sexta-feira, 5 de julho de 2019

A tragédia do Pensativo por Norberto de Araújo

Aqui há uns trinta e tal anos deu-se na Caparica o naufrágio de um barco de pesca em que morreram (pois) dez ou doze homens à vista da praia, à vista daquela gente toda, das familias... foi uma coisa tremenda. Alberto de Araújo fora designado para fazer a reportagem da Caparica, e escolheu-me para o acompanhar e para o ajudar. Eu que nesse tempo sabia pouco ajudar e muito menos um mestre. Ficou lá uns vinte minutos, ele, viveu o ambiente de tragédia, aquelas pobres familias, alanceadas, mulheres que já eram viúvas, crianças que já eram órfãs... encarregou-me de tomar nome dos mortos, o nome do barco etc. E viemos para o jornal.

O jornalista Maurício de Oliveira fala de Norberto de Araújo e da sua reportagem aos 15"45' em
Sabe quem foi Norberto de Araújo? 1971, RTP Arquivos

Ele, em vinte minutos, escreveu uma página, das dimensões de um vespertino nosso, aqui da cidade. Ele perguntou-me duas ou três coisas, mas apenas o nome do barco, o nome dos homens, e quando terminou disse: — Pronto, está feito!

Umgrupo de náufragos posando para o nosso jornal.
Diário de Lisboa, 12 de dezembro de 1929

Olhou para mim e verifiquei que os seus olhos estavam vermelhos, não de fadiga, mas de umas lágrimas, que começavam, que começavam a saltar: a saltar das pálpebras. Percebeu, ele percebeu que eu entendia a sua emoção, e então disse-me (aquilo foi terrível... foi uma coisa terrível), o homem que era Norberto Araújo, profundamente humano, sentimental, coração generoso, tinha sido tomado de assalto pela própria emanação do seu talento, e estava a chorar a desgraça que ele acabava de descrever com verdadeiro génio. (1)

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No Oceano, defronte da Costa de Caparica, que acabamos de contemplar envolta de azul e de luminosidade transparente, com um mar de crianças inocente das suas traiçõezinhas, a praia quietíssima e as figuras tisnadas das gentes sucumbidas ao peso da desgraça — desenrolou-se esta manhã, em rápidos minutos, ainda era lusco-fusco, urna tragedia, que põe de luto muitos lares e arrebatou á vida onze homens, alguns quasi crianças, a maioria na força da vida — entre os 16 e os 30 anos. 

Diário de Lisboa, 12 de dezembro de 1929

A população local e dos arredores encontra-se consternadíssima. Uma vaga de tristeza. que se não traduz em palavras, mas no silencio que quasi toda a gente mantém, paira sobre a ridente povoação da Costa, primitiva praia de pescadores, onde ha ainda um ou outro traço selvagem, e onde a civilização ha anos para cá vem entrando, pé ante pé, já com os seus ares e as suas aspirações, que, contudo não afastam da linda praia o seu caracter original e o seu encanto de grande praia piscatória, de rudimentares artes e atrevidas fainas do mar. 

Alguns sobreviventes do naufrágio na Costa da Caparica.
Torre do Tombo

Na casa da companha está estendido um cadáver; o mar guarda por enquanto, para demorar. a posse, mais dez, e nove sobreviventes, alguns como tontos. andam por ali... a ver o mar — que parece que não foi nada com ele. 

As companhas do "Mestre Chico"

Na Costa da Caparica a actividade piscatória, de processos primitivos como dizemos, tal qual em outras praias do litoral português do Norte ao Sul do país banhado pelo Atlântico, exerce-se entre o começo da primavera e o principio do inverno. 

Diário de Lisboa, 12 de dezembro de 1929

Ás vezes, audaciosamente, os pescadores entram pelo inverno. Por enquanto o mar não "puxa" ainda muito.

As campanhas que ali trabalham não são agora muitas. Três ou quatro, cada uma com seu barco, cada barco com a sua gente, um arrais, um espadilheiro, e aí vinte homens que remam, lançam as redes, trazem o barco para terra e puxam as duas cordas, uma, a "panda", que fica presa em terra logo quando o barco sai, e a outra que o barco trás consigo, quando, largadas as redes ao largo, ai a cerca de uma milha, volta á praia, nos braços das ondas.

