquillo foi um raio! — O míldio de repente.
Como a chamma voraz, lavrou ! Tudo queimado ;
Parra e cachito em flor! Um anno desgraçado !

Costa da Caparica, Terras da Costa e Cabo Espichel, ed. Passaporte, 7, década de 1950.
Delcampe

Ao míldio succedeu, raivando, o phylloxera,
E arrazou-lhe o vinhedo, aquella besta fera!

Ha dois dias passei pelo Casal da Encosta.
A tarde era um encanto! O mar quedo na Costa!
Na soleira da porta, avisto o lavrador,
Sentado e taciturno. —  Então, ó Salvador?...
— Isto, agora, o remédio é deitar mão á enxada;
Mas o trabalho falta, e não fazemos nada!

Apertou a cabeça entre os punhos cerrados.
Co'as lagrimas no peito — irmãs dos desgraçados!

A um lado da lareira, apagada e sombria,
A mulher, a cantar, a filha adormecia!

Que singular poder tinha o mavioso canto...
Era alegre a canção, porém a voz um pranto!

Maio, 1896.


(1) Bulhão Pato, Livro do Monte, Lisboa, Typographia da Academia, 1896

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

O retiro de um velho romântico

Em dezembro de 1898, tendo sido nomeado medico do Partido Municipal de Almada, em Caparica, fui levado ao Monte por D. João da Camara e Lopes de Mendonça, que me apresentaram a Bulhão Pato. 

Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima.
Arquivo Municipal de Lisboa

O velho poeta vivia numa casita modesta, com um mobiliário simples, quasi pobre, em que uma antiga commoda marchetada e um toucador Império lembravam uma passada prosperidade familiar. 

O typo já eu o conhecia: era, no gesto, na dicção, na voz arrastada e grave com profundos finaes melodramáticos, o personagem que Eça de Queiroz compôs nos Maias, e digo compôs porque depois de conversado e convivido. Bulhão Pato afastava-se da celebre caricatura do celebre romance por uma vivacidade mental, uma penetração de espirito e até por uma observação aguda, por vezes resumidas em ditos scintillantes, alguns dos quaes ficaram na tradição como lapidares. 

Como era muito assomado de gênio, herança da impetuosidade romantica toda feita de gestos heroicos e braços cruzados de desafio, as suas inesperadas saídas tinham a fúria de estocadas súbitas que marcavam a presa com um sinete de galés. 

"Se o assanham, tem duas farpas na lingua", dizia Camillo. 

Pena é que esses botes sejam no maior numero dos casos do domínio das cryptineas, como alguns que lhe ouvi, preciosos pelo realismo desbragado mas perfeito, que chegavam pela sua eloquencia a dar relevo burlesco a certos personagens.

Animado desde a infancia, por isso vaidoso da aureola que lhe puseram desde muito moço, bonito rapaz como ainda se vê, na idade já madura, do bello retrato de Lupi, passou uma primavera na casa que Alexandre Herculano habitava na Ajuda, casa que ainda existe proximo do paço real.

Raimundo Bulhão Pato, Miguel Angelo Lupi, c. 1880
ComJeitoeArte

Entrando logo na intimidade e no culto do grande historiador, era então companheiro de Garrett, ali hospede também, que aggregou o jovem poeta á sua vida noctambula de mundanismo elegante, pelos aristocráticos salões de então. 

Regressavam á Ajuda fora de horas, e tão fora de horas que Herculano resolveu-se a mandar fazer uma chave da porta, que lhes entregou, para que o criado não ficasse até de madrugada á espera do autor illustre do Frei Luís de Sousa e do novel versejador do Se coras não conto. 

Passos Manuel, Almeida Garrett, Alexandre Herculano e José Estevão, por Columbano, 1921.
Sala dos Passos perdidos do Parlamento.
Wikipédia

E' que Herculano deitava-se invariavelmente ás onze horas ("deita-te ás onze, que não és de bronze", dizia), adormecia logo que punha a cabeça no travesseiro e era de um somno só. 

Esta existencia na Ajuda, que Pato recorda nas suas Memórias, apresentava outros aspectos menos austeros, de uma jovialidade expansiva, que tiravam ao tradicional Herculano de sobrancelha carregada essa mascara de lenda para lhe afivelar outra, de uma expansão alacre, quando ouvia aos rapazes certas historias que Bulhão Pato classificava de fescenninas. 

