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terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Migração de Pato bravo!

Descreveremos o episódio, que determinou a mudança da residência do poeta para o Monte de Caparica.

Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima.
Arquivo Municipal de Lisboa

Bulhão Pato, que sempre viveu modestamente, fora morar para uma casinha na Lapa. Antes de fechar o contracto, impoz ao senhorio a condição de nunca lhe aumentar a renda. Este aceitou a cláusula e concluiu:

— "Esteja V. Ex.a tranqüilo. O homem conhece-se pela palavra e o boi pelos c...".

Passados tempos, o senhorio escreveu ao poeta, e, invocando pretextos especiosos, avisou-o que lhe aumentava a renda.

Dias depois, dirigiu-se a casa do inquilino, a fim de saber a resposta.

— "A resposta, gritou Bulhão Pato lã de dentro e apoplético de cólera, a resposta é que, não podendo já conhecêl-o pela palavra, o fico conhecendo pelos c...".

Nas salas do romantismo, chamavam a Bulhão Pato — o Pato bravo... (1)


(1) Pinto de Carvalho, Lisboa de Outrora (vol. i)

Mais informação:
Alexandre Flores, Bulhão Pato e a sua mudança para a Outra Banda... para o Monte de Caparica...

Leitura relacionada:
Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896

Tema:
Bulhão Pato


quinta-feira, 17 de junho de 2021

Prosas do Monte

Logo com o romper do dia appareceu o nevoeiro. Em o mar reclamando, não nos bancos da Barra; mas nas arribas da Costa, com ruido constante, e que se assemelha ao parque d'artilheria rodando a distancia, é esperar pela "resposta" do nordeste. Não falha.

Retrato de Bulhão Pato por Columbano (detalhe), 1908.
MatrizNet

O vento parara completamente, e desde o nascer do sol o nevoeiro era cada vez mais denso. ]á 11 da manhã e não se via a dois metros.

Este anno as arvores principiaram a abrir muito cedo. Os paizagistas deviam apanhar o campo no primeiro balbuciar da primavera: tem o poder supremo e sobrehumano do crepusculo da adolescencia na mulher!

As cerejeiras mescladas de flor e de folhas, jogando. com os braços para o ar, tomam, algumas, a fórma de uma copa festonada e enorme. Variados, graciosos, encantadores quadrinhos! Os passaros não dobram o canto por agora; mas as cotovias matinaes, nas leiras de trigo temporão, andam aos pares. As andorinhas ha muito que se beijam voando, e o rouxinol, não tarda, no fechado dor pomares, a reclamar a amante.

O nordeste, annunciado pela bateria remota, começa correr. De subito rasga-se o véo sombrio do nevoeiro.

Trigaes das varzeas, silveiras dos vallados, vinhedos das encostas, alguns olmeiros aqui e além, tudo envolto por neblina transparente ern jubilo exuberante, parece pular da terra, como querendo fundir-se com o sol deslumbrador, que faisca na curva anil do firmamento purissimo!

Rompe a orchestra do tempo, — desespero dos contrapontistas — com as mesmas notas, as mesmas combinações, os mesmos motivos, e sempre nova, variada, original!

Não são as montanhas, as florestas, os valles, as cataratas, os promontorios, o mar com as tormentas!...

Retrato de Bulhão Pato por Columbano, 1908.
MatrizNet

São os assomos da primavera n'uma paizagem levemente ondeada; mas que imprevistos contrastes de harmonias, de luz e de côr! — As violetas, muradas, suspiram pela paixão sem macula; as rosas, provocadoras, mordem com os espinhos do ciume; os balsamos da aragem precipitam a circulação; a laranjeira, occultando na castidade branca das suas grinaldas o veneno do amor, seduz a virgem, a quem o bosque promete segredo e sombras; as papoulas, ebrias erguem a taça incendiada, convidando a lubricos combates; e a melros dissimulam, no madrigal improvisado, a satyra perfida!

O campanario do Monte repicou a casamento. Dois carros descobertos rodam em frente da minha janella. Regressam do adro da egreja. No trem, que segue adeante, a noiva, gesticulando alvoroçada, fala com o noivo, rapagão fero, mas acanhado.

Petulantes, como rebentam das cerejeiras os botões florentes, saltam da bocca vermelha e sensual da rapariga os primeiros beijos das nupcias.

Março 1897 (1)


(1) Bulhão Pato, Branco e Negro, semanário ilustrado n.° 91, dezembro 1897

Tema:
Bulhão Pato

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Sentinellas perdidas

Foram crescendo a par;
São irmãos, e do píncaro do monte,
Dominam, todo em circulo, o horisonte
Da Costa brava, e do sanhudo mar!


Sentinelas ou Guardas avançadas, Caparica, Falcão Trigoso, 1935.

Nas grandes invernias,
Sentinellas perdidas, dam signal —
Sempre alerta, n'aquellas serranias —
Ao remoto casal.
Nos silvos das frondeadas ramarias.
Que se approxima o furacão austral!


Junho, 96.


(1) Bulhão Pato, Livro do Monte, 1896

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

O Livro do Monte

Coisa feita para não ser lida — disse dos prefacios não sei quem. Cita-se o dito, e leem se os prefacios. É que ha prefacios e prefacios: ha os que não acabamos de lér, os que vemos apenas uma vez, e os que relemos. Quem ha, que os conheça, que não tenha quasi decorado aquelles deliciosos prologos de Garrett? Este, que o é tambem, apesar do auctor o não baptisar, este prefacio do Livro do Monte é dos que se hão de reler.

Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima.
Arquivo Municipal de Lisboa

No frontispício da sua obra abriu o poeta esta formosíssima porta, lavrada no mais puro e transparente marmore da nossa terra, e engrinaldou-a com os elegantes arabescos da sua pujante e donosa phantasia. Ao defrontarmos com ella, paramos, e sentimo nos alli presos, como em frente das portadas gothicas das velhas cathedraes, que admiramos á entrada, e a saída tornamos admirar. 

Diversa na forma não destoa, concorda em tudo com o interior do monumento; a prosa rivalisa com o verso na força, na viveza do colorido, na correccão do desenho, na largueza e espontaneidade do traço, no alto sentimento esthettco. Poesia sem rimas, mas na mesma lingua e com a mesma superior inspiração!

Aquella arvore que alli vemos, como elle a descreve e pinta, ondeando a copa trondeada, é symbolica: — diz-nos, representa para nós, o livro que por ella entrevemos. e não so livro, mas a obra toda do poeta, e toda a sua vida. É uma suggestão. Na sua forma, atravez da sua ramaria, ve elle um mundo phantastico, que ja foi realidade, e de que hoje apenas restam no seu espirito recordações e saudades! 

Vista de Caparica, tomada dos Capuchos.
Bosspostcard

Felizes ainda os que, chegados ao outono ou ao inverno, podem voltar as costas ao futuro, prolongar os olhos pelos aureos dias da evolada primavera, e evocar as imagens queridas d'então, marcos miliarios da vida, que nos apparecem ao longe, umas com lagrimas, outras com sorrisos, mas para nós todas formosas, todas immortaes!

É uma georgica como as outras — um primor d'arte, e uma pagina mais a acrescentar ao opulentíssimo Livro d'oiro dos prosadores portuguezes. Está ali impressa, cravada fundo, a mão nervosa e potente do grande escriptor, do eximio artista, do mestre. 

Prosa fidalga dc raça, não é só meridional, é portugueza, e disso se ufana, e com isso triumpha: que não somos nós pobres, que precisemos estender a mão humilde a vaidosos extrangeiros. Faz gosto vel a aqui, e apascentar nella os olhos: é como um chrysol, que os purifica das impurezas com que os traz encurvados a vista de tantos empestados e feios enchurros. 

Costa da Caparica, Peixeiras, 1901.
Imagem: Biblioteca Nacional de España

E os que, como nós, teem este vicio de amar a sua terra, se se comprazem na leitura dos velhos prosadores e poetas, não sentem menor prazer, quando encontram, mantida e honrada, nos escriptores contemporaneos o grande tradição nacional, e véem neles fiança de que os Sousas, os Vieiras, os Bernardes e os Castilhos, terão successores na  alta representação, no grande senado das lettras portuguesas.

*
*     *

Como se fez esta poetica e formosa lingua, como cresceu e frondejou, essa historia esta escripta e documentada nas suas obras pelos nossos poetas e prosadores. Fez-se na terra, e nos mares, na Europa, na Africa, na Asia e na America; na guerra e na paz, mas, por ventura, mais com aquella do que com esta. Viril e retumbante, tem a sonoridade das vozes de commando, e sente-se, quando a ouvimos, como o sibillar do vento e das balas, nas procellas e nos combates. 

Roque Gameiro.org

Povo de soldados e marinheiros, não amputamos as palavras, antes lhes prolongamos o som, como quem tem que fanar no fragor da peleja,contra o vento, de navio para navio, da terra para o mar. Notou o um grande escriptor — Edgar Quinet — assistindo, nas nossas cortes, a uma sessão tumultuosa, em que as vozes dos oradores, — vozes de tempestade — troavam como a artilheria dos campos de batalha, d'onde esses tribunos voltavam. 

— Vozes roucas de marinheiros! — disse elle.

Se tem a energia e a força, possue lambem a graça, e a harmonia, a suavidade e a brandura da nossa terra, das nossas floridas veigas, das nossas paizagens verdejantes, da nossa vida e dos nossos costumes — epica, altiva e magestosa nos Luziadas, amorosa e cheia de amenidade nos poemas de Rodriguez. Lobo, rustica, fragueira, e alegre, nos autos de Gil Vicente, que n'estas assembleas das Musas tambem os campos. os montes, e as serras enviam os seus delegados.

Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, pescadores lançando uma embarcação ao mar, década de 1900.
Arquivo Municipal de Lisboa

E se em alguns traços das suas feiçóes reconhecemos o cunho profundo, a impressão das arestas vivas da cruz da espada, noutros sente se a amorosa, a adorava!, a divina influencia d'outra cruz — a de Christo, que ambas empunhámos, com ambas combatemos, e com ambas vencemos 

Esta longa e sinuosa costa — enorme varanda, debruçada sobre o Oceano, que nos fadou navegadores e aventureiros, e este mar que nos cerca, imprimiram á nossa raça — á raça poriugueza — o cunho especial, que a distingue; foi como urna tempera, que apertou e concentrou as energias intimas do caracter nacional.

Vivendo ao lado do Hespanha, podendo estender a mão da nossa terra para a sua terra, não nos confundimos com os hespanhoes. Os extrangeiros, que não nos conhecem, confundem-nos. na sua desdenhosa ignorancia: os que vêem de perto os dois povos, distinguem, percebem as differenças.

Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, pescadores puxando uma embarcação para terra, década de 1900.
Arquivo Municipal de Lisboa

Serenos na paz. furiosos e indomitos na guerra, temos a confiança dos fortes. a melancolia dos concentrados, a esperança dos sonhadores. Raça muito original, quando a Europa da Renascença deslumbrada voltou os olhos para a Greda antiga, íamos nós sulcando os mares caminho do Oriente, e abriamos ao mundo moderno, com o nosso esforço. com as nossas espadas, as portas do futuro! Finda a tarefa. terminada a epopea, fechamol a com chave d'oiro — os Luziadas — monumento grandioso, e sublime epitaphio das nossas glorias! 

