Mostrar mensagens com a etiqueta Rio Tejo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Rio Tejo. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Bulhão Pato, Madrugadas de caça, por Zacharias d'Aça (IV)

O nascer do sol no Tejo, o nosso formoso e grande rio, em dias de outono, é um dos mais encantadores espectáculos que os olhos podem gosar, e esta digressão, rio abaixo, até Belém, e d'ahi para o sul, era um delicioso "lever de rideau" das nossas caçadas, a que nem sempre correspondia o resto do divertimento. Nisto como em tudo.

Lisboa, Sol Nascente, Ivan Aivazovsky, 1860.
Imagem: WikiArt

Preferiam os barqueiros ir á vela, nós a remos. Não tínhamos a distracção da manobra — o cambiar do panno, o procurar o vento, o regular o leme e a escota — mas por isso iamos mais quietos, vendo tudo melhor e conversando.

Vue de la tour de Belem à Lisbonne, Jean-Baptiste van Moer, 1868.
Imagem: Sotheby's

Em matéria de conversar ha os que gostam de falar e os que preferem ouvir. Bulhão Pato é dos primeiros, eu dos segundos. O que eu sei não é novo para mim: o que os outros me dizem pode sel-o. E d'aqui não se segue que eu seja modesto, antes talvez se deva concluir que sou curioso.

Talento e palavra espontâneos, e sempre em acção, o poeta de todos os assumptos tira partido; e elle, que não é um naturalista, um sábio, é um fino observador da natureza, e na sua conversação o mundo real reforça e concretisa o imaginativo.

Assim como os companheiros, variavam os assumptos. Se eram artistas, músicos, predominava o lyrismo — S. Carlos, os tenores, as "primas-donas", os "maestros"; se nos acompanhava algum politico — caso raro, que os políticos atiram a outra caça — era a oratória tribunicia — José Estevam, Passos Manuel, Rodrigo, Rebello da Silva, Garrett; se iam mundanos, então bailes, amores e aventuras. Não faltavam assumptos para os quadros, nem ao artista as cores para os pintar.

Uma coisa havia prohibida na nossa sociedade — o silencio. Quando nós, ao largar da Rocha, nos conservávamos cinco minutos calados, Bulhão Pato protestava: — Leva de rumor! — dizia elle, apostrophando comicamente o nosso mutismo. Parece que morreu aqui alguém! Ó' Diogo, tu passaste mal a noite?

D. Diogo, d'uma antiga e nobre familia do Alemtejo, era um dos mais íntimos amigos do poeta. Era-o desde a infância: tinham frequentado juntos o collegio inglez da rua do Quelhas. Nascera na Índia. Os olhos e os cabellos pretos, os dentes alvíssimos, e a côr bronzeada do rosto, denunciavam nelle o exotismo da procedência, a influencia do sangue oriental. Excellente rapaz e intelligente, era um magnifico companheiro — d'estes que não se sentem, que não pesam.

Como todos os caçadores que são um pouco artistas, Diogo não desgostava do pittoresco, e tinha, de tempos a tempos, os seus caprichos de "toilette". Um dia, depois de ostentar aos nossos olhos de amadores uns lindos ceifões amarellos de pelle de cabra, preparada á cordoveza, debruados de encarnado, e orlados de phantasiosos florões, abertos sobre panno da mesma côr — obra-prima dalgum artista andaluz — para completar o effeito tirou da sacca um barrete vermelho, um barrete, com uma longa e fornida borla preta, e pol-o na cabeça, ageitando-o artisticamente. Diogo não era bonito, mas aqui a côr salvava o desenho.

Um esplendido modelo para um Fortuny! A paleta completa — uma orgia de cores! Vermelho, preto, encarnado, amarello, estrellantes, illuminados pelos raios do sol nascente, e destacando sobre o fundo glauco do mar! O que faltou foi o pintor.

Chegou a vez do cigarro, e a bolsa do tabaco e o fuzil de Diogo também eram elegantemente historiados.

Depois de o accender, elle relanceou os olhos alegres sobre nós, acabando pelos pôr em Bulhão Pato.

No olhar de Diogo havia uma provocação á galhofa, na sua boca brincava um sorriso gaiato.

Então Pato, que estivera a olhar para elle, desde a imprevista apparição do barrete vermelho, disse-lhe, com uma grande seriedade:

— Estás bonito, estás. Pareces o bey de Tunis!

Bey Sadok (detalhe) por Ahmed Osman c. 1865.
Imagem: TheHuffingtonPost International

O effeito foi fulminante, e a gargalhada geral. O próprio Diogo ria como um perdido.

O ataque não ficou, porém, sem réplica. Cruzados os ferros, houve alguns "coups de bonton" bem executados, bons ataques e boas respostas, próprias de dois jogadores que se conheciam, que se estimavam e que se respeitavam. Um assalto de chistes para a risota.

Travado sobre a superfície das aguas, participou da natureza dellas — os golpes não eram sanguinolentos, mas eram salgados... E por isso lá ficaram no "salso argento".

E nós ainda a rir, um barco a passar perto, e um dos filhos do Lourenço a gritar-lhe:

— Ai, minha perna, sr. doutor!

Catraio e cacilheiro, gravura, João Pedroso, 1860.
Imagem: Hemeroteca Digital

Os varinos acudiram á resposta, na linguagem que lhes é peculiar, e que, se é própria, não é correcta. Elles usam de bragas — mas não é na lingua.

As nossas baterias voltaram-se então para elles, e quando, já longe, não os podíamos ouvir, ainda os viamos gesticular... Era uma diversão aquella quasi obrigada, entre os frequentadores do rio.

As gaivotas vinham, ás vezes, reconheccr-nos de tão perto, que, apesar de não cultivarmos este gé- nero de "sport", se ellas se contassem á ida, haviam de achar alguma de menos.

Isto, porém, era raro. Patos também, se passavam ao alcance, eram saudados, mas de ordinário alteavam, ao ver-nos, e apesar do que se costuma dizer, não lhes chegava o chumbo — não caíam.

Um dia foi que o "lever de rideau" — o prologo — esteve quasi a ser a tragedia. A espingarda de Bulhão Pato — era a de Eybar — deixara-a elle ficar em Allemquer, onde fora caçar, e Cabral, que de lá a trouxera, mandou-lh'a na véspera. Cabral —um grande e experimentado caçador — era tudo quanto ha de mais cuidadoso; podia-se-lhe chamar sem "calembour" [trocadilho], o rei das cautelas. Mas uma vez, todos erram, e quando Bulhão Pato, que tinha o costume de dar um fogacho á espingarda, antes de principiar a atirar, o fez sem a menor desconfiança, porque nenhum dos pistons trazia fulminanie, d'um dos canos saiu incendiada a polvora solta, mas o outro disparou um tiro a valer! Encaramo-nos Todos... Estavamos [felizmente] illesos.

