sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Grande desordem na Costa de Caparica

Hontem, pelas 3 horas da tarde, constou no gabinete dos reporters, no governo civil, que pouco antes tinham desembarcado na ponta dos vapores no caes do Sodrè, duas macas conduzindo dois homens feridos, n'uma grande desordem, que se dera, de manhã,na Costa de Caparica, os quaes haviam seguido para o hospital de S. José.

Grand Hotel Central na Praça dos Remolares (futura Praça Duque da Terceira) e Estação dos Vapores Lisbonenses no Cais do Sodré, 1892.
Arquivo Municipal de Lisboa

Partimos immediatamente para aquelle hospital, afim de colher esclarecimentos sobre o caso. Quando porém, chegámos ao largo de S. Domingos, avistámos uma maca pousada no chão á porta d'uma taberna, logo ao começo da calçada do Garcia.

Lisboa, Largo de São Domingos no início da Caçada do Garcia.
Arquivo Municipal de Lisboa

A maca conduzia um dos feridos na desordem da Costa. Os conductors, quizeram dar uma tijella de caldo ao enfermo que vinha bastante debilitado. 

Acompanhavam a maca um genro e um irmão do ferido, os quaes nos deram explicações da desordem e suas consequências, pela seguinte forma: 

Logo de manhã, pelas 8 horas, o mestre de rêde Adriano Rodrigues, tendo uma porção de peixe na praia da Costa, negou-se a vender um lanço ao comprador João dos Santos, de 38 annos, casado com Francisca do Rosario, da qual tem 3 filhos, e a mulher gravida, estabeleceu se altercação entre os dois e seguidamente envolveram se em desordem, na qual tomaram parte alguns homens da companha do mestre Adriano Rodrigues, e diversos compradores de peixe que seguiram o partido de João dos Santos. 

Costa da Caparica, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, cliché João Martins, década de 1930.
Fundação Portimagem

No meio da lucta, o mestre Adriano puxou d'uma navalha de ponta e mola, e deu três facadas no lado esquerdo do peito de João dos Santos. 

Vista da Costa de Caparica tirada a partir das terras da Costa
Abel Rezende, gramofones, discos e artigos fotográficos, Rua Capitão Leitão, 48 3°, Almada
Arquivo Histórico de Almada

Na refrega também foi aggredido com cacetadas Joaquim Cardoso, de 20 annos, solteiro, natural de Sinfães, concelho de Vizeu, filho de Joaquim Cardoso e de Francisca Jayme. Este homem fazia parte da companha do mestre Adriano. 

Serenados os ânimos, tratou-se de conduzir os dois aggredidos para o Monte, onde foram pensados pelo medico da localidade, vindo em seguida para o hospital de S. José. Ambos estão em estado grave. 

Professor João Barreira (médico na freguesia do Monte)
Columbano Bordalo Pinheiro, 1900.
Wikimedia

O faquista não foi preso. (1)


(1) Diário Illustrado, 11 julho de 1893

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

O anjo ancorado

O seu livro de estreia foi "Os Caminheiros e Outros contos", que o situou, de, imediato, na primeira linha dos nossos ,escritores mais vigorosos e originais.

Fonte da Telha, José Cardoso Pires, à direita, na companhia de Alves Redol (detalhe),1957.
Hemeroteca Digital

O vo­lume suscitou apaixonantes polémicas, que se reacenderam mais tarde, com a publicação dos seus outros dois li­vros, "Histórias de Amor" e «Anjo Ancorado". (1)

Em primeiro lugar o assunto de O Anjo Ancorado apresenta-se, mais do que em qualquer outro livro de José Cardoso Pires, trabalhado em cortes ostensivos e rigorosos de planos, conforme a sua propensão para os contrastes profundos.

José Cardoso Pires com a esposa e uma senhora inglesa,
June,  amiga do casal, em Fonte da Telha, local on de escreveu,
totalmente, o novo romance "Anjo Ancorado", 1959.
Hemeroteca Digital

Estrutura intencional: dum lado o carro de desporto de João (um objecto real, com determinada função); do outro a aldeola de pescadores «sem barcos para discutirem com as águas do oceano» (um povoado sem função concreta, que Guida, para acalmar o seu remorso burguês ainda por cima abstractiza quando o imagina criado por uma onda bíblica).

Dum lado a caça desportiva («um mero, um realíssimo mero» apanhado a dormir ou como que por dádiva de Júpiter); do outro, a caça ao perdigoto (uma ave que mal cabe na cova de um dente, «uma coisa que ainda mal saiu do ovo» pela qual o velho arrisca a vida na ponta das falésias) — e, indo até mais longe, num terceiro plano, outro tipo de caça: a perseguição, à distância, que os rapazitos do lugar costumam fazer ao velho sempre que este descobre um pássaro. (...)

Luta pela vida demonstrada pelo princípio dos contrastes. Uma luta tão expressamente primitiva que se nos impõe como uma metáfora do struggle for life da lei da selva. (2)

José Cardoso Pires, à direita, na companhia de Alves Redol.
Fonte da Telha, 1957.
Hemeroteca Digital

Em O Anjo Ancorado o ambiente ressalta do contraste entre o casal e o automóvel e a aldeia e seus habitantes. 

Nos últimos tudo é primitivo, a começar pela fome, enquanto nos primeiros — burgueses palavrosos de má consciência — a modernidade da técnica lhe aumenta o conforto. 

Suave descida aos infernos (atente-se na descrição da travessia da aldeia e nos comentários de Guida Sampaio) há tanta soberba e distância entre os dois passageiros e os aldeões como entre o carro e «os casinhotos de S. Romão».(...)

José Cardoso Pires e Alexandre O'Neil.
Costa da Caparica, 1958.
Hemeroteca Digital

A luta travada entre o homem e o mero e entre o velho e o perdigoto, assim como o inútil combate contra o tempo em que se amargura Ernestina, combate de que o astuto garoto será árbitro, são águas-fortes destinados a avivar o clima dos desocupados e a torná-lo responsável daquela pesada desigualdade. (3)


(1) O Seculo Ilustrado 1133 19 de setembro de 1959
(2) CITI: Mais profundamente... O Anjo Ancorado
(3) CITI: O Anjo Ancorado

Leitura adicional:
Publico Magazine 19 de junho de 1994

Artigos relacionados:
A charrua entre os corvos
Costa da Caparica de José Cardoso Pires
A janela de José Cardoso Pires

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

A charrua entre os corvos

Há anos um pescador da Fonte da Telha a caminho da Albufeira descobriu, em certo ponto da costa, uma charrua carcomida, apontada para o mar. Encontrou-a entre as ervas do areal, cravada a fundo e de rabiça levantada, como se tivesse ido longe de mais na sua tarefa de lavrar a terra e estacasse, num grande pasmo, diante do oceano. Os maçaricos e os corvos-marinhos cobriam-na de excrementos, a brisa salgada esfarelava-lhe o corpo de ferro. 