A grande obra portuguesa na civilização moderna, ninguem a pôde negar — ficou eternisada na historia, glorificada pela poesia: Valeu aqui a penna á espada, que, se assim não fóra, tambem da gloria nos esbulharia a humanidade agradecida. 

Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, colégio do Menino Jesus e casas típicas de pescadores, década de 1900.
Arquivo Municipal de Lisboa

A lingua em que se narram taes factos é, como elles, immortal, e os seus monumentos mais duradoiros do que o marmore e o bronre, ficarão attestando ás porvindoiras edades os portentosos feitos d'este povo, que, pequeno no território, foi grande na terra e nos mares, hasteou o seu pendão e fundou colonias nas terras africanas, descobriu o caminho da India, aproou com as suas esquadras ás terras de Santa Cruz, e alli levantou um novo imperio; e em todas estas emprezas, cada uma das quaes bastaria para a gloria duma nação, deixou memoria eterna do heroismo dos seus soldados, da magnanimidade dos seus capitães!

A Praia do Sol, Panorama dos Capuchos, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 107, década de 1930.
Bosspostcard

É, pois, nesta riquissmta lingua — manancial tão abundante e generoso, que o não esgotaram todos os que n'ella têem bebido, desde Fernam Lopes até Camillo Castello Branco — que são esctiptas as Georgicas e as Lyricas, a que Bulhão Pato, o eminente poeta, colligindo as, deu o nome de "Livro do Monte".

Zacharias d'Aça.


(1) Occidente n.° 647, 15 de dezembro de 1896

Leitura relacionada:
Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896

Informação relacionada:
Bulhão Pato na colecção da Hemeroteca de Lisboa
Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico, Lisboa, João Romano Torres, 1904-1915
Occidente n.° 650, 20 de janeiro de 1897

Tema:
Bulhão Pato

sábado, 1 de dezembro de 2018

Bulhão Pato, retratado por José Campas

Enquanto estivemos no Lazareto, eu frequentava muito a casa do Tio Pato. Foi sempre muito meu amigo e dava-me o grande prazer de falar comigo em muitos assuntos. Eram horas muito agradáveis para mim as que ficava na sua tão bondosa e inteligente companhia [...]

Retrato de Bulhão Pato (Caparica), José Campas, 1908.
Ilustração Portugueza 27 de abril de 1908

Um dia, convidou o Dr. Afonso Costa para o ir visitar. Ele e seu irmão, foram almoçar comigo à minha Escola, no Lazareto e depois fomos a casa de Bulhão Pato. O Tio Pato ficou muito contente, falaram bastante do presente, do passado, do futuro.

Retratos de Bulhão Pato e Isabel Pato (Caparica), José Campas, 1908.

Do passado lembrou o Tio Pato, a Sogra de Afonso Costa, que também se recordava muito de factos passados na sua mocidade em que o Tio Pato era admirado.

Último retrato de Bulhão Pato, José Campas.
Ilustração Portugueza, 10 de março de 1913

À saída tirámos um retrato que deve estar na minha mala ou na pequena caixa de madeira existente em casa de meu Filho Nuno. Nessa fotografia estavam: o irmão do meu apaixonado e uma Mulher, ele, e o Afonso Costa, seu irmão, eu e mais pessoas, conhecidas ou não, que na rua se juntaram. [...] (1)


(1) Ilda Jorge de Bulhão Pato, Pedaços da minha vida – narrados desde 11 de Fevereiro a 19 de Abril de 1971 cf. Maria Manuela de Moura Pereira, As escolas maternais de Ilda Jorge de Bulhão Pato

Artigo relacionado:
Retratos de Bulhão Pato

Mais informação:
Exposição José Campas (Obra publicada por ocasião da exposição patente no Salão Bobone, Lisboa, de 16 a 31 janeiro de 1929; tem uma relação de museus, galerias e colecções que possuem obras do artista)


José de Sousa Ferreira Campas.
Pintor, natural de Lisboa, nasceu a 14/06/1888 e faleceu a 04/01/1971.
Tirou o Curso de Pintura na Escola de Belas-Artes de Lisboa, obtendo o Prémio Anunciação em 1905-1906. Estagiou em Paris, onde expôs com êxito de 1918 a 1922.
Foi discípulo de Carlos Reis, Jean Paul Laurens, Léon Bonnat, Raphael Collin e J J Duval.
Com os seus quadros recebeu honrosos galardões, como a 1ª medalha em pintura na Sociedade Nacional de Belas-Artes, estando representado no Museu Nacional de Arte Contemporânea [???].
Publicou na imprensa portuguesa valiosos artigos de crítica de arte e polémica, especialmente em "A Voz", tendo sido delegado do Governo Português na Exposição Internacional de Paris, em 1935.
Foi Professor do Ensino Técnico, tendo sido Director das Escolas Técnicas de Lagos e de Abrantes, e emérito restaurador de quadros antigos.
Executou obras apreciáveis tanto de figura como de paisagem [...]
cf. Quem É Quem, Portugueses Célebres, Círculo de Leitores, 2008

domingo, 15 de julho de 2018

Uma tarde no Monte

Só, como o espargo no monte! A solidão aqui rara vez desmente o rifão.

Caparica, Pera, casa de campo, anteriormente pertencente ao Marquês de Valada, c. 1900.
Internet Archive

De vez em onde, aos compassos do mar na costa e do vento nas ramadas seculares dos poucos ulmeiros que escaparam á fúria dendroclasta dos nossos homens do campo, reune-se o chalrar alegre da mocidade escolhida, mocidade de educação e talento, que visita estes logares para se desenfadar do bulicio dos arruamentos da cidade na paz alpestre e nos travos salubres de graciosas paizagens.

