sexta-feira, 26 de julho de 2019

Bulhão Pato, a consagração da scena

LIVROS NOVOS

Ruy Blas — Traducção em verso de Bulhão Pato. — 

Sem ser um Shakespeare, Victor Hugo ha de viver largos seculos no theatro. Nos seus dramas não se reflecte o homem, mas reflecte-se a humanidade. Ruge nos seus dramas a paixão impessoal, pelas mascaras de bronze desses personagens titanicos. 

Retrato de Bulhão Pato (detalhe), Columbano Bordalo Pinheiro, 1883.
Imagem: MNAC

Nas peças de Shakespeare sente-se a carne que se contorce, os nervos que vibram, o sangue que corre por baixo da epiderme dos personagens; nas de Victor Hugo não se veem senão as grandes mascaras de bronze, de cujas bocas sae o grande sopro lyrico das paixões impetuosas. 

Ruy Blas é de todos os dramas aquelle em que mais se sente sua impersonalisação. Tudo está fora do real, desde a mascara demoniaca de D. Sallustio até á mascara silenica de D. Cezar de Bazan, mas as grandes paixões, que podem agitar a humanidade, trovejam, riem, ou soluçam em todos aquelles labios que teem, em vez da carnação rosada da vida, a rigidez metallica dos labios das estatuas.

Entre Sallustio e Iago ha um abysmo; lago é um infame, Sallustio é a infamia. Romeu é um apaixonado, Ruy Blas é a paixão. Fallstaff e um typo immortal de bebado jovial, fanfarrão, vadio. D. Cezar é a propria symbolisação de todos esses vicios alegres.

Por isso Victor Hugo ha de viver no theatro como Shakespeare, este para convulsionar eternamente as platéas pela verdade humana dos seus personagens, aquelle para as inflammar nos arrebatamentos lyricos e infaustos da sua linguagem apaixonada e candente.

Por isso o que se cita de Shakespeare? as scenas: a do jardim de Julieta, a de Othello e lago, a de Shylock e Antonio, a de Ricardo III e rainha Anna, a de Macbeth e de lady Macheth, do rei Lear e o bobo, a de Hamlet e a mãe ou de Hamlet e Ophelia.

O que se cita de Victor Hugo? monologos, o de Carlos V no "Hernani", o do marquez de Nansis na "Marion Delorme" e o de Barba Roxa nos "Burgraves", o de Ruy Blas aos grandes de Hespanha no drama de que nos occupanios agora.

Quem falla em Shakespeare são os personagens pela boca do poeta, e em Victor logo o poeta pela boca dos personagens. O genio de Sbakespeare faz vibrar com o seu magico sopro os nervos das suas creaturas, Victor Hugo dá ás suas os nervos de bronze da sua propria lyra.

Bulhão Pato, que já enriquecera a litteratura portugueza com duas magnificas traducçães de Shakespeare, quis tambem traduzir Victor Hugo e pôz em verso portuguez esse magnifico Ruy Blas, a que alludimos ha pouco.

Pôl-o em verso portuguez de lei, n'esse magnifico verso solto hoje trocado pelo alexandrino magestoso e massudo, que arrasta o dialogo ao passo cadenciado das suas rimas alternadas. Foi extraordinariamente feliz n'esta audaciosa tentativa. No verso solto parece que vibra mais livre o latego de Ruy Blas, que dança mais descuidosa a jovialidade de D. Cezar, que suspira mais melodiosamente o lyrismo amoroso da rainha.

Ruy Blas por Bulhão Pato, O António Maria, 13 novembro de 1884 (detalhe).
Hemeroteca Digital

Oiçam o final da objurgatoria de Ruy Blas aos ministros:

Teu auxilio, o teu braço, ó Carlos quinto; 
Porque surcumbe a flespanha, a Hespanha extingue-se!

Aquelle globo em tuas mãos robustas,
O sol deslumbrador, que n'outro tempo
Fazia acreditar ao mundo inteiro
Que era em Madrid que despontava o dia, 

Agora, astro sem vida, a pouco e pouco 
Vai-se sumindo, lua em seu minguante, 
Que de outro povo ha de apagar a aurora!

Nas mãos de vendilhões a tua herança! 
Fundiram em moeda a tua c'rôa! 
Conspurcam o. esplendor das tuas glorias! 
Ó gigante, é possível que tal durmas?

Vendem teu sceptro a pezo; anões disformes, 
Do teu manto de rei talham as vestes. 
Tua águia imperial, que doutros tempos 
De raios e fulgor enchia o mundo, 
Pobre ave já sem penas, os famelicos 
Vão devoral-a na marmita infame.

Ah! como o nosso bom verso endecasyllabo, manejojado por mãos vigorosas, serve ainda para tudo! como elle zurze! como silva nos ares! como substitue pela amplitude do rhytmuo a amplitude syllabica do alexandrino:

De raios e fulgor enchia o mundo!

Afinal Victor Hugo com todo o seu genio para ter um alexandrino com esta idéa não poude fazer mais de que metter um adjectivo perfeitamente dispensavel:

Couvrait le monde entier de tonnere et de flammes.

Para isso, bem o sabemos, é indispensavel que o traductor se chame Bocage, ou Castilho, ou Bulhão Pato, é necessario que se tenha no ouvido, para segurança melodica, o segredo do rhythmo, que dispensa o diapasão da rima, de que sempre carecem as cantores mediocres, é indispensavel que se tenham boas pernas nervosas, como Bulhão Pato tem em caçadas e em poesia, para acompanhar as passadas de gigante de Victor Hugo sem se empoleirar uma pessoa nas andas dodecasylabicas do alexandrino portuguez.