Delcampe

À distância, o pescador em viagem julgou tratar-se de algum cadáver sobrevoado por pássaros vorazes. Mas quando se aproximou e reconheceu a charrua, olhou o mar, olhou o deserto de areia, olhou, enfim, a mata brava que se alongava por toda a costa, e perguntou a si próprio por que milagre aquele engenho de camponeses vencera a floresta e as dunas e viera morrer ali, entre os corvos do mar. 

Nem ele, nem qualquer dos pescadores das redondezas, e nem mesmo os solitários mercadores que, no verão, percorrem a Praia tocando burros carregados de peixe, ninguém tinha uma resposta para esse mistério. Passavam por lá, interrogavam-se, se é que se interrogavam, e, em conversa, diziam: «Mais adiante, em passando o arado... » ou «Para lá do arado, antes das Algaceiras ...» E essa era a forma de consagrarem um sinal, uma referência, mesmo quando essa referência, jazendo definitivamente soterrada, não passasse de um eco indecifrável. 

Em Maio de 50, meses depois de terem sido publicados os contos de «Os Caminheiros», a charrua ainda lá estava. Era simplesmente uma haste de madeira (sugada como a dos mastros ou a dos remos ao sol das praias) e um anel de ferro pendurado nela. O resto, o cabo que a mão do lavrador tinha governado e o dente de aço que rompera a terra, tudo estava sepultado pelos ventos do areal e se resumia, como disse, a um eco, memória do homem. 

Nessa ocasião - recordo-me como se fosse agora - pensei não num cadáver devolvido à terra pelas ondas, como imaginou o pescador da Fonte da Telha, mas, pior ainda, naquilo que o desprezo, a natureza ou as forças do mal roubam ao indivíduo, privando-o dos seus gestos úteis à comunidade. Pensei, explicando-me melhor, em que, nesta data (1963) e neste mundo de hoje (idade dos astronautas), a fome elementar é cada vez menos um tema de Literatura para ser unicamente objecto de resolução científica rigorosa e de estudo planificado, tal como o foi a lepra, por exemplo, que se despojou das suas mitologias do Velho Testamento logo que a medicina social lhe vibrou o golpe adequado.

Delcampe

Hoje os erotismos da fome perderam a ênfase bíblica. - nem seduzem sequer os escritores populistas - os mais exigentes, entenda-se. Os bem instalados passam por cima disso, sem remorso; falam dos romancistas da miséria como se a miséria fosse um flagelo natural que só ao futuro cabe resolver universalmente. Isto tratando-se de um mal de que se conhecem exactamente as causas, o vírus e a sua propagação, um mal bem definido e de terapêutica comprovada. 

Mas - continuei eu a discorrer, a propósito da charrua na praia - a vida primária e as desigualdades primárias existem em 1963 à face da terra. É legítimo que se ignorem? Deveremos reduzi-las à sua explicação «física» ou à responsabilidade colectiva? 

Penso que não. Penso que elas dispõem de dimensões morais, isto é, literárias, que as ampliam de significado e as não limitam à mera patologia social. A fome não é apenas um problema de sobrevivência, é uma questão de impossibilidade do exercício das capacidades do homem e do seu rendimento como tal. E nesse sentido, a charrua entre os corvos (marinhos ou não, pouco importa) apresenta-se-me como uma imagem significativa. .Não a vejo como ilustração do espírito medieval, como instrumento insólito abandonado por um camponês em território de pescadores. Nem tão pouco como último destroço da moral dos lavradores, todo temerosa de progresso e tão apegada às hierarquias divinizantes. Já não.

Alexandre O'Neill, Fernando Babo, José Cardoso Pires e Mário Cesariny em Cacilhas no dia 17 de maio de 1947
Jornal de Letras, 4 de novembro de 1998

Para mim a charrua lançada aos corvos é um exemplo figurado da amputação do homem, um testemunho de certa destruição que se exerce, não imediatamente sobre ele, criatura física, mas sobre os instrumentos que o rodeiam, sobre os gestos e sobre as manifestações de actividade que o tornam utilizável como homem. E isso é uma outra espécie de fome, uma outra destruição.

Ao rever agora os contos do presente volume, sinto que muitas destas coisas podem vir a propósito da maioria deles. Da maioria, não de todos. 

Hemeroteca Digital

São em grande parte histórias de desocupados - não no sentido naturalista do termo, espero -, de criaturas privadas de meios de realização, num plano objectivo em que as crepuscularidades da angústia não desempenham,. mea culpa, o papel tantas vezes conveniente ao gosto preocupado dos espectadores. Se nalgumas destas páginas, no entanto, isto que digo não é evidente, compreende-se: trata-se de uma colectânea em que reuni contos de dois livros diferentes, um publicado em 1949, o outro em 1952, e que correspondem a uma concepção de narrativa para mim bem localizada e, sob alguns aspectos, distante. Por esse motivo, ao organizar este volume, ocorreu-me intitulá-lo «Visita à Oficina», o que era uma maneira de regressar, através de um punhado de histórias, a imensa experiência literária já vivida e, ao mesmo tempo, unia oportunidade de confronto e de meditação sobre o artesanato do escritor, sobre o jogo de fortuna e azar em que se lança alguém quando descreve um pouco do seu tempo. 

Jogo de azar é, pois, o palpite, o pressentimento, a sorte de intuição com que todo o narrador, bom ou mau, estabelece certas relações para definir a natureza. Mas é mais do que isso, e mais importante. No fundo, talvez os desocupados deste livro devam a uma situação de acaso (exterior a eles, a sua vontade) as formas de existência que lhes são impostas... Se formos a ver bem, o facto é tanto mais verdadeiro quanto é certo que o indivíduo destituído de autoridade está condenado a tropeçar a cada passo nos caprichos daqueles que a detêm como exclusivo.