O que nos valeu loi o ter elle, também prudente, disparado, como usava sempre, por cima da borda.

— Hein! disse o poeta — de que nós escapámos! Mestre Cabral d'esta vez esqueceu-se!

E foi este, em tantos annos, o único accidente. que teve assomos de gravidade.


Trafaria, c. 1900.
Imagem: Delcampe

— E o mar, nessas travessias? perguntará o leitor, curioso destes pormenores.

Como ao outono se segue o inverno, algumas fizemos em que o catraio do patrão Lourenço dançava um tanto sobre as aguas...

Um dia, que nós linhamos escolhido para dar uma saltada ao Juncal, amanheceu-nos carregado o céu, asperrinio o sudoeste, promettendo agua... de inundar um Sahara!... A resolução estava tomada, e nós fomos por terra a Belém. Lourenço, que não nos viera buscar, por ver a feia catadura do tempo, levou-nos ao caes, e ahi, com os braços abertos e as mãos espalmadas, mostrando-nos as ondas verde-escuras, crespas, picadas pelo vento, franjadas de espuma, e o mar deserto, disse-nos:

— Os senhores bem vêem... Nem um pau ao cimo d'agua! E accrescentou, para reforçar — Os outros senhores que aqui também costumam vir, foram-se para casa...

— Então você, Lourenço, não nos quer levar... Tem medo? perguntou Bulhão Pato, olhando depois para mim.

— Eu não, senhor. Medo não tenho, mas é que os senhores ficam enxovalhados. Leval-os, levo-os eu. Agora enxutos ... Por isso é que eu não respondo.

E o intrépido algarvio — elle era de Ferragudo — chamou, com o mesmo rosto sereno, os filhos, e saltámos todos para o barco. Armada a vela, que o vento logo enfunou, partimos. Atravessámos, com a borda quasi sempre rente da agua, e, uma ou duas vezes, eu senti fugir o banco debaixo de mim...

Já está morto um dos nossos companheiros d'então, que em taes casos se sentava logo em baixo, nos paneiros.

Práticos do rio, habituados a viver nelle, os nossos homens conheciam-n-o como os seus dedos; as correntes da agua e do vento viam-nas tam bem que, nesta manobra de virar de bordo, debaixo do vento, o catraio obedecia como um fino corcel, quasi sem parar na carreira, com tal certeza era feita, tão ajustados se concertavam os movimentos do que ia ao leme com o que cambiava o panno!

Iamos fazer o ultimo bordo, mais perto da terra, e que era o mais serio...

— Agora! disse o velho Lourenço, com os olhos na vela, ao filho, que ia em pé junto do mastro. O catraio, que estava a tocar no vento, parou um instante, atravessando; a vela cambiou e elle seguiu. Mas, nesses momentos, quem vae no barco e não é do mar, é que lhe sente o balanço...

Conforme elle dissera, chegámos a salvo, se não enxutos. Ainda assim a aspersão foi levissima, se attendermos ao que promettiam o céu, e o mar!...

Bulhão Pato teve muitas mais occasiões de affrontar a torva catadura do Padre Tejo, e depois, ao largo, as temerosas iras do Oceano. 

Die Mündung des Tajo bei Lissabon, Hubert Sattler, 1868.
Imagem: Salsburg Museum

Mas, como tanto se pode morrer afogado aqui como lá, sente-se um grande prazer, quando, roçando pelo perigo, lhe escapamos... pela tangente. (1)


(1) Zacharias d'Aça, O Tiro Civil n.° 137, domingo 1 de maio de 1898

Artigos relacionados:
Retratos de Bulhão Pato

Tema: Bulhão Pato

Informação relacionada:
Bulhão Pato, Zacharias d'Aça, O Occidente n.° 717, 30 de novembro de 1898
O Occidente n.° 434, 11 de janeiro de 1891
Bulhão Pato, Paquita, Typographia Franco-Portugueza, 1866Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896
Francisco Zacharias d'Aça, Caçadas portuguezas: paizagens, figuras do campo,
Lisboa, Secção Editorial da Companhia Nacional Editora, 1898
 

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Bulhão Pato, Madrugadas de caça, por Zacharias d'Aça (III)

O dia oito de setembro era o escolhido por Bulhão Pato para a abertura das suas caçadas do inverno no sul do Tejo, e o sitio preferido o Juncal da Trafaria.

Vista da Trafaria — Saída da barca Martinho de Mello, João Pedroso, gravura
Imagem: Archivo Pittoresco, vol. X, 1867

A meia hora de caminho de Lisboa, e com uma travessia encantadora nesses formosos dias do outono, tínhamos alli, por assim dizer, a nossa coutada — nossa e de poucos mais, felizmente. Os outros frequentadores eram os ranchos de José Maria Villar, e de João Lourenço, ambos creados da Casa Real, e os srs. Gourlades, da Junqueira.

Os caçadores de Lisboa, a uns desviava-os de lá o terem de ir em barco de vela, e a outros levava-os para os pinhaes de Corroios a falta de bons cães ou a ambição das gallinholas. Assim divertidos de concorrerem com- nosco, era raro encontrarmos competidores.

Corroios, Manuel Henrique Pinto, finais do século XIX.

Quando, pelas cinco da manhã, eu chegava, equipado e armado, á casa do poeta, que morava então — 1867 — na rua das Praças, á Lapa, já lá estavam, sentados á porta, dois vultos, que de longe e pelo escuro eu apenas distinguia: — eram o Lourenço da Pinha, o nosso barqueiro de Belém, e um dos filhos.

O bairro jazia, as ruas eram ermas, mas lá dentro tudo estava a pé. A morada do poeta, que ainda hoje conserva o mesmo aspecto, é sobre si e tem a apparencia d'um cottagee — rez-do-chão, primeiro andar, e, sobre este, outro pavimento mais baixo, com quatro janellas, d'onde se desfructa, por cima dos telhados fronteiros, o Tejo — vista que tanto realça e alegra a casaria destes bairros da Lapa e de Buenos Ayres.