"Mestre Chico", figura simpática e prestigiosa da terra, ali nado e criado, que foi pescador e chegou a proprietário de varias "artes", tem hoje três barcos com suas companhas, que todas as manhãs e todas as tardes, quando o mar permite, vão ao mar, fazer os seus lances, alguns dos quais repetem, quando no primeiro matam muito peixe. 

"Mestre Chico", o sr. Francisco José da Silva, casado, ali proprietário tambem de um estabelecimento de mercearia, tem ao seu trabalho assim uns setenta homens, entregues aos três arrais, que escolhem a hora oportuna e o sitio apropriado para lançar as redes, que ás vezes, após duras canseiras, quasi de condenados, trazem apenas caranguejo reles, para estrume. 

Esta temporada não tem sido má de todo. Têm "matado" bem, e lances tem havido que se aproximam de uma dezena de contos. Contudo, estes lances felizes mal chegam para compensar as companhas da centena de vezes que inutilmente vão ao mar, ou das semanas em que o rigor do tempo os obriga á imobilidade, estendidos debaixo das redes ou acolhidos ás palhotas ou ás casitas já de pedra e madeira. 

Vida de heroísmo e de sacrifício ignorados...

Três barcos no mar

Esta manhã os arrais de "Mestre Chico" resolveram que fossem para o mar o "Pensativo" e o "S. Francisco". Tambem iria o "S. José", de outro proprietário, o "Júlio da Filipa". Em terra ficou encalhado o "Portugal", tambem do dono do "Pensativo". Era escuro, e os homens andaram pela terra a gritar: "pró mar!" Foram-se chegando para a praia as companhas, vultos escuros deslizando pela areia, ainda no negrume da noite.

Naufrágio na Costa da Caparica, ao centro o arrais do barco naufragado.
Torre do Tombo
E aí cérca das cinco horas, mal dealbava, saíram os três barcos, de altas proas, cada um com seu espadilheiro à popa, guiando "aquilo", e trinta e seis e braços puxando pelos remos ciclópicos.

Dos três, o "Pensativo" foi o ultimo a sair. Ferrou a "panda" na areia, os homens empurraram-no á agua (já lá andavam os outros dois) saltaram para dentro, tomaram a seu lugar, vá de puxar com força, e foram-se afastando, afastando. 

O mar não estava alvoroçado; não havia neblina, e piscavam ainda o seu olho vermelho e branco os faróis da Espichel e do Bugio. As familias dormiam descansadas: uma faina como tantas... 

Levanta-se nevoeiro

Menos de urna hora andou o "Pensativo" ao largo, já o "S. Francisco?" seu irmão, e o "S. José" vinham para terra. Começava a cair uma neblina leve.

Alguns sobreviventes do naufrágio na Costa da Caparica.
Torre do Tombo

O arrais Vitorino escolheu o sitio que lhe pareceu — ás vezes por palpite — mais sujeito a peixe, e mandou largar as pesadas e grandes redes, cujo saco há de recolher o peixe que por ali anda, aos cardumes, as "brancas" de sardinha ou de carapau que vão de longada para o Sul.

Começava a clarear, vagamente. Os faróis mal brilhavam. Fazia frio; o mar não dava de si "para mal", mas a neblina fez-se nevoeiro, e fechava-se, em "treva branca". 

Lançada a rede, já no isolamento dos outros barcos dos camaradas, o "Pensativo" deu ainda umas dúzias de remadas duras, entre o balanço das ondas, que mais cresce quanto mais o barco se aproxima da terra. E aproava á praia. 

Já tinham "abicado" o "S. José" e "S. Francisco", este do arrais Cavalinho, e pertença tambem de "Mestre Chico".

E na praia os grupos indistintos dos peixeiros vendedores, que vão para ali com seus cabazes e cêstas de carga, andavam de um lado para o outro "a ver o que vinha", á espera da lota. Os guardas-fiscais e os cabos do mar misturavam-se na mancha sempre escura, do gentio comprador: E tudo envolto num nevoeiro densíssimo.