Fonte da Telha.
Delcampe

Afãs isto levar-me-ia certamente ao ponto inicial: à charrua entre os corvos, aos desocupados, que são criaturas sem autoridade cívica, etc., etc., etc." (1)


(1) José Cardoso Pires, Jogos de Azar, 6.ª edição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1990

Mais informação:
Hermeroteca Digital: José Cardoso Pires, Jogos de azar

Artigos relacionados:
Costa da Caparica de José Cardoso Pires
A janela de José Cardoso Pires

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Pedra d'Armas

Portaria ao Juiz de Fóra de Almada, para que combine com o Juiz de Fóra de Cezimbra, os meios mais eficazes para a prizão dos dezertores e salteadores que se acoutão na Costa de Caparica.

Google Books

Portaria ao Juiz de Fóra de Cezimbra, para que combinando com o Juiz de Fóra de Almada jajão de effectuar a prizão dos dezertores e salteadores que se acoutaão nas companhias dos pescadores Costa, e de que faz menção na sua conta de 25 do corrente. (1)


Google Books

O Juiz de Fóra de Almada dá parte, que na noute de 27 para 28 de Maio, com auxílio de Tropa, conseguiu prender na Costa de Caparica desanove individuos, alguns dos quaes lhe estão denunciados por desertores, e que trata saber com toda a individuação, quaes são os seus Regimentos, e Companhias, para os poder remetter com estas declarações; e dos que não são desertores, tirar as averiguações necessarias. (2)

Pedra d'Armas com Brasão e Coroa do Reino de Portugal antes colocados na "casa da coroa" na Costa de Caparica
Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves
caparica news


(1) Diário do Governo n.° 107, quarta-feira, 8 de maio de 1822
(2) Diário do Governo n.° 138, sexta-feira, 14 de junho de 1822

sábado, 28 de setembro de 2019

Cruz Louro, pintor e ilustrador

Nas minhas horas vagas e, apenas para alimentar o meu espírito, satisfazendo assim a necessidade com que procurava completar-me, pintava ou desenhava. Sem saber porquê, a pouco e pouco fui abandonando os pinceis e as tintas, ficando apenas com o lápis e a tinta da China.

Costa da Caparica, Praia do Sol.
Bairro dos Pescadores, Cruz Louro, 1934.
BestNet Leilões

Sem qualquer preocupação de seguir uma escola ou imitar A, B ou C, seguia indiferentemente ao que no Mundo se desenrolava nos variadíssimos campos das Artes Plásticas, o meu caminho ou destino, sem qualquer ambição ou preocupação que não fosse aquela de conseguir realizar aquilo que os meus olhos viam e os meus sentidos apreciavam.

José Raimundo Gonçalves por Cruz Louro em 1934
João Raimundo Gonçalves

A Beleza estava em todos os lados para onde me voltasse e, a minha maior ambição, era a de transmitir ao papel, tudo quanto via e sentia, sem a transfigurar, sem mentir, sem fugir à Verdade. Queria ser descritivo, queria ser mais do que um escritor ou um poeta; queria, enfim, que os meus desenhos falassem e contassem aos vindouros, à História, pela imagem, por onde passei e pelo que desenhei. [Te-lo-ei conseguido?] (1)

Costa da Caparica, interior de uma barraca de pescadores, Cruz Louro, 1930.
Delcampe

Sem qualquer apoio económico, trabalhou sempre para se sustentar. Aos 26 anos, com a profissão de "empregado no comércio", conclui o curso da Escola Comercial de Ferreira Borges (Carta de Curso de 14 de Julho de 1930).

Costa da Caparica, Convento dos Capuchos, Cruz Louro, 1933.
Delcampe

Em 1933 termina o curso de "Habilitação às Escolas de Belas Artes" na Escola Industrial de Fonseca Benevides (Diploma de 21 de Agosto de 1933). Por esta altura já deixara o trabalho no comércio, tendo passado a desempenhar funções de "servente-jornaleiro", primeiro na Escola Industrial de Fonseca Benevides, Arte Aplicada (de 7 de Março de 1933 a 31 de Janeiro de 1935) e depois na Escola Industrial de António Arroio (de 1 de Fevereiro de 1935 a 8 de Junho de 1936).

Fonte da Telha, Dois barcos, História pela imagem dos barcos na Costa de Caparica, Cruz Louro, 1971.
Cruz Louro

Ainda nesta escola desempenhou funções de "auxiliar de secretaria" entre 9 de Junho de 1936 e 5 de Fevereiro de 1942.

A Fonte da Telha (Costa da Caparica, Praia do Sol), Cruz Louro, 1937.
  Cruz Louro

Durante o período de vida em Lisboa, morou no Bairro dos Pescadores, na Costa da Caparica, realizando várias exposições em Lisboa e Almada. (2)

O pintor Francisco da Cruz Louro
(retratado a guache por Manuel Lima em 1932 na Costa da Caparica).
Vida e Obra do Pintor Cruz Louro

Uma nota apenas. Concluído o Curso Superior de Pintura, de 1.° Classe, em 17/3/1951, com a classificação de 15 valores, na Escola Superior de BeIas Artes, do Porto, dedíquei-me de alma e coração ao ensino de Desenho. Fui professor nas seguintes Escolas e Liceus: Escola de Arte Aplicada de António Arroio, de Lísboa; Escola de Arte Aplicada Soares dos Reis, do Porto; Escola lndustrial e Comercial de Guimarães; Escola Industrial e Comercial de Marinha Grande; Professor e Director na Escola Técnica Elementar de Margão (Estado Português da índia); Escola Industrial e Comercial de Pangim (E. P. I.); Escola Técnica Elementar de Mapuçá (E. P. I.); Professor e Professor-Secretárío no Liceu Nacional de Quelímane (Estado Português de Moçambique); no Liceu António Enes, de Lourenço Marques (E. P. M.); Escola Técnica Elementar Joaquim Araújo, Lourenço Marques (E. P. M); Escola Técnica de Serpa e na Escola lndustrial e Comercial de Moura (Secção Liceal). (3)


(1) Francisco da Cruz Louro, Autobiografia em Álbum Ilustrado - Terras de Portugal, Edição do autor, 1973
(1) Ana Catarina Louro Parente, Vida e Obra do Pintor Cruz Louro, 2014
(3) Francisco da Cruz Louro, op. cit.

Mais informação:
Cruz Louro
As Nossas Raízes (fb)

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Companha do Anjo da Guarda (na faina da arribação)

Embora existissem outras artes de pesca, a Arte Xávega que pescava desde o S. João (24 de Junho) até finais de Outubro sempre que o mar o permitia, era responsável por trazer na faina muitos homens e mulheres divididos em companhas, termo que na Arte Xávega designa as pessoas, as redes e o próprio barco.