Vista do Tejo e da Torre de Belém tomada da legação britânica, George Lennard Lewis, 1880.
Imagem: Government Art Collection

O Faliéro e a Medóra, já despertos, latiam no canil, ruidosos e contentes; na cozinha o José, robusto e sympathico rapaz, honra da raça d'além Minho, com as suas botas d'agua, a camisola de flanella de listas, a sua cara sempre alegre, e a Maria, a creada, davam a ultima demão nos aprestos do almoço e no arranjo das bagagens, porque, ás vezes, estas excursões duravam dias. O poeta, installado no seu quartel general venatorio, em casa da sr.a Maria do Adrião, na Costa, havendo caça e dias amenos, deixava-se lá ficar, até que algum sudoeste bravio, dos que costumam açoitar aquella planície d'areia, o forçava a levantar vôo e recolher aos abrigos da cidade.

A primeira pessoa que eu via áquella hora matinal, e que, no alto da escada, me dava os bons dias, era sua irmã, a sr.a D. Maria da Piedade, com o seu ar senhoril, e a sua voz alta e vibrante. Muito parecida nas feições com elle, não o era menos no fino espirito e na amenidade do trato. Mais velha do que Raymundo foi, por assim dizer, sua segunda mãe. Acompanhou-o na vida, e tudo com elle participou — a gloria e a adversidade. Tinha um animo varonil a illustre senhora: aquelles primeiros annos da sua mocidade, passados em Hespanha, no meio das guerras civis, deram-lhe a tempera. Era uma alma forte, e por isso mesmo egual, serena e resignada, na boa e na má fortuna.

Estes Bulhões são de bom. e antigo sangue. Manuel de Bulhão foi um homem em toda a accepção da palavra — honrado, forte, e valente.

Transposta esta primeira estação, em cima estava o poeta, já a pé, vestindo-se, espreitando pelas janellas, voltadas ao sul, o cariz do céu, e o rumo do vento, e fazendo o prognostico da caçada.

Alli era o seu miradouro, o seu gabinete de trabalho; alli recebia os seus intimos, atli compunha os seus poemas. Aposento modesto e simples, que tinha nas paredes, por único ornato, uma cercadura feita com os bellos retratos dos contemporâneos illustres, gravados por Souza, para a "Revista Contemporânea" [v. Joaquim Pedro de Souza (1818-1878), Retratos de portuguezes do século XIX].

Ia eu subindo a pequena escada de dois lanços, e já o ouvia falar:
— És tu, Zacharias?
E logo, em seguida, quando eu abria a porta:
— Temos caçada. O dia esplendido! Ja la está o Lourenço?

E depois, sempre poeta, trocadas as primeiras palavras, dizia, com a sua máscula e bella voz. os conhecidos versos da Chácara da Nazareth:

Manhãs frescas de setembro, 
quando orvalho está a cair: 
frescas manhãs de setembro, 
quem nas poderá dormir!

E saltava para estes — tão vivos, que todos os dirião dum caçador!

Voam corseis e sabujos!
Apupa, apupa, clarim! 
Que esta sina de fragueiros 
não tem descanço, nem fim!

E como commentario, a fechar, dizia:
— Deixa-os lá. É um grande poeta.

A "toilette" estava terminada. Afivellado o cinto, mettidas nelle as luvas de camurça, dando um relance dolhos em volta do quarto, como a despedir-se:
— Agora vamos ao café, que sem esse viatico não ficamos amanhados. Vae também uma golada de "cognac"? A manhã está fria.
E, pondo-me a mão no hombro:
— Rapaz, rapaz, dizia-me elle — estás nos teus vinte annos!...

Lisbon from the Rua de San Miguel, Drawn by Lt. Col. Batty, 1830.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Datavam de pouco as nossas relações; eu tinha então vinte e sete annos cumpridos, elle devia ter trinta e seis. Os meus vinte já lá ficavam para traz na estrada, mas eu, felizmente, sempre fui mais novo que a minha edade. E ainda hoje tenho esse defeito. Surprehendo, ás vezes, em mim ingenuidades infantis — auroras, esplendores, e soes poentes de dias, que ha muito passaram... Na minha memoria evoco esses phantasmas, que me apparecem vivos, e travo dialogo com elles... E tudo isto é "pela virtude do muito imaginar". A phantasia, a memoria viva, fazem-nos o milagre destas resurreições!

Tomado o viatico, accesos os cigarros Pato prefere a cigarrilla ao havano — despediamo-nos de D. Maria da Piedade, e partíamos. Ella ficava — algumas vezes também nos acompanhou nestas excursões — mas nós tínhamos a certeza de que o seu pensamento não nos desamparava, porque no seu espirito, como no de todos, á idéa da caça andava associada a do perigo.

Desciamos a rua de S. Domingos e chegávamos á rocha do Conde d'Obidos, atravessando as ruas, ainda desertas. Os Lourenços e o José tinham marchado na frente com as bagagens.

Vista de Lisboa no Lado Oeste, Arte Gravura João Pedroso, 1865
Imagem: Hemeroteca Digital

Assim abriam para nós esses dias — jamais esquecidos. Alvoradas alegres de rosado oriente e céu d'anil, ou manhãs pardacentas, húmidas e tristes, encontravam em nós o mesmo animo. Nos dias bonitos tínhamos a crença; nos feios era a esperança, e em todos a grande poesia da mocidade...

O tempo voou, mas, todos os annos, nos primeiros dias de setembro, nas lindas madrugadas do outono, serenas e cheias de luz, lembro-me com saudade de quando, ao entrar no quarto do poeta, eu era saudado com os versos da caçada do Alcaide-Mór de Affonso Henriques:

Manhãs frescas de setembro, 
quando orvalho está a cair;

V

A rocha do Conde de Óbidos — João Lourenço

Bulhão Pato no Juncal

Aquella rocha do Conde d'Obidos — assim chamada por ser alli junto o solar, o palácio dos illustres fidalgos d'este titulo — vemol-a hoje mascarada com parapeitos, varandas e escadas, e coroada, no alto, com uma pequena praça ajardinada, donde se gosa a linda vista do nosso rio. "Quantum mutata ab illo"! Era então toda egual a uma nesga, que ainda lá se conserva — uma encosta pedregosa, adusta pelo sol, batida dos ventos, escalvada pelas chuvas, coberta aqui e alli por uma vegetação rachitica e parda. Um trecho da natureza selvagem., uma verdadeira arriba do mar!