Vista de Caparica, tomada dos Capuchos, anterior aos trabalhos de construção do IC 20.
Delcampe, Bosspostcard

O anno passado um grupo de rapazes veiu jantar a casa do meu bom amigo e vizinho de há quinze annos, Manuel Luiz Fernandes, actual presidente da camara de Almada; rapazes distinctos nas sciencias, na arte e nas lettras.

Caparica, Pera, Quinta dos Ingleses, vista sul, c. 1900.
Internet Archive

O melhor d'essas horas seriam á mesa, posta no eirado que avança ao rez da casa, eirado com os seus alegretes floridos e arvorêtas viçosas, d'onde os olhos se desafogam correndo desde o Castello de Palmella até Nossa Senhora do Cabo.

Cezimbra — Cabo Espichel e Ponta do Cavallo, cf.. ed. Martins/Martins & Silva, 606, década de 1900.
Delcampe

Quadro enorme que abraça todo o cimo ondulado da serra da Arrábida; pomares, vinhedos, vastissimos tratos de pinheiral, que se perdem nos longes das planuras, que vão morrer nas faldas da montanha divisória do Sado e Tejo.

Costa da Caparica, Terras da Costa e Cabo Espichel, ed. Passaporte, 7, década de 1950.
Delcampe

O esmalte dos casaes, aldeotas, logarejos, moinhos de vento, campeando d'entre macissos de verdura; a ampla bahia do Alfeite, tudo, ou no referver do dia ou no descahir da tarde, com as frechas horizontaes do sol ponente, tem variedade, expressão e viveza como em poucas partes se encontram.

Historical military picturesque..., George Landmann, Estrada Palmela Moita.

Sentámo-nos á mesa do nosso hospede. Entre os convivas não faltava um orador de temperamento, orador no foro, e, quando venha o lance, tribuno ao ar livre, nos ímpetos mysteriosos do improviso, sublevando os ânimos, como o vento, aos desgarrões, levanta as ondas do mar. 

Filho de um jurisconsulto primaz, que na mocidade foi saudado poeta por Almeida Garrett, sobrinho de um dos maiores poetas que teve o século passado em Portugal, — cae-me o seu nome da penna, nome que anda na bôcca e na admiração de todos: Alexandre Braga.

A tarde era de verão, serena e calmosa, mas arejada por um mareiro do oceano, salgadio e fresco. As copas frias do espadeiro, da talia [ou douradinha], do boal, vinhos d'este torrão celebrados já por Gil Vicente e Camões [cf. o Pranto da Maria Parda de Gil Vicente; o Banquete dado na Índia de Luís de Camões; a Comedia Ulysippo de Jorge Ferreira de Vasconcelos...], accendiam até a alma de um velho que lá estava, quanto mais o coração dos rapazes!

Caparica, Pera, Quinta dos Ingleses, c. 1900.
Internet Archive

Foi n'essa tarde que tive ensejo de apertar pela primeira vez a mão de Augusto Gil. Da sua mediana estatura, do seu concentramento physionomico, desmentido pelo faiscar dos olhos garços, olhos entre sentimentaes e irónicos; do sorriso timido com um pico mordaz, de toda a sua individualidade, emfim, — porque elle tem a rara fortuna de ser individual — me estava saltando o poeta sincero e o cancionista encantador. 

Caparica, Pera, Quinta dos Ingleses, c. 1900.
  Internet Archive

Poucos, bem poucos, tenho conhecido que façam menos conta da gloria que lhe podia dar o talento, talento real, que lhe vem aos borbotões do intimo, sem andar atraz d'elle remodelando metros na cadencia estridula e monótona do martello de um ferrador que bate canello n'uma incude. 

Caparica, Pera, Quinta dos Ingleses, c. 1900.
Internet Archive

Não é nem romântico, nem parnasiano, nem symbolista, é elle — o Augusto Gil — nome que é um gracioso rithmo. 

Devera já ter volumes se durante annos, nas voltas do Mondego, pelos hortos onde gorgeiam os pássaros, e nas fontes onde cantam as cachopas, não deixasse dezenas de estancias, que amanhã serão margaridas multicores dos campos e conchas lapidadas pelos mares no cancioneiro nacional. Por quê refoge da luz da grande publicidade este poeta tão vivo, tão picante e tão de lei?! 

Precisamos recorrer aos seus companheiros de Coimbra para lhe apanharmos a flor das composições que elle esqueceu ha muito. Só outros — Deus me perdoe — são de uma abundância diabética! 

Como as gotas crystallinas de nascente pura, caem-lhe da bôcca os versos que não escreve, e que lá vão nos assomos da lua no crescente, n'um sopro da aragem, no fuzilar de uma estrella na tremulina das aguas, para onde nasceram, para o sorriso de uns lábios vermelhos ou para um suspiro do peito alvoroçado de uma rapariga. 

Parece que certas organisações teem o que quer que seja do somnambulo. Correm á beira dos precipicios sem os ver, jogam-se aos matagaes espinhosos e não os sentem; talvez nas regiões dos sonhos aspirem o aroma das rosas ideaes; mas, quando acordam para as misérias humanas, vêem com as carnes rasgadas e sangrentas dos pedregaes da jornada. 

Oiçam-lhe os versos, duas quadras apenas:

Teus olhos, contas escuras,
São duas ave-marias
D'um rosário de amarguras,
Que eu rezo todos os dias.

Amas a Nosso Senhor,
Que morreu por toda a gente,
E a mim não me tens amor
Que morro por ti somente!

Em Coimbra, a vizinha da casa fronteira, a dos olhos negros, que passava o dia costurando ao pé da janella, entre um mangericão copado e um craveiro florido, essa é que o ia desgraçando. 