Costa da Caparica, colecção Passaporte-Loty n° 64, Pescadores enrolando as cordas da rede, c. 1960.
Delcampre

Em cada companha imperavam os laços de parentesco e de origem, sendo cada uma conhecida pelo nome do barco com que pescavam. Estavam subordinados a uma hierarquia rigorosa em que cada um dos membros ocupava um lugar específico em função das tarefas que desempenhava na faina da pesca. 

Costa da Caparica, colecção Passaporte-Loty n° 65, Pescadores varando um barco, c. 1960.
Delcampre

A companha era uma espécie de família alargada, formando um grupo coeso em permanente competição com as outras companhas, rivalizando no sucesso dos lanços, através da quantidade e qualidade do peixe trazido à praia em cada lanço.

Costa da Caparica, colecção Passaporte-Loty n° 66, Pescadores arrastando o seu barco, c. 1960.
Delcampre

Não é possível descrever aqui a dureza do trabalho quando a pesca se realizava sem recurso a quaisquer meios mecânicos e todo o esforço no mar e em terra era realizado por músculos humanos. (1) 

Costa da Caparica, colecção Passaporte-Loty n° 67, Pescadores arrastando o seu barco, c. 1960.
Delcampre

Contudo, enquanto tentativa de aproximação faremos uma descrição resumida e necessariamente incompleta da composição da companha e dos principais momentos que pontuavam cada lanço da Arte Xávega. (1)



(1) Francisco Silva, Costa Fronteira, Fronteiras Urbanas Ensaios sobre a humanização do espaço, 2014

Informação relacionada:
O Património Marítimo-Fluvial. Um Valioso Bem Cultural a Preservar.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Ao largo! Os mesteirais do mar

O seu esforço, o seu heroísmo e a sua tragédia

Rumoreja doce, a onda, em embalo e acalento. Dedos de espuma afloram a epiderme da terra, em caricias longas de namorado. O sol mordisca ao de leve a tona glauca das aguas, irisando a crista franjada das vagas pequeninas. Gaivotas, aos bandos, abatem as azas pandas sobre a campina movediça e mergulham os colos alvos na babujem do engodo, gualdindo solregas grandes tassalhos de peixe. Ao largo, o mar, percorrida toda a gama dos verdes, vai acabar azul, confundindo-se com o ceu. Passam revoadas de alciones. É a alegria da manhã.

Na Costa da Caparica - Alguns aspectos da vida do pescador (cliché de A. Santos)
A Batalha, n.° 21, 21 de Abril de 1924

Na praia, sobre a areia loira, garotos tisnados, como santolas loucas, retouçam ao sol. Os barcos varados, brilhantes de côres, trescalam a maresia. Dos casebres negros, encolhidos contra-o-vento, vem a falacia cantada do mulherio e um fartum acre de peixe e alcatrão. Velhos em farrapos, faces rugosas, cobertas de liquens do, mar, ou glabras polidas como rocha batida da vaga — compõem serenamente as redes trigueiras.

Surge agora um grupo de homens falando alto, barbaramente. Molda-lhes o tronco solido uma sueira grossa e a cabeça chamorra ocultam-na no longo barrete, herdado dos seus avós do Oriente remoto. É a companha. O mestre, um alto, ruivo, tem um sueste que brilha e todos levam á vela as pernas vermelhas, velosas.

— P'ró mar?! perguntam os que ficam, na quietitude marasmada do sonho.

— P'ró mar ! — respondem os que seguem para a labuta moirejada, para a aventura, quiçá para a morte. E lá vão gingando, nodoa de sombra na claridade da praia.

Acomodam-se os utensilios a bordo.

— Arreia ! — E o barco desliza suavemente por sobre os paus encebados. Feita a manobra, a postos a companha, ao sinal da largada, todos dizem:

— Voga!

O mar tem afagos de extranha volupia ao beijar rochas hirtas, torturadas. Singram ao largo velas de purpura, fulgindo ao sol, e outras cinzentas plumbeas, como ceu de tempestade. É assim auspicioso e agoirento o espectaculo do mar.

*
*     *

Ferrado o pano, o barco apoitou, que o fundo fofo de algas era proximo. Á proa, o-do-remo-da-roga vinha espalhando mancheias de engodo, num gesto largo de semeador. E começou a faina da pesca.

*
*     *

O mar é a grande oficina da liberdade. Onde quere que deitem as suas redes ou mergulhem as suas linhas, os que dele vivem e nele morrem, nunca ouvem: — "Alto! Isto pertence-me !" O — "é meu" — não se diz no mar. O mar é de todos. Não tem leis, nem balizas.

O pesqueiro que hontem foi farto, hoje está deserto. Vamos que o mar é largo e lá em baixo reina a abundancia!

Emigram as especies marinhas, veem outras novas; a tempestade afugenta e mata os pescadores, logo a bonança os alicia e favorece. É assim o mar, onde tudo é mudavel e transitorio e só constantes a sua infinita vastidão e deslumbrante riqueza. E mais — o seu augusto misterio...

Que o mar tem indefinidas, espirituais influencias nos seres e nas almas, sobretudo — nas ideias. É um eterno gerador de beleza e pira onde arde constante o foge da liberdade. Até onde chegam as suas emanaçães sadias, a vida tem uma agitação promissora. Os continentes que o mar penetra e recorta são os mais progressivos, aqueles onde as ideias dc liberdade florescem com mais pujança. Exemplos? Olhemos para, o mapa do mundo.

O mar é o simbolo da Revolta e da Pureza. Não ha dejecto que o manche, nem obstaculo que não derrube.

*
*      *

Acabara a pescaria. No fundo do barco a farta colheita — triunfo daquela tarde — fulgia nas escamas brilhantes do pescado, que manchas baças de epidermes viscosas cortavam. Viam-se peixes de todos os tamanhos e das côres mais bizarras, desde o safio, longo, sombrio, coleante, ennovelando-se em contrações agónicas ao peixe-rei, pequenino, vermelho-tenso, saltitante e brincalhão como um menino folgado. O mestre, agarrado ao remo da espadela, mão em pala sobre os olhos claros, murmurou para companha:

— Cia!

Havia que virar de bordo rápido. Uma aragem fria arrepiava a flor das aguas, cortando; e uma mancha de tinta alastrava no horizonte, para o Sul.

*
*     *

Foi assim: O vento cresceu; tiveram que ferrar a vela e apear o mastro. Começou a cavar vaga, abrindo beiçanas de chaga com pús e gangrena nos bordos A abobada do ceu desceu mais e, de negra que era fficou amarela esgazeada. Ouviu-se, a principio ao longe, a restolhada dos trovões. Depois, mais perto, cada vez mais perto, o estalido seco dos coriscos, abrindo clareiras nos ares, logo seguidas do ribombo soturno.