Cais de Santos, vista da Rocha do Conde de Óbidos, Alfredo Keil, 1873.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Descia-se para o rio por um longo corredor, entre dois muros — um do palácio, e outro da cerca do convento das Albertas — e a escada que conduzia ao pequenino caes [cais de José António Pereira], lá em baixo, era um verdadeiro quebra-costas — tortuosa, os degraus irregulares, abertos uns na rocha, outros na terra. Do alto da rampa, verdadeiro precipicio. vi eu, um dia, sendo muito novo, cair um marinheiro inglez ébrio. Um horror!

Parece impossivel que aquillo fosse, até aos nossos dias, um dos caes de desembarque d'esta bella cidade! Era ahi que embarcávamos.

Arrumadas as malas, seguros os cães, os remos caíam na agua.

— Jesus! dizia Lourenço.
— Maria! segundava o filho.

E o catraio seguia, de voga arrancada, rio abaixo, direito á Trafaria, quando não a Belém, onde iamos buscar o João Lourenço — o João da Burra, como lhe chamavam desde pequenino, duma burra com que da sua villa nos arredores — Cintra, creio eu — costumava elle vir á cidade.

Lisboa, Sol Nascente, Ivan Aivazovsky, 1860.
Imagem: WikiArt

Caçador de El-Rei D. Luiz, morava em Belém, e, quando não tinha serviço no Paço, acompanhava-nos nestas digressões ao Juncal.

De boa estatura, e robusto, o olho pequeno e vivo, a tez rosada, as feições regulares, o nariz aquilino, João parecia um abbade minhoto, dos que tem bons presuntos na despensa e bom vinho na adega.

Boa espingarda, bom garfo, bom copo, bom rosto, e, portanto, bom companheiro, era, além de tudo isto,.tino como um coral. Rapaz, tilho do povo, lizcra-sc homem na cidade ; tinha, o que é raro nos homens da sua classe e profissão, aprendido a sciencia difficil de se manter sempre no seu logar. mas quando queria obsequiar alguém, fazia-o com a gentileza d'um fidalgo.

Um exemplo.

Homem videiro, abrira elle em Belém, defronte dos Jeronymos, um restaurante, a que poz o nome de Caçador. Um dia, em que eu fui visitar a egreja, demorei-me mais, e eram horas de jantar, quando de lá saí. A minha casa ficava longe, dirigi-me ao Caçador. Prevenindo Já a hypothese de lá estar o dono, entrei pela porta do lado. O creado que veiu receber as minhas ordens, parece que me conhecia, porque elle a voltar costas, e João a apparecer com o seu rosto prazenteiro. Eu disse-lhe o que queria, elle sentou-se no logar fronteiro, e travámos a conversa, é claro, sobre a matéria vasta — a caça, e artes e historias correlativas.

Quando eu ia no fim do primeiro prato, João, tomando os ventos, disse-me:
— Está-me cheirando bem. Parece-me que lhe faço companhia, se me dá licença.
— Ora essa. O João está na sua casa.

E jantámos os dois, entremeiando o paio com ervilhas, e as eirozes grelhadas, com historias, algumas mais salgadas do que os guisados, que íamos saboreando.

Quando accendemos os charutos, e eu pedi a conta, elle fez um signal ao servo, que desappareceu, e logo voltando-se para mim:
— V. Ex.a deu-me a honra de jantar comigo na minha casa, e eu estou pago. Não deve nada.

É claro que não insisti. Se teimasse, eu é que era malcreado.

Tempos antes fizera-lhe uma pequenina fineza, e elle quiz-me mostrar que não a havia esquecido. Podia contar d'elle outras historias, mas esta basta.

Torre de Belém, Frank Dillon, 1850.
Imagem: BBC Your Paintings

João Lourenço trazia comsigo, para as nossas caçadas, os seus cães, na companhia dos quaes vinham alguns, que pertenciam á Casa Real, e que, seja dito de passagem, não envergonhavam os nossos. E não trazia só isso; muitas vezes vestia também o seu pittoresco trajo do Real serviço, e com elle vinham outros caçadores da Casa, bem armados, e bons atiradores.

Quem visse então no Juncal Bulhão Pato, e os seus amigos, com aquella comitiva de caçadores, perdigueiros, e batedores do sitio, que se nos aggregavam, e attentasse na chapa, com as armas reaes de prata reluzente, que ornava o chapéu á "Mosqueteira" do nosso "moço do monte", cuidaria que éramos alguns príncipes saciados de caça, que, para variar o "menu" cynegetico de Mafra e Villa Viçosa, iam, pedestre e burguezmente, atirar alli ás codornizes e narcejas.

Caçadores reaes e verdadeiros éramos nós, e príncipes também ás vezes iam dois: um era Lopes Cabral — que nós eleváramos a essa dignidade; o outro tinha-se elevado a si próprio, era Bulhão Pato — mas o seu principado era, e é, na Republica das Lettras. Tem menos fausto, menos representação, e incomparavelmente menos rendimentos, mas tem sobre os outros uma vantagem, uma absoluta superioridade: os seus súbditos podem não lhe tirar o chapéu, podem discutil-o, podem não o ler — que é a máxima affronta — mas o que não podem é obrigal-o a abdicar!

Bulhão Pato em Uma arribada em calma branca, Revista Serões,  1907.
Imagem: Hemeroteca Digital

As coroas dos poetas estão acima das revoluções. (1)


(1) Zacharias d'Aça, O Tiro Civil n.° 136, sexta-feira 15 de abril de 1898


Artigos relacionados:
Retratos de Bulhão Pato

Tema: Bulhão Pato

Informação relacionada:
Bulhão Pato, Zacharias d'Aça, O Occidente n.° 717, 30 de novembro de 1898
O Occidente n.° 434, 11 de janeiro de 1891

Bulhão Pato, Paquita, Typographia Franco-Portugueza, 1866Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896
Francisco Zacharias d'Aça, Caçadas portuguezas: paizagens, figuras do campo,
Lisboa, Secção Editorial da Companhia Nacional Editora, 1898

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Mar da Calha

Na grande fortaleza de S. Julião, que cruza os seus fogos com a do Bugio, e nesta torre, marcando e limitando ambas as entradas do porto de Lisboa, estão montados os competentes pharoes.


Uma chalupa armada emergindo da foz do Tejo passado o Bugio, Thomas Buttersworth (1768 – 1842).
Imagem: Bonhams

O pharol da torre de S. Julião data de 1785, e é de luz fixa e branca, com o alcance de 12 milhas. E de 4.a ordem, tem próximo um posto semaphorico, e fica á latitude N. de 38° 42' 22" e á longitude W. de 9° 19' 27" de Greenwich.

