Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima. Arquivo Municipal de Lisboa |
No frontispício da sua obra abriu o poeta esta formosíssima porta, lavrada no mais puro e transparente marmore da nossa terra, e engrinaldou-a com os elegantes arabescos da sua pujante e donosa phantasia. Ao defrontarmos com ella, paramos, e sentimo nos alli presos, como em frente das portadas gothicas das velhas cathedraes, que admiramos á entrada, e a saída tornamos admirar.
Diversa na forma não destoa, concorda em tudo com o interior do monumento; a prosa rivalisa com o verso na força, na viveza do colorido, na correccão do desenho, na largueza e espontaneidade do traço, no alto sentimento esthettco. Poesia sem rimas, mas na mesma lingua e com a mesma superior inspiração!
Aquella arvore que alli vemos, como elle a descreve e pinta, ondeando a copa trondeada, é symbolica: — diz-nos, representa para nós, o livro que por ella entrevemos. e não so livro, mas a obra toda do poeta, e toda a sua vida. É uma suggestão. Na sua forma, atravez da sua ramaria, ve elle um mundo phantastico, que ja foi realidade, e de que hoje apenas restam no seu espirito recordações e saudades!
Vista de Caparica, tomada dos Capuchos.
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Felizes ainda os que, chegados ao outono ou ao inverno, podem voltar as costas ao futuro, prolongar os olhos pelos aureos dias da evolada primavera, e evocar as imagens queridas d'então, marcos miliarios da vida, que nos apparecem ao longe, umas com lagrimas, outras com sorrisos, mas para nós todas formosas, todas immortaes!
É uma georgica como as outras — um primor d'arte, e uma pagina mais a acrescentar ao opulentíssimo Livro d'oiro dos prosadores portuguezes. Está ali impressa, cravada fundo, a mão nervosa e potente do grande escriptor, do eximio artista, do mestre.
Prosa fidalga dc raça, não é só meridional, é portugueza, e disso se ufana, e com isso triumpha: que não somos nós pobres, que precisemos estender a mão humilde a vaidosos extrangeiros. Faz gosto vel a aqui, e apascentar nella os olhos: é como um chrysol, que os purifica das impurezas com que os traz encurvados a vista de tantos empestados e feios enchurros.
Costa da Caparica, Peixeiras, 1901. Imagem: Biblioteca Nacional de España |
E os que, como nós, teem este vicio de amar a sua terra, se se comprazem na leitura dos velhos prosadores e poetas, não sentem menor prazer, quando encontram, mantida e honrada, nos escriptores contemporaneos o grande tradição nacional, e véem neles fiança de que os Sousas, os Vieiras, os Bernardes e os Castilhos, terão successores na alta representação, no grande senado das lettras portuguesas.
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Como se fez esta poetica e formosa lingua, como cresceu e frondejou, essa historia esta escripta e documentada nas suas obras pelos nossos poetas e prosadores. Fez-se na terra, e nos mares, na Europa, na Africa, na Asia e na America; na guerra e na paz, mas, por ventura, mais com aquella do que com esta. Viril e retumbante, tem a sonoridade das vozes de commando, e sente-se, quando a ouvimos, como o sibillar do vento e das balas, nas procellas e nos combates.
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Povo de soldados e marinheiros, não amputamos as palavras, antes lhes prolongamos o som, como quem tem que fanar no fragor da peleja,contra o vento, de navio para navio, da terra para o mar. Notou o um grande escriptor — Edgar Quinet — assistindo, nas nossas cortes, a uma sessão tumultuosa, em que as vozes dos oradores, — vozes de tempestade — troavam como a artilheria dos campos de batalha, d'onde esses tribunos voltavam.
— Vozes roucas de marinheiros! — disse elle.