O craveiro da janela, Augusto Gil, Aillaud e Bertrand, 1920.
Livraria Alfarrabista

Os nossos convivas partiram para Lisboa. A tarde esmorecia. O sol baqueava nas ondas, deixando o largo crepúsculo dos dias estivaes. A  lua, n'um período delicioso, surgia do nascente, rubra como a aurora. Depois, com a noite, alteou no céo branca e beijou a terra.

Rio Tejo e Torre de Belém (efeito de luar).

Que bem cahiria, n'esse momento, um estudante de Coimbra, viola ao peito, cantando n'uma voz afinada e masculina a quadra do seu camarada Augusto Gil:

Teus olhos, contas escuras, 
São duas ave-marias 
D'um rosário de amarguras, 
Que eu rezo todos oa dias.

Monte, 1904. (1)


(1) Bulhão Pato, Memórias, Vol. III, Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1907

segunda-feira, 30 de abril de 2018

As lágrimas das coisas!

Deixei na cidade as satyras,
Com as brumas da invernia:
Venho ao campo — um dia esplendido!
— E eu alegre, como o dia!

Lisboa vista da margem sul, Johann Heinrich Luttringshausen (1783-1857).
Imagem: arcadja

Tardou em chegar abril;
Mas agora é que deveras
Vem mais robusto e gentil
Do que n'outras primaveras.

Rebenta na encosta os pâmpanos;
Enflora o pomar nas hortas.
Cheio o regaço de dadivas,
Já bate a todas as portas!

É tal a forca de luz
E de vigor, que elle traz,
Que, ao ver-lhe a face, eu suppuz
Que estava feito um rapaz!

Lisboa vista do Porto Brandão, James Holland, 1837, 1838 ou 1847.
Imagem: Museu de Lisboa

Em volta do ninho os pássaros,
Palpitando de desejos;
E as rosas, abrindo as túnicas,
Aos cravos atiram beijos!


Quando até as próprias rosas
Beijam cravos a tremer,
Quantas coisas mysteriosas
No coração da mulher!...

Este bello sol deslumbra-me,
E arrebata-me ao passado...
Era assim!... Um dia fulgido!
Céo azul, em flor o prado!

Vista panorâmica de Lisboa ocidental, Maria Guilhermina Silva Reis.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Um vestidito singello,
Ao peito um cravo vermelho,
Posto em tranças o cabello;
E sem consultar o espelho,

Vinha commigo. Julgando-me
Moço de rara sapiência,
Ouvia, exultando, as syntheses,
Próprias da minha sciencia...

Cantavam ao desafio,
Nas pedras batendo as roupas,
As lavadeiras no rio,
E as toutinegras nas choupas.

Costa da Caparica,  ed. Passaporte, 7, década de 1950.
Imagem: Delcampe

Rosada, fresca, alegríssima, —
Encantadora creança, —
Raiavam-lhe os olhos límpidos,
E verdes como a esperança!

Um mal-me-quer do balsedo
Tomou nas mãos pequeninas,
E foi dizendo, em segredo,
As palavras sybillinas.

— Muito, muito! — exclamou, trémula,
E pela primeira vez,
Demudou-lhe o rosto, súbita,
Uma grande pallidez!

Esperando o peixe, Adolfo Rodrigues, 1893.
Imagem: arquipélagos

Ao despedir-se de mim,
N'um vivo aperto de mão
Disse tudo quanto emfim
Diz, na mudez, a paixão!

E cahiu d'aquellas pálpebras
Uma pérola do amor,
Como cae o orvalho rutilo
Da aurora sobre uma flor!

Ha muito que a rosa agreste,
D'olhos verdes como a esp'rança,
Dorme á sombra d'um cypreste. . .
Desventurada creanca!

Miradouro do Convento dos Capuchos, ed. Passaporte, 57, 1966
Imagem: Delcampe

Ó sol d'abril, tu cegaste-me!
Debalde acudo ao passado,
Que não volta a flor do espirito,
Como volta a flor do prado!

Monte de Caparica, abril 20, 1888. (1)


(1) Bulhão Pato, Sunt lacrimae rerum!, Hoje, sátiras, canções e idyllios, Lisboa, 1888

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

RTP Arquivos

1961-05-30
Acidente aéreo com o Avião DC-8
Costa de Caparica, destroços do avião a jacto DC-8 do voo VA 897 que fazia a ligação entre Roma e…

Douglas DC-8 da KLM Fridtjof Nansen.
(relatório do acidente).
Imagem: Aviacrash

1969-01-05
Aniversários da freguesia Costa de Caparica e do jornal "Praia do Sol"
Comemoração do vigésimo aniversário da freguesia da Costa de Caparica e do jornal "Praia do Sol".

Jornal Praia do Sol n° 1, dirigido por Norberto de Araújo), janeiro de 1950.
Imagem: Almada Digital

1970-08-01
Um Dia Com… Mário Domingues 
Programa sobre Mário Domingues, escritor natural da ilha do Príncipe, que menciona os aspetos mais relevantes da sua carreira profissional.

Mário Domingues in Luís Dantas, Mário Domingues.
O jornalista vagabundo...
Imagem: Calaméo

1971-01-02
Banho de Ano Novo
Reportagem sobre o tradicional banho de Ano Novo, na praia da Costa de Caparica.

1972-07-26
Campo da Mocidade Portuguesa na Costa da Caparica
Costa da Caparica, Baltazar Rebelo de Sousa, Ministro das Corporações, da Previdência Social e da Saúde e Assistência, vista o…

Campo da Mocidade Portuguesa Costa da Caparica.
Imagem:RTP Arquivos

1973-09-13
Praias da Costa de Caparica
Programa apresentado por Luís Filipe Costa sobre questões do ordenamento da orla costeira da Costa de Caparica.