A estação semaphorica communica-se com a estação central de Lisboa e com a torre do Bugio por meio de telephone.

Veleiros no Tejo junto ao Bugio, Carlos Ramires, 2014.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Na torre está estabelecido um posto de soccorro a náufragos.

A SW. da fortaleza ha uma restinga chamada ponta da Lage, a qual entra pelo mar dentro, descobrindo na baixa-mar, e que tem cerca de meia amarra de comprimento [1 amarra eq. 120 braças; 1 braça eq. 8 palmos, c. 1,76m].

Plano hydrographico da barra do porto de Lisboa (detalhe), Francisco M. Pereira da Silva, 1857.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Quando, na entrada da barra, se enfia a guarita cylindrica de NE. da fortaleza com a parte leste da muralha da mesma fortaleza, é signal de estar passada a ponta da Lage, a que era mister dar resguardo, e pôde então a navegação seguir sem receio.

A torre do Bugio, ou fortaleza de S. Lourenço, é circular e levantou-se das aguas no século XVII, tendo desde 1755 montado um pharol, que é hoje de luz branca, fixa, com um clarão vermelho de 20'' em 20'', de 3.a ordem, e com o alcance de 15 milhas, illuminando 360°.

Bugio, Defesa maritima de Lisboa, gravura João Pedroso, Archivo Pittoresco, n 30, 1862.
Imagem: Hemeroteca Digital

Foi esta torre construída no logar da Cabeça Secca, separada da torre pela golada do Sul, ou do Bugio, que só dá passagem a pequenas embarcações. O seu apparelho dioptrieo está 26 metros acima do nivel do mar, na latitude N. de 38° 39' 31" e na longitude W. do 9° 17' 52" de Greenwich.

São estas luzes de capital importância para a navegação que demande o porto de Lisboa.

Desde este ponto continua a costa para o S. em uma larga curvatura, e é formada por um extenso areal, e limitada ao longe pela serra da Arrábida e de S. Luiz, que se estende para ENE. do cabo Espichel, e que termina no pico do Formozinho, 500 metros acima do mar.

Linha de costa da Torre do Bugio ao Cabo Espichel (fotomontagem).
Observam-se as elevações moinhos do Chibata, Monte Córdova (Serra de S. Luís) e Serra da Arrábida, conforme descrito no Plano hydrographico da barra do porto de Lisboa, Francisco Maria Pereira da Silva, 1857.
Imagem: AVM

Na serra de S. Luiz, o pico mais elevado é o Monte Córdova, que se apresenta de forma circular, quando é enfiado pela torre do Bugio.

No extremo mais occidental de terra, a partir do Bico da Calha, que é a ponta de areal em que termina a margem esquerda do Tejo, depara se primeiro, a 2 milhas para o S., o forte da Vigia, a 850 metros, e por E. 4 3/4 SE. do Bugio o reducto de Alpena [...]

Fragata HMS Lancaster (F229) na foz do Tejo.
Observam-se em 2° plano a Cova do Vapor e a rebentação das ondas fora da barra.
Imagem: Barcos no Tejo

Barra de Lisboa — A entrada do Tejo fica situada entre as torres de S. Julião e do Bugio, que distam 2:750 metros uma da outra, e entre o Bugio e o Bico da Calha, ou ponta do cabedelo do S. 

Dois grandes bancos se prolongam para o mar na direcção geral de NE.-SW., que se denominam Cachopo do N. e Cachopo do S., ou Alpeidão. 

Formam estes cachopos dois canaes, o do N., ou corredor do N., que fica entre o cachopo do N. e a torre de S. Julião da Barra, e o do S., ou Barra Grande, que fica entre os dois cachopos indicados.

Alem d'estes canaes ha um outro, estreito, pouco fundo e variável em planta, chamado Golada, entre a torre do Bugio e a terra.

O cachopo do N. estende-se naquelle rumo por 5:500 a 6:500 metros. 

O do S. é formado da cabeça do Pato, das coroas de Santa Catharina e do cachopo propriamente dito.

Sobre a primeira parte ha peio menos 10 a 12 metros de agua.

As coroas de Santa Catharina ficam entre a cabeça do cachopo e a do Pato. 

Este cachopo do S., ou Alpeidão. na extensão proximamente de 5:500 metros, é um banco de areia, que descobre em baixa-mar em diversos logares.

O banco, ou barra que liga os extremos dos cachopos pelo W., fica entre a cabeça do Pato e o Espigão, na máxima largura de 3:700 metros, e forma grande escarcéu com ventos do quadrante do SW., levantando ás vezes um rolo do mar, ou arrebentação, que fecha de um lado ao outro o canal da barra e offerece nessas occasiões perigo em arrostar com elle.


Esta barra é descripta pelo distincto hydrographo e geographo Franzini, no seu Roteiro das costas de Portugal, publicado em 1812, nos seguintes termos:
"A barra de Lisboa (a melhor e única da costa de Portugal, que admitte em todos os tempos a entrada dos maiores navios), é formada pelos baixos seguintes:

A S. 35° O. da fortaleza de S. Julião, na distancia de 280 braças, está situado o extremo NE. de um baixo de pedra, a que chamam o Dente do Cachopo cujo baixo se prolonga 2 milhas e 3 décimos a S. 65° O. com pouco fundo, tendo umas 300 varas de largura, e sobre o qual rebenta o mar, quando é agitado pelos ventos do 3.° e 4.° quadrantes.

Chamam Barra pequena, ou Corredor, o canal que fica entre o sobredito Cachopo e a costa do N., o qual tem sempre desde 8 até 10 braças de fundo na baixa-mar.


Plano hydrográfico do Porto de Lisboa e costa adjacente até ao cabo da Roca,
Marino Miguel Franzini, 1806.
Imagem: GEAEM Instituto Geográfico do Exército

Uma milha a SO. do extremo occidental d'este cachopo, e quasi N.-S. com a fortaleza de Santo António da Barra, está a Cabeça do Pato, que é um baixo-fundo, no qual se não encontra menos de 6 a 7 braças de agua em baixa-mar; mas que não obstante se deve evitar, especialmente em tempos borrascosos, podendo acontecer que na descida de uma grande vaga cheguem a tocar nelle as embarcações, que demandam muita agua.

Ao S. 55° E. de S. Julião, na distancia de uma milha e 4 décimos, está a Torre do Bugio, formada por dois corpos circulares concêntricos, no meio dos quaes se eleva uma pequena torre em que está o pharol, na altura de 63 pés.

