domingo, 11 de dezembro de 2022

Capuchos de Caparica

Como é sobejamente sabido, mas convém aqui resumir apenas para mais fácil enquadramento temporal, a criação da custódia (só mais tarde Província) da Arrábida teve a sua origem no eremitério na serra do mesmo nome, ocupado por Fr. Martinho de Santa Maria após doação do 1º duque de Aveiro, D. João de Lencastre, em 1539. A custódia afirmou‑se a partir de 1542 com a cedência, pelo mesmo duque, dos terrenos na encosta da serra da Arrábida, que contou com o acompanhamento inicial de Fr. Pedro de Alcântara, que aí viveu por 1541‑1542 – altura em que a ermida passou a convento – e em 1549‑1551.

Frei Martinho de Santa Maria (detalhe), Convento de Santa Maria da Arrábida.
IPTI


Esta criação veio, por um lado, despoletar um processo de aprofundamento e alargamento da influência desta «estreitíssima observância franciscana» e acabou por conduzir à instituição e aprovação canónica, em 1560, da Província da Arrábida, ao mesmo tempo que evidenciou a persistência de tensões que movimentos de reforma anteriores não tinham plenamente vencido, assim como a continuidade de anseios espirituais focados numa maior interioridade e menor expressão exterior (...)

De facto, a sua «Patente, em que ordenava ao nosso Custodio, e mais Religiosos seus súbditos, que tirassem os remendos, capuchos e corda, e guardassem na forma dos Habitos a mesma que os da Recoleição», provocou nos frades capuchos «grande desconsolação» e reação.

As polémicas que daí resultaram, as subsequentes nomeações de custódio e guardiães dos 3 conventos, o breve papal que impunha a mudança de hábito e a bem sucedida intercessão do Infante D. Luís para que mantivessem o seu hábito, remendos e capucho («ainda que este mais curto»), vieram a contribuir para o alargamento da custódia e subsequente passagem a Província.

Roque Gameiro

De facto, a resistência dos frades ao intento de Fr. André da Ínsua e ao breve papal, com a proteção do Infante D. Luís e de D. João de Lencastre, fê‑los vencedores do intento de manutenção do hábito e custódia. E porque o número de frades era já superior à capacidade dos três conventos, aceitaram a «oferta, que lhe fazia Lourenço de Sousa, Aposentador mor, para efeito de fundar um convento com o título de N. Sra da Conceição», numa quinta junto a Mofassem (Murfacém), em 1550.

Deste modo, o convento da Caparica veio a ser o quarto convento, a que se seguiram outros posteriormente. Recorrendo às palavras do mesmo cronista da Província, Fr. António da Piedade, na conhecida passagem do seu Espelho de Penitentes sobre esta fundação, «alguns religiosos da observância», quando Fr. André da Ínsua os obrigou a tirar os remendos e o capucho, quiseram manter‑se na custódia, «ou atraídos da suavidade que exalava a virtude neste ameno jardim da Santidade, ou para moderarem os Capuchos as desconsolaçõens que lhe causara o decreto...».

Convento dos Capuchos, Cruz Louro, 1933.
Delcampe

Contudo, como esse lugar em Mofassem (Murfacém) era «tão pobre e pequeno» e veio a revelar‑se também doentio (como se veio a revelar também o de Palhais) e de pouco sossego por ter próximo um poço de que se servia o povo, Lourenço Pires de Távora, «grande devoto e amante nosso, fidalgo tão ilustre», decidiu pôr «em execução», em 1558, a construção do convento – quando era custódio, pela segunda vez, Fr. Luis Delna –, «em pouca distancia do primeiro, em lugar porèm mais sadio».

E fê‑lo «à sua custa», conseguindo que ficasse pronto no mesmo ano. Todos estes factos são suficientemente conhecidos e divulgados nos estudos e informações sobre este convento, mas é importante tê‑los aqui presentes, para enquadrar alguns matizes das redes religiosas e culturais que de seguida apresentarei.