O vento cresceu ainda. Chuva, em cordas grossas, vivas, caia. Alijada a carga, o barco era um ponto negro, longo tempo oculto agora nos desfiladeiros lugubres, presagos das ondas, logo projectado para o alto no dorso sombrio da vaga.

Deveria ser noite já. A tragedia da noite, em que se é mais só e desapercebido, para lutar com a dôr. O barco derivava á tôa. Ele só e a imensidade em combate singular. Dentes cerrados de anciedade, olhos pávidos de terror, dorsos abroquelados ao peso da desgraça, suando, resfolegando, praguejando e rezando — a companha ora esgotava o barco, ora se atirava para um bordo para o equilibrar, ora caia de bruços quando um golpe da vaga empinava ao alto o esquife. E assim esteve horas, na agonia.

Depois, o mar, enraivecido, torvelinhou, comprimiu mais, num abraço de desespero, a fragil presa. Rangeram as taboas, rugiram os homens e, num ultimo arranco, o ponto negro desapareceu na vastidão imensa do mar em furia.

Na praia, encharcada, mulheres de negro, com os filhos ao colo, gritavam:

— Misericordia!

O heroismo ignorado da brava gente do mar é temperado em beleza; mais — em sacrificio. Mal enxutas as lagrimas de dó pelos que se foram, voltam os pescadores á labuta, ao ganha pão dos seus, á paixão do mar. Face á Dôr e á Morte, são altivos, porque, mais do que quaisquer outros seres humanos — são livres. O mar que lhes dá pão e ensino, gozo para os sentidos e jazida na morte, dá-lhes tambem — nobreza. (1)


(1) A Batalha, Suplemento Literário e Ilustrado, n.° 21, 21 de abril de 1924

Artigos relacionados:
Os pescadores de Raúl Brandão
Mário Domingues (1899-1977), escritor
etc.

Leitura relacionada:
Casa Comum, A Batalha, Suplemento Literário e Ilustrado. Propriedade da C.G.T.
A Batalha, Suplemento Literário e Ilustrado, dados editoriais
Artigos de Mário Domingues em "A Batalha, Suplemento Literário e Ilustrado"

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Os pescadores de Raúl Brandão

Atravez dos Livros

As suas ideias, os seus sentimentos e a sua beleza

Já está publicado o anunciado livro "Os pescadores" de Raúl Brandão cujas primícias de um excerto já foi dado aos leitores deste semanário literário gozar, devido à gentileza muito especial do autor. 

Tratando-se de um escritor que já conquistou de há muito a sua consagração definitiva, embaraçados nos seriamos para apreciar o seu estilo conciso e brilhante, Limitamo-nos, portanto, a dizer que Raúl Brandão afirma mais uma vez neste seu trabalho as eminentes qualidades de escritor inconfundivel, de castiça correcção e que sabe levar a extremos de perfeição a magia da palavra literária.

No prólogo deste seu ultimo trabalho diz-nos Raúl Brandão que quando regressa do mar vem sempre estonteado e cheio de luz que o trespassa. Foi assim tambem que nos sentimos ao concluir a impressionante leitura do seu livro que é uma verdadeira epopeia, um esplêndido cântico ao mar infinito e misterioso. 

"Os pescadores" são o primeiro volume da serie "A vida humilde do povo português" que aquele poderoso escritor se propõe escrever. Nas suas páginas palpita a existência da dôr e sacrificio que é a vida do pescador, agitam-se as suas cóleras, e os seus desesperos, seja êle da Foz do Douro ou da costa de Caminha à Póvoa, da ria de Aveiro ou de Mira, das Berlengas ou da Nazaré, de Lisboa, Setúbal, Cezimbra e Caparica, de Olhão, Tavira ou Sagres.

Cliché António dos Santos
[Pescadores na Costa da Caparica]
A Batalha n.° 5 (suplemento literário), 31 de dezembro de 1923

Os pescadores são a narrativa, ora suavemente enternecedora, ora ligeiramente graciosa, ora intensamente dramática, de vida, carácter, costumes e da faina rude e das condições de trabalho do pescador de Portugal; e neste largo campo de sensações o autor, sob uma forma interessante, atraente e impressionista, faz-nos conhecer minuciosamente as diferenças etnicas caracteristicas das nossas colónias pescatórias, alguns tipos magnificamente desenhados de pescadores, termos familiares das regiões, a paisagem e riqueza das nossas costas, as várias espécies de peixe que mais abundam nas nossas águas, embarcações, aparelhos e processos de pesca, dando-nos, em episódios de acção profundamente dramática em que se movimentam figuras cheias de sentimento e de caracteres magistralmente acentuados, a impressão da angustia indefinida em que vive essa gente, da tortura inquisitorial, do constante sobresalto dos mães e das mulheres que veem partir os seus homens para o mar, e das doloridas almas das vitimas que caminham resignadas, fatalistas, para o sacriticio. 

A morte do arrais — encontrado morto no cabedelo, no dia seguinte ao da tempestade, com as mãos crispadas agarradas ainda ao leme do barco que o mar, na sua fúria indomável, partiu pela quilha, não é o único quadro trágico que o livro contem, se bem que seja um dos mais pungentes lances, mordido de cores singulares, em que o clamor do mar que mete mêdo se confunde com os gritos de aflição e de desespêro das mulheres e os choros das crianças no cais, em que a cólera do mar porfia com o esfôrço hercoler de salvação dos homens. De não menos emocionante intensidade aquela outra scena da morte de dois irmãos encontrados unidos um ao outro, o mais velho erguendo nos braços o mais pequeno procurando salvá-lo. Razão tinha a mãe, a Maria da Sé, em não querer deixar o mais pequeno ir ao mar! Quando o surpreendia com os outros brincando nas poças com barquinhos de cortiça ela bem lhe batia para que ele perdesse o sestro. Mas o mar atraia-o  irresistivelmente. E na ansia de ir ao mar, como o pai, como os irmãos, como os homens, lá foi, até que lá ficou como já tinha ficado o pai... 

Depois vem a descrição de como vive toda essa gente.