Costa da Caparica , Restaurante Porto de Abrigo, 1977.
Imagem: Costa da Caparica (fb)

1973-10-08
Campo de Férias Musical promovido pela FNAT na Costa da Caparica 
Reportagem sobre o Campo de Férias Musical promovido pela Federação Portuguesa das Colectividades Cultura e Recreio, realizado na Colónia de…

1973-11-15
Um Dia Com… Manuel Cargaleiro
Programa dedicado a Manuel Cargaleiro, pintor e ceramista, sobre a vida pessoal, percurso académico e artístico.

Almada, Jardim Comand. Sá Linhares, ed. J. Lemos, 21, década de 1950.
Ao fundo o painel azulejos de Cargaleiro de 1956.
Imagem: Delcampe - Bosspostcard

1974-07-27
Cassiano Branco
A vida e obra do arquitecto Cassiano Branco, figura dominante na arquitectura modernista portuguesa. Uma panorâmica sobre alguns dos seus…

Costa de Caparica, Praia Atlântico.
Pormenor de Solução Urbanística, Cassiano Branco, Arquitecto, 1930.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

1977-12-13
Fonte da Telha: Uma Aldeia na Praia
Reportagem da jornalista Fátima Martins Pereira (mais conhecida por Maria de Fátima Bonifácio), sobre as condições higiénicas e de habitabilidade…

Uma aldeia na Praia.
Imagem:RTP Arquivos

1989-07-18
Acordo de cooperação para o realojamento
Assinatura do acordo de cooperação para o realojamento dos moradores das casas clandestinas da Costa da Caparica.

1999-01-14
UHF
Entrevista biográfica a António Manuel Ribeiro, fundador dos UHF, o percurso da banda e a vida pessoal.

UHF, detalhe da capa do disco "À flor da pele".
Imagem: UHF

1999-01-27
Tarzan Taborda
Tarzan Taborda, antigo campeão de luta livre, fala da sua vida, passada e presente.

Tarzan Taborda, Albano Taborda Curto Esteves, (1935-2005).
Imagem: OWW

2001-01-12
Mar destruidor em São João da Caparica
Mar destrói bares e esplanadas na praia de São João na Costa de Caparica.

2008-08-10
Cargaleiro, a Obsessão da Luz
Documentário sobre o pintor e ceramista Manuel Cargaleiro, com depoimentos do próprio sobre a sua vida e obra, intercalados com…

Manuel Cargaleiro.
Detalhes dos painel de azulejos de 1956 expostos no Jardim Dr. Alberto Araújo (ex jardim Comdante Sá Linhares).
Imagem: Pinterest

O portal RTP Arquivos é a nova plataforma de acesso público "online" aos arquivos audiovisuais do serviço público de rádio e televisão. Vai estar doravante em permanente atualização num trabalho continuado, destinado a disponibilizar progressivamente conteúdos desde a década de 30 do século passado até à atualidade [...] (1)  


(1) RTP Arquivos

Mais informação:
RTP Arquivos (Caparica)
RTP Arquivos (Fonte da Telha)

sexta-feira, 3 de março de 2017

Retratos de Bulhão Pato

Eu, que não sou deputado, nem conselheiro, nem ministro, nem par do reino, nem escriptor politico, nem democrata façanhoso, nem republicano — moço-fidalgo — vejo-me infelizmente compellido a procurar meios de subsistência na vida das letras que é bem triste em toda a parte. (1)

Bulhão Pato (insp. Andy Warhol, Ten Lizes, 1963)

Este nome, incontestavelmente dos mais ilustres que sobredoiram as letras nacionais, está vinculado às saudosas reminiscências da minha meninice, e é-me portanto gratíssimo, ainda que outros motivos não houvesse, o rememora-lo mais uma e muitas vezes.

Raimundo António de Bulhão Pato,
Imagem: Hemeroteca Digital

De tarde, durante alguns dias, e com mais empenho que um espião de ruins tenções, seguia, à distancia, os passos do poeta; vi no Passeio de D. Fernando, já no sitio da Meia Laranja, ou por entre os renques de plátanos e na Cova de Viriato, os meus olhares cravavam-se no poeta rebuçando-me na capa académica, preguntava a mim mesmo por que milagre é que o génio pode incarnar-se num ser que veste e come e fala e passeia como toda a gente.

Um dia, — era eu um imberbe estudantinho de latim, em Viseu, e já colaborador de almanaques e publicações menos vistosas, com tendência, infelizmente não contrariada, para a suposta profissão de letras, — anunciou o Viriato, gazeta da localidade, a chegada do poeta da "Paquita" à capital da Beirã.

Como eu tivesse na memória e no coração a esplêndida poesia de Bulhão Pato, "A um retrato", e como eu não conhecesse, à excepção de Tomás Ribeiro, nenhum poeta em pessoa, a notícia alvoraçou-me naturalmente, e, em vez de solicitar ousadamente uma apresentação fácil, procurei vê-lo e contemplá-lo muitas vezes, sem que ele de mim soubesse nem me visse.

Bulhão Pato por Marciano Henriques da Silva
(museu Carlos Machado em Ponta Delgada).
Imagem: Alexandre Flores

Mas, atentando bem, reconhecia-se que a personalidade fìsica do poeta nãoo se confundia com qualquer personalidade. Àinda na mais familiar conversa com Paulo Melo Borges, — os jornalistas da terra, — o olhar, a voz de Bulhao Pato não eram a voz, o gesto, do comum dos mortais; havia ali, como diria Camões:

aquele não sei quê,
que aspira não sei como.

