terça-feira, 7 de janeiro de 2020

O Livro do Monte

Coisa feita para não ser lida — disse dos prefacios não sei quem. Cita-se o dito, e leem se os prefacios. É que ha prefacios e prefacios: ha os que não acabamos de lér, os que vemos apenas uma vez, e os que relemos. Quem ha, que os conheça, que não tenha quasi decorado aquelles deliciosos prologos de Garrett? Este, que o é tambem, apesar do auctor o não baptisar, este prefacio do Livro do Monte é dos que se hão de reler.

Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima.
Arquivo Municipal de Lisboa

No frontispício da sua obra abriu o poeta esta formosíssima porta, lavrada no mais puro e transparente marmore da nossa terra, e engrinaldou-a com os elegantes arabescos da sua pujante e donosa phantasia. Ao defrontarmos com ella, paramos, e sentimo nos alli presos, como em frente das portadas gothicas das velhas cathedraes, que admiramos á entrada, e a saída tornamos admirar. 

Diversa na forma não destoa, concorda em tudo com o interior do monumento; a prosa rivalisa com o verso na força, na viveza do colorido, na correccão do desenho, na largueza e espontaneidade do traço, no alto sentimento esthettco. Poesia sem rimas, mas na mesma lingua e com a mesma superior inspiração!

Aquella arvore que alli vemos, como elle a descreve e pinta, ondeando a copa trondeada, é symbolica: — diz-nos, representa para nós, o livro que por ella entrevemos. e não so livro, mas a obra toda do poeta, e toda a sua vida. É uma suggestão. Na sua forma, atravez da sua ramaria, ve elle um mundo phantastico, que ja foi realidade, e de que hoje apenas restam no seu espirito recordações e saudades! 

Vista de Caparica, tomada dos Capuchos.
Bosspostcard

Felizes ainda os que, chegados ao outono ou ao inverno, podem voltar as costas ao futuro, prolongar os olhos pelos aureos dias da evolada primavera, e evocar as imagens queridas d'então, marcos miliarios da vida, que nos apparecem ao longe, umas com lagrimas, outras com sorrisos, mas para nós todas formosas, todas immortaes!

É uma georgica como as outras — um primor d'arte, e uma pagina mais a acrescentar ao opulentíssimo Livro d'oiro dos prosadores portuguezes. Está ali impressa, cravada fundo, a mão nervosa e potente do grande escriptor, do eximio artista, do mestre. 

Prosa fidalga dc raça, não é só meridional, é portugueza, e disso se ufana, e com isso triumpha: que não somos nós pobres, que precisemos estender a mão humilde a vaidosos extrangeiros. Faz gosto vel a aqui, e apascentar nella os olhos: é como um chrysol, que os purifica das impurezas com que os traz encurvados a vista de tantos empestados e feios enchurros. 

Costa da Caparica, Peixeiras, 1901.
Imagem: Biblioteca Nacional de España

E os que, como nós, teem este vicio de amar a sua terra, se se comprazem na leitura dos velhos prosadores e poetas, não sentem menor prazer, quando encontram, mantida e honrada, nos escriptores contemporaneos o grande tradição nacional, e véem neles fiança de que os Sousas, os Vieiras, os Bernardes e os Castilhos, terão successores na  alta representação, no grande senado das lettras portuguesas.

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Como se fez esta poetica e formosa lingua, como cresceu e frondejou, essa historia esta escripta e documentada nas suas obras pelos nossos poetas e prosadores. Fez-se na terra, e nos mares, na Europa, na Africa, na Asia e na America; na guerra e na paz, mas, por ventura, mais com aquella do que com esta. Viril e retumbante, tem a sonoridade das vozes de commando, e sente-se, quando a ouvimos, como o sibillar do vento e das balas, nas procellas e nos combates. 

Roque Gameiro.org

Povo de soldados e marinheiros, não amputamos as palavras, antes lhes prolongamos o som, como quem tem que fanar no fragor da peleja,contra o vento, de navio para navio, da terra para o mar. Notou o um grande escriptor — Edgar Quinet — assistindo, nas nossas cortes, a uma sessão tumultuosa, em que as vozes dos oradores, — vozes de tempestade — troavam como a artilheria dos campos de batalha, d'onde esses tribunos voltavam. 