A de Mira vive com simplicidade nos palheiros, casa ideal para pescadores ou pra um velho filósofo como eu. É construida sobre espeques na areia, com táboas de pinho e um fôrro por dentro aplainado. Duram tanto ou mais que a vida; cheiram que consolam, quando novas, a resina, a arvore descascada e a monte; ressoam como um velho buzio e são leves, agasalhadas, transparentes. Por fora escurecem logo, e envelhecendo caem para o lado ou para a frente; por dentro conservam uma frescura extraordinaria, e quando se abre uma janela, abre-se para o infinito. No chão dois tijolos para o lume, em esteiras alguns peixes a secar. Do Natal até maio não há pesca: Vão cavar para o Alentejo ou para mais longe, e as mulheres ficam em casa com os filhos. Alem da jorna, que regula de quatro mil reis a dois mil e quinhentos por dia, todos teem o seu quinhão nos dias de fartura — alguns punhados de sardinha ou de chicharros. Felizes ou infelizes? Não sei bem. Apesar de abandonacios pelo Estado, que os rouba, cobrando-lhes de fisco uma exorbitancia, quatrocentos contos o ano passado e quasi o dobro este ano, não lhes dando em troca uma maternidade, uma pequena biblioteca que os instrua um médico, uma botica, uma estrada; apesar de abandonados pelos homens, sem organização nem instrução, sem um padre que lhes fale em Deus ou nos coisas eternas (a capelinha de madeira está fechada) — esta gente é tão fundamentalmente boa que ha cinquenta anos para cá, não consta de um roubo, de um crime ou de um delito. Pode-se dormir com a porta aberta, Eu nunca fechei a minha.

Quando chegam a velhos e não podem trabalhar, como não ha um simulacro de cooperativa, e a lei do seguro os não abrange, lá se socorrem uns aos outros como podem. A miséria e quasi desconhecida neste pequeno povo de mais de duzentos fogos e de cérca de mil habitantes. Mira, punhado de casebres a apodrecer — é um mundo. A vida aqui não é uma mentira. E todos os dias a arriscam, porque quási todos os dias ouço as mulheres implorando Deus, quando o barco vai ao mar e se enche de agua.

Até aos ultimos anos ninguém enriqueceu em Mira com a pesca.

Mas agora, com os preços excessivos do peixe, tudo mudou de figura. já o ano passado se ganhou muito dinheiro, quando o cabaz de sardinha dava vinte mil reis. Que fará este ano, que regula entre cinquenta e sessenta? ha lanços de cinco contos, e já e diz que alguns se sentam em libras sôbre os buracos que abrem na areia para as esconder. As casas de salga fazem tombem im grande negocio. Enriquece o almocreve, o patrão e o negociante; só o pescador continua pobre e despreocupado. O mar nunca acaba e o mar é deles...

Os pescadores da Nazaré são ingénuos e supersticiosos. Um crime é raro. Não ha policia. Teem um medo ás bruxas que se pelam.

E o pescador de Cezirnbra? Este homem é de instinto comunista. Se um adoece, Os outras ganham-lhe o pão: recebe o seu quinhão inteiro. Se morre, sustentam ate a viuva e os filhos entregando-lhe o ganho que ele tinta em vida. Dão ao hospital e ao asilo uma parte do pescado. Toda a gente tem direito a ir ao mar — toda a gente tem direito á vida. Vai quem aparece, desde que seja maritimo. Acontece que o barco leva hoje quarenta h 'meus e leva vinte amanhã... O produto das artes é dividido em quinhões iguais pela campanha. A pesca do anzol é uma espécie de cooperativa, e a barca quasi sempre dos pescadores. 

Mas este sentimento comunista é vulgar entre a gente do mar.


O pescador é comunista e alegre, o montanheiro desconfiado e triste. 

No mar não ha marcos... diz o autor ao estabelecer o contraste entre Tavira, terra de montanheiros e Olhão, terra de pescadores. 

E continuando:

O maritimo de Olhão tem, como nenhum outro, um grande sentimento de igualdade: estende a mão a toda a gente. É que no mar os homens correm os mesmos perigos. São tambem profundamente religiosos, porque estão a toda a hora na presença de Deus. Duas tábuas, a fragilidade e a incerteza, forçam-nos a contar consigo e com e companha. Arriscam a vida para salvar a dos outros: hoje por ti, amanhã por mim. Homens simples porque a profissão é simples e o meio, grande e eterno, não os corrompe. E como o mar abundante e prodigo não tem cancelas, são generosos, imprevidentes e comunistas. Detestam os tribunais, que não coompreendem, e ignoram a vida da terra. Se a mulher lhes morre, não entram em licitações com os filhos: deixarn-lhe a eles o barco e as redes, e tomem conta do resto. Reparei que em toda as casas havia uma gaiola com um pintassilgo. Os homens do mar tiveram sempre uma grande ternura pelas aves. 

E as mulheres? Não as esqueceu tambem Raul Brandão que no-las retrata com fidelidade e que se curva perante o seu esforço fisico e a sua energia moral, vendo-as calcar todo o dia as estradas vendendo o peixe, trazendo os pequenos ao colo, não se deixando dominar pela desgraça, ou fabricando a graxa, fazendo, lavando e concertando as redes, metendo hombro aos barcos para os deitar ao mar, trabalhando tanto ou mais que o homem, infatigaveis sempre e ainda lhes sobra o tempo para tratar da casa e dos filhos!

E ainda o pior para todas estas mulheres não é serem bestas de carga, dias atraz de dias encharcadas e escorrendo salmoura... A mocidade dura-lhes o que duram as rosas. Quasi sempre de uma belesa delicada, a mulher da beira-mar, com excepção da do Algarve, que é a "prenda da casas", logo que casa carrega com quasi todo o peso do lar, cresta-se e envelhece. Acusam-na de imprevideucia. Imprevidente é o homem, que gasta na taberna tudo o que ganha. O lavrador é avaro, tira o pão da arca a medo, como quem sabe o que ele lhe custa de esforços persistentes — o pescador, num dia de fartura, enche a casa de pão. E o mar inexgotavel não lhe foge... Mas ela não. Ela, remenda, poupa e vai arrancá-lo à taberna. Conheço-lhes desde pequeno os estremos de dedicação e de força diante da desgraça. Esta pobre mulher — terra virgem de ternura — merecia um lugar à parte na nossa terra, pela sua abnegação, pela sua energia, e até pela distinção de sentimentos. Em Mira o lar é sagrado. É-o em to-dos as povoações da costa portutuesa que ficam longe dos centro, corruptores. 