Se tem a energia e a força, possue lambem a graça, e a harmonia, a suavidade e a brandura da nossa terra, das nossas floridas veigas, das nossas paizagens verdejantes, da nossa vida e dos nossos costumes — epica, altiva e magestosa nos Luziadas, amorosa e cheia de amenidade nos poemas de Rodriguez. Lobo, rustica, fragueira, e alegre, nos autos de Gil Vicente, que n'estas assembleas das Musas tambem os campos. os montes, e as serras enviam os seus delegados.
Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, pescadores lançando uma embarcação ao mar, década de 1900. Arquivo Municipal de Lisboa |
E se em alguns traços das suas feiçóes reconhecemos o cunho profundo, a impressão das arestas vivas da cruz da espada, noutros sente se a amorosa, a adorava!, a divina influencia d'outra cruz — a de Christo, que ambas empunhámos, com ambas combatemos, e com ambas vencemos
Esta longa e sinuosa costa — enorme varanda, debruçada sobre o Oceano, que nos fadou navegadores e aventureiros, e este mar que nos cerca, imprimiram á nossa raça — á raça poriugueza — o cunho especial, que a distingue; foi como urna tempera, que apertou e concentrou as energias intimas do caracter nacional.
Vivendo ao lado do Hespanha, podendo estender a mão da nossa terra para a sua terra, não nos confundimos com os hespanhoes. Os extrangeiros, que não nos conhecem, confundem-nos. na sua desdenhosa ignorancia: os que vêem de perto os dois povos, distinguem, percebem as differenças.
Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, pescadores puxando uma embarcação para terra, década de 1900. Arquivo Municipal de Lisboa |
Serenos na paz. furiosos e indomitos na guerra, temos a confiança dos fortes. a melancolia dos concentrados, a esperança dos sonhadores. Raça muito original, quando a Europa da Renascença deslumbrada voltou os olhos para a Greda antiga, íamos nós sulcando os mares caminho do Oriente, e abriamos ao mundo moderno, com o nosso esforço. com as nossas espadas, as portas do futuro! Finda a tarefa. terminada a epopea, fechamol a com chave d'oiro — os Luziadas — monumento grandioso, e sublime epitaphio das nossas glorias!
A grande obra portuguesa na civilização moderna, ninguem a pôde negar — ficou eternisada na historia, glorificada pela poesia: Valeu aqui a penna á espada, que, se assim não fóra, tambem da gloria nos esbulharia a humanidade agradecida.
Costa de Caparica, Alberto Carlos Lima, colégio do Menino Jesus e casas típicas de pescadores, década de 1900. Arquivo Municipal de Lisboa |
A lingua em que se narram taes factos é, como elles, immortal, e os seus monumentos mais duradoiros do que o marmore e o bronre, ficarão attestando ás porvindoiras edades os portentosos feitos d'este povo, que, pequeno no território, foi grande na terra e nos mares, hasteou o seu pendão e fundou colonias nas terras africanas, descobriu o caminho da India, aproou com as suas esquadras ás terras de Santa Cruz, e alli levantou um novo imperio; e em todas estas emprezas, cada uma das quaes bastaria para a gloria duma nação, deixou memoria eterna do heroismo dos seus soldados, da magnanimidade dos seus capitães!
A Praia do Sol, Panorama dos Capuchos, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 107, década de 1930. Bosspostcard |
É, pois, nesta riquissmta lingua — manancial tão abundante e generoso, que o não esgotaram todos os que n'ella têem bebido, desde Fernam Lopes até Camillo Castello Branco — que são esctiptas as Georgicas e as Lyricas, a que Bulhão Pato, o eminente poeta, colligindo as, deu o nome de "Livro do Monte".
Zacharias d'Aça.
(1) Occidente n.° 647, 15 de dezembro de 1896
Leitura relacionada:
Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896
Informação relacionada:
Bulhão Pato na colecção da Hemeroteca de Lisboa
Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico, Lisboa, João Romano Torres, 1904-1915
Occidente n.° 650, 20 de janeiro de 1897
Tema:
Bulhão Pato
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