Estávamos ainda em pleno romantismo; e a formosa beladura negra de Bulhão Pato, agitada pelas brisas. Pavia, trazia-me a ideia a cabeleira de Childe-Harold aos ventos do Oceano. Na fronte desafogada e no sorriso discreto, na palavra cadenciada, meio solene e afectuosa, no gesto espontâneo e seguro, havia mui de meiguice e majestade, de soberania e de doçura que me subjugava e me atraia.

Bulhão Pato em Uma arribada em calma branca, Revista Serões,  1907.
Imagem: Hemeroteca Digital

Cheguei a possuir-me da tentação de lhe falar e pedi ao dr. Melo Borges.

— Traz versos para o jornal?— perguntou-me ele.
— Não trago nada; por outra, trago o desejo de que me apresente ao Bulhão Pato.
— Não é preciso; apresente-se você, que ele receberá admiravelmente.
— É preciso, porque eu não tenho coragem para tal. 
— Nesse caso, e como a apresentação só se justifica pelo parentesco literário, traga-me versos e vamos falar com ele. 
— Aceitei alvitre, e fui para casa fazer versos.

Impressionado por uns desgostos de criança, umas nènias, tornando para epigrafe estes versos do canto V da Paquita: 

"Não profiro o teu nome! Venturoso, 
Outro profere agora a teus ouvidos. 
Teu rosto se lhe volve carinhoso, 
Estremecem de amor os teus sentidos; 
Mas ah! que ao menos possam, na tua alma, 
Um eco despertar os meus gemidos!"

As minhas nênias começavam por este teor:

Chegou a hora da suprema angústia! 
Os dias, que a ventura 
vinha doirar com lúcidos fulgores, 
fugìram, como foge na espessura 
arroio que trepida entre verdores. 
Ao rosto magoado 
assoma agora a lágrima das agrimas...

E, num crescendo de tragédia, enchi de rimas uma folha de papel almaço (essa composição, com o título de Emfim, está arquivada na pág. 159 dos meus Quadros Cambiantes, 2.a edição, Coimbra, 1874). 

No dia seguinte, dizia-me Melo Borges: — Não posso apresenta-lo; o Bulhão Pato foi hoje para Farminhão; está em casa do Luis de Campos.

Não pude responder. Dir-se-ia que me abandonava alguém que me era querido, e, se o meu pobre coração falasse, teria dito talvez: — Nunca mais o tornarás a ver! Nessa noite, estudei mal o meu Virgílio e dormi pior. Passaram dias.

Uma tarde, vi sair da casa do Francisco Mendes aquele adorável e malogrado Luis de Campos, que antes de ser par do reino, era mais do que isso,— um coração de oiro e poeta de levantada inspirado. — O Bulhão Pato? Onde está o Bulhão Pato? — Perguntei-lhe eu. — Esteve em nossa casa; caçámos nos fraguedos da Ortigueira; e foi encantado com as nossas paisagens. Viu e falou-lhe?— Contei-lhe tudo, e pediu-me os versos, que deveriam ter sido pretexto da minha apresentação.

Logrei ao menos a satisfação de ver que esses versos de rapaz entusiasmaram a boa e expansiva alma de Luis de Campos, mormente a seguinte estrofe, que ele repetia com calor e na intensão mais cativante:

... esp'rança a esquiva dor levanta a fronte 
... cume de escabrosa, ingreme, rampa;
... sado, ardendo, o peito busca a fonte
... lhe mitigue o ardor, febre e cansado. 
... lisero. trepando, arrasta o passo, 
... até bater na cruz de húmida campa,
... para sempre o estreita em férreo abraço.

Pouca gente se lembrará de Luis de Campos, do parlamentar, do poeta da Granadina, de u ros ornamentos da minha Beira; e menos ain iam dele, se lhe não sobrevivessem irmàos di ) general Antonio Caropos e o par do reino Fra irros Coelho e Campos, que são um vivo reflexo do nobilíssimo carater. e poucos se lembrarão dele, quero eu alistar-me nos poucos, ligando o seu nome ao de Bulhão Pato le quiseram anos; e só em 1875, encontrando-me nas sessões da Academia das Sciências, é q ir a arobi^ào do imberbe estudantito de latim I poeta e sentindo a minha mão apertada pela mancha [...] não pode deixar de curvar-se, em respeitoso afecto, perante a figura moral e literária do glorioso poeta da Paquita.

Educado literariamente ao lado de Alexandre Herculano, na convivência dos mais rigidos carateres de urna sociedade em que eles não abundam, Bulhão Pato, no seu trato social, tomou por uma estrada, que pode ser a de um espartano imaculado, mas que não é o "Chemin des Anges", que leva as grandezas sociais, ás comodidades da vida, ao capitólio de duvidosas celebridades, e ao afecto convencional de camarilhas politicas ou literárias.

Raimundo Bulhão Pato, Miguel Angelo Lupi, c. 1880
Imagem: ComJeitoeArte

Nascido em Bilbau, parece que o céu das Vascongadas lhe instilou com o leite materno a independência e a nobre altivez que caraterizam os filhos daquela região. Bulhão Pato viu certamente, na sua infância, como as montanhas das Astúrias encaram majestosas e serenas o golfo que se lhes contorce aos pés, ameaçando-as inutilmente com uma submersão medonha em todos os lances da sua vida, através de tudo e de todos, Bulhão Pato manteve sempre aquela superior firmeza do homem justo, de quem falava o velho Horácio:

Se estalado cair o orbe,
ferem-no as ruinas impávido!

Contemporâneos dele, menos prestadios e mais audazes ou menos escrupulosos, ascenderam às culminâncias do poderio, do renome e da fortuna; e os que lhe não voltaram as costas, dispensaram-lhe simplesmente uma benevolência estéril, quando não uns ares de proteção... platónica. É a história de cada dia: de todos os que sobem, ha dois termos, pelo menos, que deveriam ficar atras de muitos que estão em baixo.