Os dois recintos são edificados sobre um baixo de areia muito extenso, que se cobre no prea-mar, deixando a torre perfeitamente ilhada.

O dito baixo, ou Cachopo do Sul, denominado também da Alcáçova, ou Alpeidão, prolonga-se 2 milhas ao SO., e forma o do Norte, um grande canal, a que chamam a Barra Grande, cuja menor largura é de uma milha e um decimo, com 10 a 18 braças de bom fundo, a não ser perto dos dois mencionados cachopos, em que só ha 6 ou 7 braças, as quaes diminuem de repente.

A frota francesa commandada por Roussin força a entrada do Tejo, Pierre-Julien Gilbert, 1837.
Imagem: Fortificações da foz do Tejo

A torre do Bugio deve considerar-se como o extremo SO. do Rio Tejo, por que ainda existe, entre ella e a costa da Trafaria, um pequeno canal (que sempre conserva alguma profundidade, e cuja direcção soffre muitas alteracoes); comtudo, é tão estreito, que na baixa-mar quasi se juntam as areias da costa com as do baixo, formando uma vasta praia, até a sobredita torre.

Este grande baixo forma uma semelhança de enseada aberta ao 3., na qual se acham 5 a 7 braças de fundo.

Estes dois cachopos podem considerar-se reunidos por uma espécie de banco, situado 3 milhas e meia ao SO. das torres de S. Julião e Bugio, o qual corre em direcção perpendicular á barra; porem, como o seu menor fundo é de 8 para 9 braças, segue-se que qualquer embarcação poderá navegar afoitamente por elle em todas as circunstancias.

Logo para dentro d'este banco cresce o fundo regularmente de 15 até 20 braças, que conserva pelo meio da mesma barra".

Esta descripção, muito precisa e exacta, é perfeitamente applicavel á actualidade, em que a profundidade da barra e a disposição dos canaes e dos bancos submarinos teem sido modificadas muito pouco, como terei occasião de mostrar [...]

Costa da Caparica, Bairro de Santo António e Foz do Tejo, ed. Passaporte, 2, década de 1960.
Imagem: Delcampe, Oliveira

Na margem esquerda do Tejo, que principia na ponta da costa, ou bico da Calha, existe um grupo de pedras, conhecido pelo nome de Calhaus do Mar, que fica a duas e meia amarras do areal da Trafaria, que é uma povoação de pescadores, hoje muito concorrida na época balnear.

Trafaria — Vista geral da praia, ed. J. Quirino Rocha, 06, década de 1900.
Imagem: Delcampe

O seu bello areal estende-se até o bico da Calha, continuando para o S. na costa oceânica.


(1) Loureiro, Adolfo, Os portos maritimos de Portugal e ilhas adjacentes, Vol III parte 1, Lisboa, Imprensa Nacional, 1906

Leitura relacionada:
Erosion policy options for the Costa da Caparica

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Arriba Fóssil

Arriba Fóssil da Costa de Caparica (faixa de 70 metros para o interior a contar da crista da arriba, segundo a Resolução do Concelho de Ministros nº178/2008, 24 de Novembro) [...]

Costa da Caparica, vista da Quinta de Santo António e da Mata Florestal, tomada do Alto do Robalo, década de 1930.
Imagem: ed. desc.

foi classificada como área protegida segundo o Decreto-Lei nº 168/84, de 22 de Maio, pelo seu excecional valor paisagístico, geológico e geomorfológico.

Costa da Caparica, vista geral (detalhe), Mário Novais, década de 1940.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

Para além de diversos estratos de camadas subhorizontais de rochas sedimentares, de conteúdo fossilífero e de origem flúvio-marinha,

Arriba fóssil e Convento dos Capuchos, 1952.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

a área da Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa de Caparica é igualmente uma reserva botânica de elevado interesse, a Mata Nacional dos Medos, classificada segundo o Decreto-Lei nº 444/71, de 23 de Outubro.

Escarpements formés par le Miocène et Pliocène entre Costa de Caparica et Adissa [Adiça], cliché P Choffat, c. 1900.
Imagem: Internet Archive

A paisagem protegida que compreende parte da arriba fóssil estende-se por 13 km na plataforma litoral, desde a Costa de Caparica à Lagoa de Albufeira e tem uma superfície aproximada de 1599 hectares. (1)

Almada, entre o Rio e o Mar
Vídeo: cmalmada



(1) Marta N. S. C. Oliveira, Evolução Natural e Antrópica Trafaria - Cova do Vapor - Costa de Caparica, Lisboa, UL, 2015

segunda-feira, 20 de junho de 2016

O Juncal da Trafaria

O dia oito de setembro era o escolhido por Bulhão Pato para a abertura das suas caçadas do inverno no sul do Tejo, e o sitio preferido o Juncal da Trafaria. (1)

Trafaria, c. 1900.
Imagem: Delcampe

Aquella charneca do Juncal, descoberta, erma e agreste, onde, no verão, dardeja o sol implacável, e no inverno sopra o sudoeste, ouvindo-se ao longe o rolar das ondas, é uma paizagem profundamente triste, mas que não deixa de ter encantos. A solidão do deserto está alli, fronteira e contraposta ao bulicio da cidade !

A maré era boa, e aproámos ao Torrão, evitando o fadigoso transito pelo areal.

Costa da Caparica, passeio de barco, embarcação Zinha, 1922.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Um areal enorme, cortado de pequenos médãos, coberto duma alta, espessa, e hirta vegetação de juncos verde-negros, entresachados de raras moitas de joina. Arvores ... apenas algumas figueiras na horta do Miranda, á beira do rio! Isto e uns canteiros de morangos, eram os únicos signaes da vida vegetativa, naquelle chão árido e inhospito! A vinha, que elle alli plantara, agonisava, rasteira, enfesada e rachitica.

Plano hydrographico da barra do porto de Lisboa (detalhe), Francisco M. Pereira da Silva, 1857.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

A gente pouca, pallida, anémica, dizimada de continuo pelas febres. As aguas do inverno, estagnadas em charcos, tornados paúes, fermentando-as o sol ardente da canicula, evolavam de si miasmas mortaes, que o vento não varria, e que não poupavam nem as creanças, nem os adultos.