Mas o trabalho pesado não é ainda o pior — o pior é o sobressalto constante da sua vida. A da lavoura tem o lar seguro. Vem o inverno temeroso e a noite que não tem fim. Fechada no casebre, á roda do lar, ela, o homem e a moça, com o filho no berço (ao lado na corte os bois fartos esmoém) — sente-se tranquila; sabe que na arca puida ha meio carro de pão, o suor do seu rosto, e algumas moedas juntas. Pode o temporal abalar o teto de colmo e o nevão cair lá fora. Ardem os raizeiros no lume e as traves de castanho são eternas. O buraco tem alicerces de granito até ao fundo do globo. Quanto ao pescador, esse há-de ir ao mar, unico campo que lavra, ainda que arrisque a vida. Os pequenos pedem-lhe pão e ele não tem outro ofico. O tempo está mau e dias atraz de dias passam. — Sempre vou... — Ela sente o coração oprimido, mas cala-se. Sabe perfeitamente pelos outras o futuro que a espera. Quantas conheci sempre de luto, sem ir muito longe da minha casa!... Por fim diz: — Pois Vai... — As redes, a cesta e ele embarca. Fica com ela um bando de pequenos, e com o coração aos saltos põe o ouvido ã escuta... A onda brame no cabedelo com um eco prolongado. — Não tem duvida, é o mar que chama o leste. — Mas agora, a voz é outra, mais funda, o vento mudou para o sul e a barra cerra-se. — Irão arribar e Leixões?... — Que tempo no mar alto, na noite tragica, e só negrume em roda! Nas mãos de Deus! nas mãos de Deus!

Cabe-lhes sempre o pior quinhão da negra vida, Trabalham o dobro dos homens e vivem mais do que eles, porque sofrem muito mais. 

Retrato de Raul Brandão e de sua esposa, D. Angelina Brandão, Columbano, 1928.
MNAC

E é assim todo o livro de Raul Brandão. Por todas as suas paginas perpassam um suavissimo espirito de humanidade, um proposito de reabilitação e de justiça e um sentimento de respeito pelo Trabalho. 

"Os pescadores" é um livro que comove e... nos faz pensar... (1)


(1) A Batalha n.° 5 (suplemento literário), 31 de dezembro de 1923

Artigos relacionados:
Costa da Caparica por Raul Brandão em 1923

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Bulhão Pato, a consagração da scena

LIVROS NOVOS

Ruy Blas — Traducção em verso de Bulhão Pato. — 

Sem ser um Shakespeare, Victor Hugo ha de viver largos seculos no theatro. Nos seus dramas não se reflecte o homem, mas reflecte-se a humanidade. Ruge nos seus dramas a paixão impessoal, pelas mascaras de bronze desses personagens titanicos. 

Retrato de Bulhão Pato (detalhe), Columbano Bordalo Pinheiro, 1883.
Imagem: MNAC

Nas peças de Shakespeare sente-se a carne que se contorce, os nervos que vibram, o sangue que corre por baixo da epiderme dos personagens; nas de Victor Hugo não se veem senão as grandes mascaras de bronze, de cujas bocas sae o grande sopro lyrico das paixões impetuosas. 

Ruy Blas é de todos os dramas aquelle em que mais se sente sua impersonalisação. Tudo está fora do real, desde a mascara demoniaca de D. Sallustio até á mascara silenica de D. Cezar de Bazan, mas as grandes paixões, que podem agitar a humanidade, trovejam, riem, ou soluçam em todos aquelles labios que teem, em vez da carnação rosada da vida, a rigidez metallica dos labios das estatuas.

Entre Sallustio e Iago ha um abysmo; lago é um infame, Sallustio é a infamia. Romeu é um apaixonado, Ruy Blas é a paixão. Fallstaff e um typo immortal de bebado jovial, fanfarrão, vadio. D. Cezar é a propria symbolisação de todos esses vicios alegres.

Por isso Victor Hugo ha de viver no theatro como Shakespeare, este para convulsionar eternamente as platéas pela verdade humana dos seus personagens, aquelle para as inflammar nos arrebatamentos lyricos e infaustos da sua linguagem apaixonada e candente.

Por isso o que se cita de Shakespeare? as scenas: a do jardim de Julieta, a de Othello e lago, a de Shylock e Antonio, a de Ricardo III e rainha Anna, a de Macbeth e de lady Macheth, do rei Lear e o bobo, a de Hamlet e a mãe ou de Hamlet e Ophelia.

O que se cita de Victor Hugo? monologos, o de Carlos V no "Hernani", o do marquez de Nansis na "Marion Delorme" e o de Barba Roxa nos "Burgraves", o de Ruy Blas aos grandes de Hespanha no drama de que nos occupanios agora.

Quem falla em Shakespeare são os personagens pela boca do poeta, e em Victor logo o poeta pela boca dos personagens. O genio de Sbakespeare faz vibrar com o seu magico sopro os nervos das suas creaturas, Victor Hugo dá ás suas os nervos de bronze da sua propria lyra.

Bulhão Pato, que já enriquecera a litteratura portugueza com duas magnificas traducçães de Shakespeare, quis tambem traduzir Victor Hugo e pôz em verso portuguez esse magnifico Ruy Blas, a que alludimos ha pouco.

Pôl-o em verso portuguez de lei, n'esse magnifico verso solto hoje trocado pelo alexandrino magestoso e massudo, que arrasta o dialogo ao passo cadenciado das suas rimas alternadas. Foi extraordinariamente feliz n'esta audaciosa tentativa. No verso solto parece que vibra mais livre o latego de Ruy Blas, que dança mais descuidosa a jovialidade de D. Cezar, que suspira mais melodiosamente o lyrismo amoroso da rainha.

Ruy Blas por Bulhão Pato, O António Maria, 13 novembro de 1884 (detalhe).
Hemeroteca Digital

Oiçam o final da objurgatoria de Ruy Blas aos ministros:

Teu auxilio, o teu braço, ó Carlos quinto; 
Porque surcumbe a flespanha, a Hespanha extingue-se!

Aquelle globo em tuas mãos robustas,
O sol deslumbrador, que n'outro tempo
Fazia acreditar ao mundo inteiro
Que era em Madrid que despontava o dia, 

Agora, astro sem vida, a pouco e pouco 
Vai-se sumindo, lua em seu minguante, 
Que de outro povo ha de apagar a aurora!

Nas mãos de vendilhões a tua herança! 
Fundiram em moeda a tua c'rôa! 
Conspurcam o. esplendor das tuas glorias! 
Ó gigante, é possível que tal durmas?

Vendem teu sceptro a pezo; anões disformes, 
Do teu manto de rei talham as vestes. 
Tua águia imperial, que doutros tempos 
De raios e fulgor enchia o mundo, 
Pobre ave já sem penas, os famelicos 
Vão devoral-a na marmita infame.