Six personnages de Victor Hugo Louis Boulanger, 1853 (musée des beaux-arts de Dijon).
Sont représentés, de gauche à droite en commençant par le haut Don Ruy Gomez, Don César de Bazan, Don Salluste, Hernani, Esméralda, De Saverny.
Wikipédia

Pois no celebre monologo de que demos um trecho, e que é enorme, Bulhão Pato, vertendo escrupulosamente, só precisou de mais uns dez ou onze versos do que os que tem Victor Hugo no original, e n'esse longo trecho apenas teremos de notar uma phrase em que a traducção não é rigorosamente a que nos parece verdadeira. "Depuis Philippe quatre" deveria traduzir-ie "Desde Philippe IV" e não "Após de Philippe IV, como o sentido historico indica, porque Victor Hugo diz, peta boca de Ruy Blas, primeiro ministro do rei de Hespenha: 

"Nous avons, depuis Philippe Quatre, 
Perdu le Portugal, le Brésil..."

Ora como foi exactamente no tempo de Philippe IV que a Hespanha perdeu Portugal e Brazil, vê-se que "depuis" não pôde ter outra significação senão a que tem realmente e lexicologicamente "desde".

Fizemos esta pequeníssima observação, para pôr em relevo a fidelidade maravilhosa com que Bulhão Pato acompanha o texto do grande poeta, chegando até a não o emendar, quando Victor Hugo perpetra a respeito de coisas portuguezas um d'aquelles disparates, que elle atira com uma serenidade olympica do alto de um alexandrino recheiado de erudição: 

"Perdu Ie Portugal, le Brésil, sans combatre?"

Para dizer isto nas bochechas dos vencidas de Montes-Claros, de que ainda se havia de lembrar amargamente algum dos velhotes do conselho, era necessario que Ruy Blas tivesse urgentimima necessidade de encontrar uma rima para "Philippe Quatre". Bulhão Pato, com urna fidelidade a toda a prova escreve: 

Portugal e Brazil "sem um combate"
Deixámos ir por mão. 

A proposito da sem cerimonia com que Victor Hugo trata a historia portugueza, sempre nos ha-de lembrar aquelle disparate que Hernani atira magestosamentc a Carlos V na crypta d'Aix-la-Chapelle:

"Je suis Jean d'Aragon, grand-mailre d'Avis né..."

Voltemos ao Ruy Blas, e á magnifica tradução de Bulhão Pato. Para acabarmos do provar como o nosso eminente poeta é fidelissinio na traducção, basta dizermos que, só porque se afastou ligeirissimamen-te do original, na esplendida versão do canto das lavadeiras, chamou-lhe logo imitação. 

Comparem e vejam como se espelham no crystal sonoro dos versos de Bulhão Pato as graciosas e frescas imagens dos versos de Victor Hugo:

À quoi bon entendre
Les oiseaux des bois?
L'oiscau le plus tendre
Chante dans ta voix. 


Que Dieu montra ou voile 
Les astres des cieux! 
La plus pure étoile 
Brille dans tes yeux.

Qu'Avril renouvelle 
Le jardin en fleur! 
La fleur la plus belle 
Fleurit dans tom coeur. 

Cet oiscau de flamme, 
Cet astro du jour, 
Cette fleur de l'âme 
S'appelle l'Amour 

Vejamos agora na versão portugueza:

Ruy Blas por Bulhão Pato, O António Maria, 13 novembro de 1884 (detalhe).
Hemeroteca Digital

Para que — ouvir das aves 
A voz na selva copada, 
tem notas mais suaves 
A tua voz encantada! 

Para que — ver a mais bella 
D'essas estrellas dc Deus, 
Se mais peregrina estrella 
Refulge nos olhos teus!

Para que — abril em rosa 
Vai transformar um botão, 
Se outra flor, e mais formosa, 
Sorri no teu coração. 

Ave, flor, astro do dia, 
Canto, perfume, esplendor, 
Formam a mesma harmonia 
E tem um só nome: Amor! 

Pois que ha n'estes versos mais do que a refracção que tem a luz ao passar de um para outro meio, da transparencia do ar para a limpidez da agua, e a imagem ao passar do sonoro francez de Victor Hugo para o harmonioso portuguez dc Bulhão Pato?

Lisboa, Teatro D. Maria II, c. 1890.
Arquivo Municipal de Lisboa

Em resumo, a traducção de Ruy Blas por Bulhão Pato é uma verdadeira obra prima. que deve ter, que esperamos que tenha, a consagração da scena. 

Obras assim devem engastar-se no reportorio dramatico nacional.

P. C. [Manuel Pinheiro Chagas] (1)


*
*     *

No final da ultima scena, Bulhão Pato foi chamado ao proscenio pelo publico que queria victorial-o, mas o illustre poeta não appareceu porque andava, segundo ouvimos, lá pela Outra Banda, de espingarda ao hombro, a caçar nos seus homonymos bravos.

Bulhão Pato, Rafael Bordalo Pinheiro,
Album Glórias, 1902
Biblioteca Nacional de Portugal

O publico, desesperado por não lhe apparecer o Pato que pedia em D. Maria, foi para a cervejaria da rua do Principe, onde se vingou pedindo pato com macarrão! (2)


(1) Jornal do Domingo, Revista Universal, Anno I n° 42, 4 de dezembro de 1881
(2) O António Maria, 13 novembro 1884

Informação relacionada:
Bulhão Pato (1829-1912): no Centenário da sua Morte

Leitura relacionada:
Victor Hugo, Ruy Blas, traducção em verso por Bulhão Pato, Lisboa, David Corazzi, 1881

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