Em dias de sol, com o ar parado, aquelle ermo descampado é uma amostra da paizagem africana  ! Ao fundo, para o lado do Oceano, as cabanas de colmo dos pescadores, baixas e negras, e perto d'ellas a capellinha branca; defronte o cemitério, com os cyprestes esguios, balouçando — como nós — entre a vida e a morte ; á esquerda o Monte — árida rocha a pique, com o seu aspecto de fortaleza ; á direita a praia e o mar ...

Nada mais triste! Um dia, em que lá fiquei, ouvindo, ao sol posto, o toque das Ave-Marias, deu em mim tal melancolia, que desatei a chorar!

Não era ameno o sitio, tampouco o foi, em tempos, a fama dos seus moradores.

— Anda fugido na Costa — era uma phrase corrente na boca do povo, quando se falava de algum criminoso façanhudo, que desapparecera de Lisboa.

Transposto o Tejo, ladrões e assassinos alli se acoitavam e escondiam nas companhas dos barcos de pesca. Assim escapavam no mar aos quadrilheiros de Lisboa, quando lá iam perseguil-os. Uma visita da justiça á Costa — quando a policia estava longe de ser o que é hoje — era uma expedição arriscada, e quasi sempre inútil.

A civilização já lá chegou, e, se não mudou a natureza, mudaram os costumes. Ainda assim não podemos dizer que reina alli sempre uma paz octaviana. Um dia, logo depois de saírem de lá os nossos amigos, um homem, chamado Damião, foi esfaqueado.

A casa da sr.a Maria do Adrião — o nosso hotel — era respeitada, e nós, saindo de lá, não faziamos detença na povoação.

O poeta, installado no seu quartel general venatorio, em casa da sr.a Maria do Adrião, na Costa, havendo caça e dias amenos, deixava-se lá ficar, até que algum sudoeste bravio, dos que costumam açoitar aquella planície d'areia, o forçava a levantar vôo e recolher aos abrigos da cidade [...]

Retrato do poeta Raimundo Bulhão Pato,
Miguel Angelo Lupi, C. 1880
Imagem: ComJeitoeArte

Voltara o silencio áquclles logares. A nuvem negra, que de repente surgiu, a turvar-nos a limpida atmosphera daquelle formoso dia, desapparecera, varrida pela voz do poeta.

Dalli a pouco estávamos todos reunidos na casa de jantar da sr.a Maria do Adrião. Ao lado, na sala, de paredes estucadas, e tecto com relevos — uma surpresa para nós aquella restauração — a menina Gazimira extrahia das gavetas das suas bellas commodas de polimento, e mostrava ingenuamente ás senhoras, as riquezas e os primores da sua guardaroupa — chalés, vestidos de cores garridas, saias com rendas finas, camisas bordadas, lenços de seda de ramagens, que tão bem ficam, e tanto realce dam áquelles rostos campesinos, já illuminados de tons quentes pelo ar do campo e pelo sol.

Uma figura gothica — esta menina Gazimira. Alta e delgada de corpo, nem pallida, nem corada, a voz d"um timbre algo dorido, avara de palavras, os olhos sempre postos no chão, e um não sei que de triste e enigmático, davam-me a impressão de quem não anda satisfeito cá na terra...

Estas figuras, quando teem uma plástica individual, e caracteristica, por apagada que seja nellas a expressão da vida, são, como as estatuas, suggestivas.

Imprimem-se indeléveis na memoria, e entram na galeria do nosso mundo interior. E com estas imagens, cujos contornos o tempo vae esbatendo, que os artistas e os poetas compõem os seus quadros, os seus romances, e os seus poemas.

Vanidade ou vaidade, Hans Memling,
Musée des Beaux-Arts de Strasbourg, c. 1485.
Imagem: Wikipédia

Aquella donzella, serena e silenciosa, recortava-se alli, aos meus olhos — destacando do discorde scenario, e parecia ter saído d'algum velho painel flamengo, de Van Eyck ou de Memling — interior de cathedral gothica, ou comitiva castellã, em caçada fidalga, com pagens, lebreus e falcões [...]  

Os pescadores, pobre gente, quando ha peixe andam na sua faina ; quando elle falta vêem-se á porta das choças, ou na praia, olhando, tristes e sombrios, para o mar alto. E d'alli que lhes vem a ventura e a desgraça. Aquella vida, que para nós tem uma grande poesia, traz-lhes sempre deante dos olhos duas sombras negras — a fome em terra, quando escasseia o peixe, e a morte, quando os surprehende o vendaval !


Praia do Sol, Caparica, ed. José Nunes da Silva, s/n
Imagem: Delcampe, Bosspostcard




Sérios e concentrados, mantinham um discreto silencio, quando appareciam onde nós estávamos. Com os rostos semi-occultos, os gabões caídos em largas pregas, tinham um quer que de sombras, movendo-se lentamente naquelle fúnebre scenario.

A nota alegre, única, mas esta vivíssima, eram as creanças. Essas, sim, que vinham sempre visitar-nos. Nós, para elles, éramos a novidade — com os nossos trajos, armas, e perdigueiros. Elles — o bando buliçoso, saltão e gárrulo — corriam para nós, cheios de pittoresco e de vida. Uns de gabõesitos pardos outros de camisolas riscadas, brancas, azues, vermelhas ; alguns semi-nús, mostrando pelos rasgões da fato a pelle trigueira, com os seus tons fulvos ; todos descalços; os cabellos, pretos, loiros, arruivados, crespos e revoltos ; queimados os rostinhos pelo sol, e crestados pelo nordeste.

Costa da Caparica, crianças brincando na praia.
Imagem: Carlos Caria

Algum, mais atrevido, colleava, lenta e sorrateiramente, até á casa do jantar ; os outros miravamnos de longe por entre as portas, com os olhos vivos, esperando a saída. Poderia a vista satisfazer-lhes a curiosidade, mas nós, a este prazer, puramente óptico, ajuntávamos alguma coisa mais tangível.

Os primeiros a receber os nossos dons eram os mais velhos, os que nos tinham prestado algum serviço, que elles, no acto, não se esqueciam de allegar. A esta distribuição seguia-se outra, que era geral. Atirávamos para o monte.

Tinha que ver então ! O bando precipitava-se, ávido e furioso, sobre as mealhas esparsas na arêa. Era uma confusão vivíssima de corpos ás rebatinhas, de cabecitas resfolegantes e afogueadas, de mãos aduncas, luctando, qual de baixo, qual de cima, pela posse do metal. Aqui e alli, d'entre a revolta mole, erguiam-se alguns, cheios de alegria e de poeira, mostrando orgulhosos o premio da lucta. E ella repetia-se, se um olho mais agudo descobria no chão algum cobre, que aos outros escapara.