Assim, o autor da Historia de Portugal. que os retratos dão sempre de catadura severa, gostava immenso de anecdotas frescas, e quando alguém lhe dizia; 

— "o mestre já conhece esta"

— Herculano esfregava as mãos e dizia:

— "conte, conte, as experimentadas são as melhores."

Foi assim que certo dia, ouvindo José Estevão rematar a descripção de uma recita de gala em São Carlos com um commentario de desbragada representação rabelaisiana, caiu literalmente no chão ás gargalhadas. 

Bulhão Pato era um espirito profundamente liberal, patuléa na sua mocidade, e que um dia foi barbaramente aggredido por um grupo de cartistas no alto da calçada da Ajuda, com a aggravante de estar a namorar para uma sacada a filha do celebre ceramista Cifka.

— "Mas dias depois, no Martinho do gelo, vinguei-me. Moi-os!"

— Esta rapariga, Mary Cifka, era protestante, e Pato tinha de freqüentar a capella deste rito para a ver. 

Duma vez, estava um clergiman a fazer uma predica no meio de um grande silencio e entra no recinto um homem, typo de velho embarcadiço, olho azul, barba de passa-piolho, mas as bochechas muito escanhoadas. 

Olhou em todos os sentidos, fitou o pregador, escutou, e momentos depois toca no cotovelo de Bulhão Pato e diz-lhe em tom de poucos amigos: 

— "Você não me saberá dizer o que é que aquella besta está ali a ladrar ?"

— Pato saiu á pressa da igreja. Aos vinte annos, assignara o famoso manifesto contra a lei de imprensa de Costa Cabral, denominada já nesse tempo lei das rolhas. 

E quando, meio século depois, identico projecto foi apresentado ao Parlamento por João Franco, os liberaes foram-no buscar ao seu retiro do Monte para levar o protesto que foi por elle entregue ao presidente da Camara. 

Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima.
Arquivo Municipal de Lisboa

Dava-se um facto singular: os três homens que restavam em 1907 tendo assignado o protesto contra a lei cabralina, haviam-no feito, por acaso, a seguir e juntos: 

— Barbosa du Bocage, Almeida e Albuquerque, Bulhão Pato.

E é igualmente singular que morressem pela ordem por que vinham no documento.

A casita de Caparica era um retiro hospitaleiro e conservava as tradições de fina recepção, através do seu ar modesto e simples, em que Pato se afizera a viver nas grandes casas dalgumas das velhas e históricas familias portuguesas, que elle freqüentara em quasi todas as nossas províncias, como viajante incansavel que foi, lamentando apenas não ter conhecido Trás-os-Montes. 

Bulhão Pato no Monte de Caparica.
RTP Arquivos

Dahi, as figuras das suas Memorias, pintadas com as côres optimistas dessa época romantica, com abundancia de sentimento e ausência de cuidados, aos últimos clarões do patrimonio das conquistas que fazia a vida fácil e o temperamento optimista.

A rudeza economica era um vocabulario ainda desconhecido. 

Por isso as mulheres eram sempre cheias de paixão, de sacrifício, e tinham longos cabellos que se desgrenhavam dramaticamente; os homens eram valentes, bons cavalheiros, e vestiam com elegancia.

Se Bulhão Pato, em vez de fazer Memórias de recorte literário, com preoccupações acadêmicas, conta o que viu, sem diversões de estilo, na sua realidade brutal, teriamos alguns instantâneos illuminados ás vezes por uma luz de tragédia.

— "Estava eu, contava, com alguns rapazes á porta do Marrare do polimento (era no Chiado e chamavam-lhe assim para o distinguirem do Marrare das sete portas, na Baixa), todos sem vintém e revolvendo a imaginação para ver como achar uma solução á nossa penúria. 

Marrare de Polimento, gravura in A Semana, n.° 4, 1851.
Hemeroteca Digital

Nisto vemos descer o Chiado, pelo passeio fronteiro,.um sujeito nosso conhecido, amante e souteneur de uma senhora da sociedade. 

Ora acontecia que o filho dessa senhora era um dos nossos companheiros de miséria, o qual, destacando-se do grupo, atravessa a rua e dirige-se ao tal cavalheiro e segreda-lhe qualquer coisa. 