— Vozes roucas de marinheiros! — disse elle.

Se tem a energia e a força, possue lambem a graça, e a harmonia, a suavidade e a brandura da nossa terra, das nossas floridas veigas, das nossas paizagens verdejantes, da nossa vida e dos nossos costumes — epica, altiva e magestosa nos Luziadas, amorosa e cheia de amenidade nos poemas de Rodriguez. Lobo, rustica, fragueira, e alegre, nos autos de Gil Vicente, que n'estas assembleas das Musas tambem os campos. os montes, e as serras enviam os seus delegados.

Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, pescadores lançando uma embarcação ao mar, década de 1900.
Arquivo Municipal de Lisboa

E se em alguns traços das suas feiçóes reconhecemos o cunho profundo, a impressão das arestas vivas da cruz da espada, noutros sente se a amorosa, a adorava!, a divina influencia d'outra cruz — a de Christo, que ambas empunhámos, com ambas combatemos, e com ambas vencemos 

Esta longa e sinuosa costa — enorme varanda, debruçada sobre o Oceano, que nos fadou navegadores e aventureiros, e este mar que nos cerca, imprimiram á nossa raça — á raça poriugueza — o cunho especial, que a distingue; foi como urna tempera, que apertou e concentrou as energias intimas do caracter nacional.

Vivendo ao lado do Hespanha, podendo estender a mão da nossa terra para a sua terra, não nos confundimos com os hespanhoes. Os extrangeiros, que não nos conhecem, confundem-nos. na sua desdenhosa ignorancia: os que vêem de perto os dois povos, distinguem, percebem as differenças.

Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, pescadores puxando uma embarcação para terra, década de 1900.
Arquivo Municipal de Lisboa

Serenos na paz. furiosos e indomitos na guerra, temos a confiança dos fortes. a melancolia dos concentrados, a esperança dos sonhadores. Raça muito original, quando a Europa da Renascença deslumbrada voltou os olhos para a Greda antiga, íamos nós sulcando os mares caminho do Oriente, e abriamos ao mundo moderno, com o nosso esforço. com as nossas espadas, as portas do futuro! Finda a tarefa. terminada a epopea, fechamol a com chave d'oiro — os Luziadas — monumento grandioso, e sublime epitaphio das nossas glorias! 

A grande obra portuguesa na civilização moderna, ninguem a pôde negar — ficou eternisada na historia, glorificada pela poesia: Valeu aqui a penna á espada, que, se assim não fóra, tambem da gloria nos esbulharia a humanidade agradecida. 

Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, colégio do Menino Jesus e casas típicas de pescadores, década de 1900.
Arquivo Municipal de Lisboa

A lingua em que se narram taes factos é, como elles, immortal, e os seus monumentos mais duradoiros do que o marmore e o bronre, ficarão attestando ás porvindoiras edades os portentosos feitos d'este povo, que, pequeno no território, foi grande na terra e nos mares, hasteou o seu pendão e fundou colonias nas terras africanas, descobriu o caminho da India, aproou com as suas esquadras ás terras de Santa Cruz, e alli levantou um novo imperio; e em todas estas emprezas, cada uma das quaes bastaria para a gloria duma nação, deixou memoria eterna do heroismo dos seus soldados, da magnanimidade dos seus capitães!

A Praia do Sol, Panorama dos Capuchos, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 107, década de 1930.
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É, pois, nesta riquissmta lingua — manancial tão abundante e generoso, que o não esgotaram todos os que n'ella têem bebido, desde Fernam Lopes até Camillo Castello Branco — que são esctiptas as Georgicas e as Lyricas, a que Bulhão Pato, o eminente poeta, colligindo as, deu o nome de "Livro do Monte".

Zacharias d'Aça.


(1) Occidente n.° 647, 15 de dezembro de 1896

Leitura relacionada:
Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896

Informação relacionada:
Bulhão Pato na colecção da Hemeroteca de Lisboa
Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico, Lisboa, João Romano Torres, 1904-1915
Occidente n.° 650, 20 de janeiro de 1897

Tema:
Bulhão Pato

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