Além do conhecido patrocínio – e proteção – de Lourenço Pires de Távora na fundação do convento e dos seus frades, também conseguiu, quando foi embaixador de D. Sebastião em Roma, obter do Papa Pio IV, em 30 de setembro de 1560, um Breve que conferia aos fiéis que ouvissem missas celebradas no altar‑mor da Igreja do convento «graças e indulgências» como se as «ditas Missas se celebrassem nos Altares das Igrejas de S. Gregorio na cidade de Roma, de S. Lourenço e S. Sebastião extra muros...».


Congratulação de Lourenço Pires de Távora ao Pontífice Pio IV.
Internet Archive

Não era pequeno privilégio – que também revela a capacidade de influência deste embaixador em Roma, nas palavras de Fr. António da Piedade, «com extremoso affecto venerava o Summo Pontifice a Lourenço Pires, pelas singulares virtudes de que era dotado».

Mas não deixa de ser relevante que estas «graças e indulgências» tenham sido requeridas precisamente para este pequeno convento dos capuchos da Caparica, para onde se retirou em 1569 e onde veio a ser sepultado em 1573.

Mas também se deve realçar o facto, igualmente referido pelo cronista Fr. António da Piedade no Espelho de Penitentes, que a «sua consorte dona Catharina de Távora» (filha de Rui Lourenço de Távora e Joana Ferrer de Acuña e dama da Rainha D. Catarina) era «tão grande amante, e devota nossa, que em sua casa tinha hábitos para os Religiosos vestirem enxutos, quando no tempo do Inverno chegassem molhados».

Ou seja, os frades frequentavam não só a casa destes nobres, como tinham um especial tratamento resultante da forte dedicação de D. Catarina de Távora. E tão forte era esta relação familiar que, pelo testemunho do mesmo cronista, «com a mesma devoção nos tratarão os seus des‑ cendentes, confessando alguns que o seu maior alívio era a nossa companhia».

Acresce ao destes nobres – casados – o, também sabido, «bom agasalho» que lhes deram outras figuras de grande relevo simultaneamente social, político e espiritual na época. Com destaque figuram – porque «neste merecimento se aven‑ tajàrão a todos» – Francisco de Sousa Tavares e sua mulher Dona Maria da Silva, «Fidalgos de conhecida nobreza, os quaes morando na Villa de Almada, apenas vião os Frades, jà os levavão para casa com alegres demonstraçoens do muito que os amavão», tendo mesmo, «para os não divertir dos seus virtuosos exercícios», mandado «fazer hum aposento particular, em que os recolhião».

Costa da Caparica Praia do Sol ed. desc. 56 Ruinas do Convento dos Capuchos.
Delcampe

Esta relação foi já objeto de especial destaque por Silva Dias (Correntes de sentimento religioso) e Pierre Civil (Image et dévotion dans l’Espagne du XVIe siècle: Le traité Norte de Ydiotas de Francisco de Monzón, 1563). Contudo, esta proximidade, uma certa intimidade «portas adentro», merece que nos detenhamos um pouco para, se possível, sobressaírem alguns matizes que, creio, não terão sido ainda explorados nos estudos anteriores que tenho referido.

Em primeiro lugar, a fundação do convento por um leigo casado. Apesar de não ser algo de novo – muitos outros conventos, antes e depois, foram fundados por leigos, casados, maioritariamente da nobreza – este era um nobre fortemente influente na corte, e mais tarde em Roma. À sua custa mandou fazer e viu construído no espaço de um ano o convento, com o título de Nª Senhora da Piedade, na Caparica.

Tê‑lo‑á feito pelo «desejo com que solicitava o nosso alivio e melhor commodo», já que no pequeno convento que lhes doara Lourenço de Sousa em Mofacém em 1550 «experimentarão grandes discommodos na saúde, por ser um lugar muito doentio, e também nos exercícios da Religião, pela vizinhança de hum poço que dava agua ao Povo, com a qual frequência se inquietavam», já que não podiam «evitar o tumulto» que lhes criava esta «vizinhança».