Mas Bulhão Pato, tendo alias a consciencia de si próprio, refreia os ímpetos da sua musa, causticamente satírica, e, poupando os que outrem castigaria, esquece-os generosamente, e chega a considerar-se feliz na sua pacifica tebaida, quer deleitando-se no trato da Arte e da natureza, quer galgando montes e gândaras em cata de perdizes e lavercas, quer dialogando com os pescadores da costa, que sobem o Monte de Caparica, para ver brancas do asceta, e ouvir-lhe a palavra amorosa e sã.

Bulhão Pato, Columbano Bordalo Pinheiro, 1883.
Imagem: MNAC

Do seu Monte de Caparica, olha ele para o mundo, como do alto da torre Eiffel se olhará abaixo que se vê formigando, a toda a hora, a água do rio que leva ao mar e ao esquecimento os ódios, as lutas, as grandezas e as misérias, que chamam e se embatem na prodigiosa cidade, que moeu o coração do mundo.

De longe em longe, Bulhão Pato deixa por ras seu deserto e passa rapidamente pela cidade  certificar bem de que a Providencia é sempre b( to que fogo do céu ainda não calcinou nem v em que se rebolca uma sociedade gangrenada. ta ao seu ermo, onde não ha infeções paludosa ranger de dentes do inferno bíblico.

Embora sem matrícula na irmandade dos felizes, talvez ele nos possa dizer onde está a felicidade!

Bulhão Pato in O António Maria, 13 de novembro de 1884.
Imagem: Hemeroteca Digital

Como se vê, não tanto a biografia nem a critica apenas uns traços, ao acaso, de um esboço m( e dos mais conhecidos, num pais em que teda t nhcce. esboço literário do poeta está feito, n de lodos os que sabem ver com olhos de ver, p nítido da longa e perdurável obra de Bulhão Pato as Memórias e Portugueses na India, e Sob os Ciprestes verso, Cantos e Sátiras, Paquita, Flores agì ou três volumes de versos, são títulos bastante sagrados de uma glória nacional.

Representante de uma época literária, em que o conhecimento da boa linguagem era a primeira condição para se ser escritor, e em que um poeta, para o ser, tinha que familiarizar-se com as regras da metrificação, Bulhão Pato nos seus trabalhos a mais rara correção de meios ao seu dispor o maior número das riquezas e silares ao idioma nacional.

A beleza e correção correspondem, nos escritos de Bulhão Pato a vigor da ideia, a espontaneidade e realismo dos conceitos, a envergadura de um pensamento elevado e nobre. E a tal ponto a forma se casa com a ideia, que está transluz nitidamente através daquela, corno o sangue vigoroso e quente de um organismo poderoso, através de uma epiderme delicada e sã.

Raimundo António de Bulhão Pato,
Imagem: Hemeroteca Digital

Por isso, os livros de Bulhão Pato poderão passar despercebidos ao noticiário indígena e aos amadores de literatura avariada ou de farófias literárias; mas, se alguma coisa do que temos e valemos tem de ficar depois de nós, sobrevivendo a uma sociedade enfermiça e caótica, esses livros ficarão a par daqueles documentos que hão de levar aos nossos actos as memórias mais puras de uma nacionalidade que foi. (2)

Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Hoje almoço em casa do Schwalbach com o Bulhão Pato, o Camara, João Chagas, Antonio Bandeira, etc.

O Bulhão Pato é um homensinho secco e resistente, de cabeleira e pera branca—miniatura do alentado Pato caçador que todos nós imaginamos ao ler-lhe algumas paginas. Parte no dia 20 para S. Miguel, de passeio... Quando morrer desaparece com elle toda uma epocha:

Bulhão Pato, Rafael Bordalo Pinheiro,
Album Glórias, 1902
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

— Meu rapaz podes ter lido todos os philosophos, que se não tiveres sentimento... Minha mulher, uma velhinha lá fica... Não vae comigo, porque recolhemos em casa uma pequena pobre, pobrissima, e queremos-lhe como se fosse nossa filha.

Retrato de Isabel Pato, José Campas, Caparica, 1908
Imagem: MJM

Sentamol-a á nossa meza... Bem sei que ha por ahi uns moços que dizem mal de mim. Não me importo. Quando vejo um rapaz de talento abro-lhe logo os braços.

Bulhão Pato e Moreira de Almeida com outros cavalheiros no Largo das Cortes.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

No fim do almoço, beija a mão ás senhoras. Conviveu com o Herculano, ouviu-lhe dizer:

— Isto dá vontade de morrer! "Que faria — accrescenta — se vivesse hoje!" — O Conservatorio lembra-lhe o Palmeirim — "que foi da minha creação" — É simpathico, vivo e cheira a outros tempos: conserva, como o linho guardado no fundo d'um armario, o perfume da maçã.

Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

E que contraste com os outros, com o Chagas, com o Schwalbach, sempre aflicto e sempre despreocupado, com o Antonio Bandeira, que, sob uma aparencia futil, é pratico como o diabo, e que conta que foi uma noite em Roma, com alguns portugueses, mulheres e guitarras, bater o fado para as ruinas do Colyseo!

Retrato de Bulhão Pato, Columbano Bordalo Pinheiro, 1908.
Imagem: MatrizNet

Depois, por blague, sustenta com o Chagas, que ninguem devia ter mais de duzentas e cincoenta grammas de principios.

Março 1904. (3)


(1) Bulhão Pato, Novellas, Lisboa, Typographia Universal, 1864
(2) Cândido de Figueiredo, Figuras literárias... , Lisboa, Viuva Tavares Cardoso, 1906
(3) Raul Brandão, Memórias

Leituras relacionadas:
Efemérides
Bulhão Pato na coleção da Hemeroteca de Lisboa