Depois os vencedores dispersavam. Alguns, raros, paravam nos limites da povoação, levando as mãos aos barretes ; outros iam-se logo, retouçando, aos pulos, pelo areal. Mas alguns ainda nos acompanhavam. Não era o amor, nem a gratidão ...

Costa da Caparica, crianças filhas de pescadores, 1938.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

Não tinham apanhado nada, e vinham lastimando-se, até que alguma alma, impaciente ou apiedada repartia com elles os últimos miúdos. Um vintém para cinco, dez réis para três ... Contas difficeis de fazer, mas que elles lá resolviam com a sua arithmetica de pequeninos.

Eram os prémios de consolação.

Com titulos bastantes para ser procurado pelos mestres da venatoria, não os tinha eguaes este sitio para ser frequentado por senhoras. Quem alli as levava, não era a fama das amenidades do logar, éramos nós, os caçadores, auxiliados por um certo estimulo artístico, o da curiosidade do contraste — ver a povoação dos pescadores, com as suas casas de colmo, armadas sobre os barcos!

Bellas Artes, 16, Costa de Caparica, A. Roque Gameiro, Paulo Emílio Guedes & Saraiva.
Imagem: Delcampe

Um trecho da Africa, á vista, e a dois passos de Lisboa !

Bellas Artes, 15, Costa de Caparica, A. Roque Gameiro, Paulo Emílio Guedes & Saraiva.
Imagem: Delcampe

Das classes populares também alguns alli iam fazer as suas ágapes campestres. Mas essas, não raro, tinham um epilogo cómico, quando não trágico. Vinho quasi sempre, e, ás vezes, sangue. Casas de cal e arêa havia lá então duas ou três. Na parede exterior d'uma d'ellas lia-se uma inscripção, em grossas lettras d'almagre, commemorando que a modesta vivenda fora honrada, tal dia, por um rei nosso. Se bem me recordo, foi D. João VI. E também me mostraram o tinteiro de faiança nacional, pintalgado de amarello, vermelho e verde — tons crus — de que elle se serviu para escrever ou assignar não me lembro o que.

Este sertão, inhospito para gente civilisada, foi, durante muitos annos, talvez pelo seu estado de natureza primitiva, um paraiso para os caçadores! Um completo mattagal, alto, denso, e espinhoso. Invernos havia, porém, abençoados, em que parecia ter-se alli aberto a arca de Noé! A caça de arribação em bandos! 

Uma d'essas gravuras — tirada da Chasse illustrée de 1867 — e que está deante de mim, traz-me viva á lembrança, com todos os seus episódios, uma das melhores caçadas que fizemos [...]
Imagem: Fédération Cynologique Internationale

Eram abibes, tarambolas, narcejas, patos, maçaricos reaes, gallinhas d'agua, borrelhos, toirões, codornizes, e depois lebres, e até gallinholas e perdizes, que desciam do monte — tudo com o seu acompanhamento de aves carniceiras, corvos, grifos e milhafres !

Trafaria, Vista dos Moinhos, ed. Manuel Henriques, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Quando Bulhão Pato começou a frequental-o com os seus amigos, ainda o Juncal era isto. Hoje lembra o "locus ubi Troja fuit" ... Aqui foi o Juncal ! ... (2)

Trafaria, Vista dos Moinhos, ed. Manuel Henriques, 08, década de 1900.
Imagem: Delcampe


(1) Francisco Zacharias d'Aça, Caçadas portuguezas: paizagens, figuras do campo, Lisboa, Secção Editorial da Companhia Nacional Editora, 1898
(2) idem

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Os Meia Lua da Costa de Caparica

O meia-lua da Costa da Caparica, também conhecido pelo nome de saveiro e barco da arte era o barco usado na Caparica para a arte xávega, que lembra pelo seu arqueado e pela quase igualdade das bicas uma meia-lua perfeita.

Pormenor da praia da Caparica, ed. Fotex, 144
Imagem: Delcampe

Manuel Leitão define o meia-lua como sendo mais pequeno que o barco do mar, com fundo chato, mas com um tosado importante, que o levanta numa curva bastante acentuada até às rodas de proa e de ré, produzindo o perfil característico em crescente, que dá à embarcação o seu nome. (1)

Praia do Sol, Caparica, ed. José Nunes da Silva, s/n
Imagem: Delcampe

Cada “meia-lua” era manobrado por uma “companha” ou associação de pescadores que vieram sobretudo de Lavos e Buarcos para tomar parte numa forma particular de arrasto com rede de cerco.

Caparica, Aguarela, Carlos Pinto Ramos
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Alguns dos homens que trabalhavam nesta ocupação eram também do Algarve.

Barco varado, Aguarela, Carlos Pinto Ramos
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Estas grandes embarcações eram construídas com quatro bancadas para os remadores e as posteriores, mais pequenas, e em menor número, que mediam 8,50 x 2,40 metros aproximadamente, eram construídas com três. 

Costa da Caparica, Saíndo para a pesca, ed. Lif , 2
Imagem: Delcampe

A parte de ré do casco era deixada aberta para permitir espaço no qual era alojada a rede, as suas numerosas poitas e flutuadores de cortiça e os cabos de puxar.

Costa da Caparica, ed. desc.

Nos tempos antigos, alguns “meias-luas” eram aparelhados com vela e leme do tipo “xarolo” para a pesca no Rio Tejo, para vender o peixe nos mercados da margem norte.

Souza, João de, Caderno de Todos os Barcos do Tejo tanto de Carga e transporte como d'Pesca,
Sociedade de José Fonseca, 1785

Em 1948 existiam 14 “Meias Luas” na Caparica, mas o seu número foi descendo, podendo em 1970 serem contados pelos dedos de uma mão. 

Costa da Caparica, 1946, Mário Novais

Prevendo o seu rápido desaparecimento, o Museu de Marinha adquiriu em Junho de 1975 um exemplar que se encontra exposto junto à entrada para o Planetário e onde o visitante pode admirar as suas belas formas e toda uma arte que se vai extinguindo. (2)

Costa da Caparica, 1956
Imagem: Eulália Duarte Matos


(1) Lopes, Ana Maria, Marintimidades, O meia-lua: da praia para o Museu?... 

(2) Leitão, Manuel, Revista da Armada, Dezembro 2002, (pág. 397, ou pesquisar "Caparica")

Leitura relacionada: Fonseca, Senos da, Factos & História , A arte da xávega