Uma traição do mar

— Ouvia-se apenas as pancadas secas dos remos pesados na agua do mar, que começava "puxando". Havia já débil claridade. Nada que fizesse prever traição. Os homens puxavam, puxavam, e alguns pensariam se a rede traria esta manhã ou não traria peixe.

Naufrágio na Costa da Caparica, o rimeiro cadáver que deu à costa.
Torre do Tombo

Aí a vinte "cordas" de terra, e cada corda tem 18 praças — ou seja á distancia de multo menos de um quilometro — o barco é sacudido por um vagalhão, destes que andam "perdidos". Sacode o "Pensativo" pela popa, e fé-lo estremecer todo, como uma casca de noz. Que ondas!

Mas é costume... O espadilheiro aguentou. O barco preso pela espia segura-se e a onda há de passar. Novo vagalhão, já os remos custam a segurar. A meia lua, que o barco com suas pontas reviradas desenha ao lume de agua, no fundo de um nevoeiro que parece ocultá-lo do resto do mundo, afunda-se e logo ressurge, intacto. 

Mas a espia quebra!

A tripulação percebeu o golpe; entendeu o perigo. Estavam perdidos! E não houve mais pensar e o leme tornou-se inútil. O barco, tornado frágil, eleva-se das ondas uns metros e cai ao peso de si proprio, volta-se, como um barquinho de crianças.

— Acudam-nos! Acudam-nos! — gritam para terra. E enrodilha-se tudo. O barco fica de fundo para o ar, e sob ele lutam desesperadamente, aqueles vinte homens. 

A tragedia não tem descrição possivel. Uns nadam, vigorosamente, não sabendo para que lado está a terra. Outros saltam ao barco, pretendendo ultimo apoio. Outros, enrodilhados nos remos, não se teriam, por ventura, podido mover. 

E os gritos, dos que conseguem gritar confundem-se com gemidos dos teriam sido atingidos pelas madeiras, pelos apetrechos pesados bordo. Agarram-se alguns a outros numa ansia de salvação. O desespero da salvação! A ansia de viver! 

A maioria daqueles homens não tem 30 anos [...]


Um balanço sinistro

Reúnem-se os homens. Um grito de um que manda calar. Uma voz de outro que interrompe o silencio.

Naufrágio na Costa da Caparica, Francisco Pinto de 14 anos que se salvou a custo.
Torre do Tombo

Um pranto uma mulher que vem fazer a ultima pergunta: 

O meu filho? Mas só o meu filho que não volta?! 

Ninguem responde. E levam-na.

"Mestre Chico" — parece uma sombra. Ele não diz nada. São os seus homens. Foi a sua "arte". Foi o seu barco. E um mais valoroso aventa: 

— Vamos a contar... Vamos a contar...

E contam. Um vai escrevendo, numa garatuja de alfabeto primitivo. Nós recompomos.

Desaparecidos, sem esperança de qualquer salvação, e mortos, portanto:

—  Agostinho Coelho, o "Bexiga" — ali estendido numa esteira da Casa da. Companha — 29 anos, solteiro, de familia. em Lisboa. 

— João dos Santos Quintino, de 39 anos, de Belém. Casado e com dois filhos. 

— Francisco Saloio, de 14 anos, do Bombarral, mas criado e vivido na Costa da Caparica. A criança da companha. 

— Manuel Agostinho, de 30 anos, de fóra da Costa, onde não tinha familia. Era o mais moderno da companha, e fôra para o mar contra vontade da familia. 

— Joaquim Monarte, o "Cabinho", de 28 anos, casado e com um filho, natural da Costa, onde tem tambem pai e irmãos. 

— Manuel da Grama Santos, de 18 anos, da Costa da Caparica. Muito simpático e alegre. Vivia com sua mãe, de quem era o amparo. Ontem á noite andou a cantar na fonte da povoação, e foi a cantar para o mar. 