Este sorri, mette a mão no bolso e dá-lhe uma moeda. O moço regressa, sorridente também, e clama para os companheiros mostrando uma libra em oiro: 

— "O bom filho a casa torna..."

— Bulhão Pato, depois de me contar esta scena, travou-me do pulso, gesto muito seu, e dizime com os olhos brilhantes:

— "Você já o viu melhor em Shakespeare?"

Doutra vez contou-me que uma senhora muito da alta sociedade estava uma noite a passar por cima de um muro baixo, em Algés, uma cadeira para o amante poder passar. 

Nisto sente-se atrás agarrada pelos cabellos; era o marido. Surprehendida e attonita, grita num desespero: 

— "Traição!" 

— E' demoniaco!

Quando eu chegava a casa depois do giro clinico, era freqüente encontrar um bilhete de Bulhão Pato com estas concisas palavras: 

— "Venha! Temos pescada do alto."

— Porque a sua mesa era prova das suas tradições de cozinheiro insigne, gabando-se o poeta de ter mais orgulho com o êxito de um bom prato do que com a fama de um bom alexandrino; 

Eram celebres os seus jantares de caça, as perdizes, as gallinhas, as narcejas, e por esse tempo havia em Caparica um vinho branco que tinhá um gosto de pederneira, vinho já cantado por Gil Vicente e Camões:

Ceia não a papareis,
Comtudo por que não minta,
Em vez de ceia tereis,
Não Caparica mas tinta, 

E mil coisas que papeis.

Pato gostava que lhe gabassem as vitualhas, e quando os convivas mastigavam em silencio, não deixava de observar: 

— "Vocês comem, mas nem palavra." 

— Eu um dia respondi: 

— "A commoção embarga-me a voz!" 

— ao que outro replicou:

— "As grandes alegrias, como as grandes dores, são mudas...

Pato ria, porque gostava de ver os rapazes á sua mesa, ali indo D. João da Camara, o jornalista Urbano de Castro, mestre em trocadilhos, e eu lá levei Alexandre Braga, de cujo pae o poeta fôra amigo, Augusto Gil [v. Uma tarde no Monte], Manuel Monteiro.

Torre de Caparica, casa onde residiu Bulhão Pato, construção de finais do século XIX.

Um dia fui encontrá-lo com uma alegria infantil. Tinha quasi oitenta annos e ao ver-me gritou abrindo os braços: 

"Cacei hoje uma gallinhola!"

— E presidiu com carinho ao seu amanho, não deixando de preparar o raro acepipe da torrada.

Bulhão Pato viveu numa época má, na exhaustão deliquescente do romantismo, tendo já fechado o cyclo da sua carreira literaria quando se rasgavam os esplendorosos horizontes da poesia nova. 

Fez-se o paladino dos velhos moldes, manteve-se até tarde no subjectivismo sentimental que continuava a sentir que "o único rumor que se ouvia no Universo era o rumor das saias de Elvira".

Vista da Amora, Tomás da Anunciação, 1852
Imagem: MNAC (museu do Chiado)

Tentou libertar-se desse passado no Livro do Monte, de um bucolismo mais natural, onde se sentem perfumes junqueirianos, e não quis deixar de escrever uma derradeira satira á sociedade que se enxovalhara, com as quintilhas, de bella perfeição plastica, da "Dança Judenga".

Octogenário, lia Zola, que eu lhe levava, e proclamava-o, intelligentemente, um grande romântico.

Um dia contou-me uma scena melancólica com o nosso paisagista Annunciação.

Era no Aterro, e viu o velho pintor a chorar ante o pôr do sol, pouco depois de chegar de Paris, onde contemplara os novos processos da pintura e o golfão de naturalismo que inundava todas as paletas.

No cais do Tejo, Alfredo Keil, 1881.
Imagem: MNAC (museu do Chiado)

Bulhão Pato talvez sentisse analoga melancolia ante a sua arte que via aceite apenas com complacência. Mas não o confessou, porque, muito orgulhoso, o velho romântico nunca deixou de arvorar o panache. (1)

João Barreira (1)


(1) João Barreira, O retiro de um velho romântico

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Leitura relacionada:
Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896