Ah! como o nosso bom verso endecasyllabo, manejojado por mãos vigorosas, serve ainda para tudo! como elle zurze! como silva nos ares! como substitue pela amplitude do rhytmuo a amplitude syllabica do alexandrino:

De raios e fulgor enchia o mundo!

Afinal Victor Hugo com todo o seu genio para ter um alexandrino com esta idéa não poude fazer mais de que metter um adjectivo perfeitamente dispensavel:

Couvrait le monde entier de tonnere et de flammes.

Para isso, bem o sabemos, é indispensavel que o traductor se chame Bocage, ou Castilho, ou Bulhão Pato, é necessario que se tenha no ouvido, para segurança melodica, o segredo do rhythmo, que dispensa o diapasão da rima, de que sempre carecem as cantores mediocres, é indispensavel que se tenham boas pernas nervosas, como Bulhão Pato tem em caçadas e em poesia, para acompanhar as passadas de gigante de Victor Hugo sem se empoleirar uma pessoa nas andas dodecasylabicas do alexandrino portuguez.

Six personnages de Victor Hugo Louis Boulanger, 1853 (musée des beaux-arts de Dijon).
Sont représentés, de gauche à droite en commençant par le haut Don Ruy Gomez, Don César de Bazan, Don Salluste, Hernani, Esméralda, De Saverny.
Wikipédia

Pois no celebre monologo de que demos um trecho, e que é enorme, Bulhão Pato, vertendo escrupulosamente, só precisou de mais uns dez ou onze versos do que os que tem Victor Hugo no original, e n'esse longo trecho apenas teremos de notar uma phrase em que a traducção não é rigorosamente a que nos parece verdadeira. "Depuis Philippe quatre" deveria traduzir-ie "Desde Philippe IV" e não "Após de Philippe IV, como o sentido historico indica, porque Victor Hugo diz, peta boca de Ruy Blas, primeiro ministro do rei de Hespenha: 

"Nous avons, depuis Philippe Quatre, 
Perdu le Portugal, le Brésil..."

Ora como foi exactamente no tempo de Philippe IV que a Hespanha perdeu Portugal e Brazil, vê-se que "depuis" não pôde ter outra significação senão a que tem realmente e lexicologicamente "desde".

Fizemos esta pequeníssima observação, para pôr em relevo a fidelidade maravilhosa com que Bulhão Pato acompanha o texto do grande poeta, chegando até a não o emendar, quando Victor Hugo perpetra a respeito de coisas portuguezas um d'aquelles disparates, que elle atira com uma serenidade olympica do alto de um alexandrino recheiado de erudição: 

"Perdu Ie Portugal, le Brésil, sans combatre?"

Para dizer isto nas bochechas dos vencidas de Montes-Claros, de que ainda se havia de lembrar amargamente algum dos velhotes do conselho, era necessario que Ruy Blas tivesse urgentimima necessidade de encontrar uma rima para "Philippe Quatre". Bulhão Pato, com urna fidelidade a toda a prova escreve: 

Portugal e Brazil "sem um combate"
Deixámos ir por mão. 

A proposito da sem cerimonia com que Victor Hugo trata a historia portugueza, sempre nos ha-de lembrar aquelle disparate que Hernani atira magestosamentc a Carlos V na crypta d'Aix-la-Chapelle:

"Je suis Jean d'Aragon, grand-mailre d'Avis né..."

Voltemos ao Ruy Blas, e á magnifica tradução de Bulhão Pato. Para acabarmos do provar como o nosso eminente poeta é fidelissinio na traducção, basta dizermos que, só porque se afastou ligeirissimamen-te do original, na esplendida versão do canto das lavadeiras, chamou-lhe logo imitação. 

Comparem e vejam como se espelham no crystal sonoro dos versos de Bulhão Pato as graciosas e frescas imagens dos versos de Victor Hugo:

À quoi bon entendre
Les oiseaux des bois?
L'oiscau le plus tendre
Chante dans ta voix. 


Que Dieu montra ou voile 
Les astres des cieux! 
La plus pure étoile 
Brille dans tes yeux.

Qu'Avril renouvelle 
Le jardin en fleur! 
La fleur la plus belle 
Fleurit dans tom coeur. 

Cet oiscau de flamme, 
Cet astro du jour, 
Cette fleur de l'âme 
S'appelle l'Amour 

Vejamos agora na versão portugueza:

Ruy Blas por Bulhão Pato, O António Maria, 13 novembro de 1884 (detalhe).
Hemeroteca Digital

Para que — ouvir das aves 
A voz na selva copada, 
tem notas mais suaves 
A tua voz encantada! 

Para que — ver a mais bella 
D'essas estrellas dc Deus, 
Se mais peregrina estrella 
Refulge nos olhos teus!

Para que — abril em rosa 
Vai transformar um botão, 
Se outra flor, e mais formosa, 
Sorri no teu coração. 

Ave, flor, astro do dia, 
Canto, perfume, esplendor, 
Formam a mesma harmonia 
E tem um só nome: Amor! 

Pois que ha n'estes versos mais do que a refracção que tem a luz ao passar de um para outro meio, da transparencia do ar para a limpidez da agua, e a imagem ao passar do sonoro francez de Victor Hugo para o harmonioso portuguez dc Bulhão Pato?

Lisboa, Teatro D. Maria II, c. 1890.
Arquivo Municipal de Lisboa

Em resumo, a traducção de Ruy Blas por Bulhão Pato é uma verdadeira obra prima. que deve ter, que esperamos que tenha, a consagração da scena. 

Obras assim devem engastar-se no reportorio dramatico nacional.

P. C. [Manuel Pinheiro Chagas] (1)


*
*     *

No final da ultima scena, Bulhão Pato foi chamado ao proscenio pelo publico que queria victorial-o, mas o illustre poeta não appareceu porque andava, segundo ouvimos, lá pela Outra Banda, de espingarda ao hombro, a caçar nos seus homonymos bravos.

Bulhão Pato, Rafael Bordalo Pinheiro,
Album Glórias, 1902
Biblioteca Nacional de Portugal

O publico, desesperado por não lhe apparecer o Pato que pedia em D. Maria, foi para a cervejaria da rua do Principe, onde se vingou pedindo pato com macarrão! (2)


(1) Jornal do Domingo, Revista Universal, Anno I n° 42, 4 de dezembro de 1881
(2) O António Maria, 13 novembro 1884

Informação relacionada:
Bulhão Pato (1829-1912): no Centenário da sua Morte

Leitura relacionada:
Victor Hugo, Ruy Blas, traducção em verso por Bulhão Pato, Lisboa, David Corazzi, 1881