— João Nozes Júnior, tambem da Costa, 30 anos, vivia com seu pai, que tambem foi pescador. 

— Merceano da Silva, natural da Costa, de 22 anos. Casado há pouco tempo, deixa sua mulher gravida. Tinha tambem sua mãe em casa. 

— Delfim, um rapazinho que fazia hoje 16 anos, e que foi ajudante do banheiro Ivandro. Natural do Cruzeiro da Ajuda. 

— António Davina, de 25 anos, casou há 15 dias na Costa, onde tinha tambem mãe e irmãs. 

— José Martins, de 24 anos, solteiro, o amparo de sua casa, pois tem o pai e a mãe tuberculosos, e era ele o sustentáculo da casa. 

Eis a lista sinistra.

Os sobreviventes

São, como dissemos, nove. Não atribuem o facto de se salvarem á circunstancia de saberem nadar. "Ficaram lá alguns que sabiam mais do que nós". São eles:

Alguns sobreviventes do naufrágio na Costa da Caparica.
Torre do Tombo

Vitorino José Galinho, o arrais, de 24 anos; José Raimundo, filho, que era o espadilheiro; Eduardo Ribeiro; Pedro Manarte, Pina Setubalão, Francisco Capote, sobrinho; Raimundo Gonçalves, Antonio Isidoro e Alberto Martins, que foi o primeiro a chegar a terra.

As causas da catástrofe

As descrições dos sobreviventes, que têm animo para falar, é que nos permitem reconstituir a tragedia como acima a damos. 

Mestre Francisco da Silva limita-se a dizer-nos, em resumo:

— Esta desgraça só a podemos atribuir a uma traição do destino. Quantas vezes, com temporal, e mar "a puxar" as minhas companhas iam ao mar. Porque não sou eu, mas os arrais que mandam. E o mar hoje estava bom. Não era um mar de senhoras. Era um mar de pescadores. Veio aquele puxão de agua, e o barco não nos dava [...] os homens sabe do seu oficio. Mas a espia quebrou, e esta é que foi a desgraça. Com o mar que súbito embravecera e sem aquele apoio, voltou-se. Não sabemos como aquilo foi. A corda era nova. Talvez tivesse "desabuçado", quer dizer, talvez um dos nós se tivesse desatado com o puxão. Nunca sucedeu. Foi a desgraça. 

E numa grande e sincera lastima: 

— Pobres rapazes! Tudo gente nova! Alguns eram crianças! E todos bons homens, coitados. E Mestre Chico custa-lhe a suster as lagrimas.

O "Pensativo na praia"

Poucas horas depois da tragedia, o "Pensativo", que continuava boiando, indiferente, vitima tambem do mar, foi arrastado para terra. Estava quasi esfrangalhado. Os remos, que são pesados braços de madeira, alguns dos quais têm de ser manejados por dois homens, estavam quasi todos quebrados. 

O barco que naufragou, depois de recolhido e varado em terra.
Torre do Tombo

A proa e a popa desfeitas. Os bancos partidos. É um farrapo de si proprio, o pobre barco, T122F, que largos invernos resistiu aos temporais e sempre muito cuidado, estava como novo, com suas pinturas frescas e a sua elegância esbelta de cortador das ondas. 

Dentro dele ainda está roupa, barretes e calçado dos náufragos, que trabalham descalços. Tem sete metros de comprimento e apesar de ser agora uma ruina, ainda avulta ao lado do "S. Francisco" e do "S. José". 

A rede ficou no fundo do mar, e está-se tentando conseguir um barco que a levante, visto a vida dos pescadores não poder parar. O "Pensativo" é que ficará na praia muito tempo, encalhado, a ver os outros partirem, os outros chegarem [...] (1)


(1) Sabe quem foi Norberto de Araújo?, 1971, RTP Arquivos
(2) Diário de Lisboa, 12 de dezembro de 1929

Artigo relacionado:
O naufrágio do Pensativo

Mais informação:
Sabe quem foi Norberto de Araújo?, 1971, RTP Arquivos (aos 15"45' o jornalista Maurício de Oliveira fala de Norberto de Araújo e da sua reportagem)

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