Costa da Caparica, Um pormenor dos Capuchos ed. Passaporte 37.
Delcampe


O silêncio era, como se sabe, uma condição essencial às práticas religiosas, aos exercícios espirituais, incluindo a meditação e a oração mental. Mais tarde, sendo embaixador em Roma, empenhou‑se na criação da Província, tal como o próprio Cardeal D. Henrique.

E talvez o Alvará que mais tarde «mandou passar» o próprio rei D. Sebastião «em que ordena que a prohibição de seus Pinhaes naquele terreno se não entenda connosco, e que possamos mandar cortar a lenha que nos for necessária» se deva à influência direta de Lourenço Pires de Távora... (1)


(1) Maria de Lurdes Correia Fernandes, Os capuchos da Caparica no Portugal de meados do século XVI: entre círculos aristocráticos devotos e (re)leituras espirituais, 2021

Artigos relacionados:
Lourenço Pires de Távora
Quinta Távora e Mosteiro da deceda
Cronologia breve da Torre Velha (1 de 3)
Cronologia do Convento dos Capuchos (Caparica)
A Costa romântica de Bulhão Pato
A Costa no século XIX
Restos do Convento e egreja dos Capuchos em Caparica
O guardião dos Capuchos
etc.

Leitura relacionada:
Fr. Antonio da Piedade, Espelho de penitentes e chronica da Provincia de Santa Maria da Arrabida

Historia de Varoens illustres do appellido Tavora, Continuada em os Senhores da caza e morgado de Caparica. Com a rellacam de todos os successos publicos deste Reyno e sus conquistas desde o tempo do Rey D. Joam III (etc.) ... Publicado por Ruy Lourenco de Tavora (etc.)

terça-feira, 1 de novembro de 2022

Alegria no trabalho

Suprimindo todas as instituições privadas e públicas – provenientes da República de Weimar – responsáveis pelos interesses trabalhistas como sindicatos e instituições recreativas, o Estado numa atitude totalitária, e visando anular as lutas de classe, criou em maio de 1933 a Frente Alemã para o Trabalho - Deutsche Arbeitsfront (DAF). Presidida por Robert Ley, a DAF tornou-se no principal mediador entre entidades patronais e empregados, acabando por fundar em novembro do mesmo ano a Kraft durch Freude (KdF), uma organização recreativa (...)

Federação Nacional para a Alegria no Trabalho (F.N.A.T.).
Costa da Caparica, aspecto do almoço dos trabalhadores dos Sindicatos Nacionais, 1937.
Arquivo Nacional Torre do Tombo

Numa ação propagandística e pretendendo regulamentar os tempos livres dos trabalhadores, a Obra sindical Alégria y Descanso facultou aos seus associados átimos de educação cultural e artística, viagens e excursões, formação militante e atividades desportivas, sofrendo influência direta das bases práticas e teóricas das suas congéneres – italiana, alemã e portuguesa. Importa mencionar que, antes da sua consolidação em 1940, a direção da Obra sindical se reuniu várias vezes com os quadros administrativos da OND, da FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho), da KdF, entre 1936 e 1938, para discutir e apreender os seus moldes teóricos e formas de atuação (...)

Costa da Caparica, encontro Jacista (Juventude Agrária Cristã), 1938.
Delcampe Bosspostcard

Similarmente ao modus operandi dos restantes regimes fascistas Europeus, o Estado Novo concebeu, a partir de 1933 várias organizações corporativas, paramilitares, opressivas, propagandísticas e recreativas que o coadjuvaram no projeto de centralização de poder e no controlo integral dos vários domínios da vida pública e privada, tendo em vista a construção de um novo «Homem Português» (...)

Costa da Caparica, Jardim da F.N.A.T., ed. Passaporte n° 46.
Delcampe

Instituído no ano de 1933, o Secretariado De Propaganda Nacional (SPN), sob a orientação de António Ferro, tornou-se responsável pela conceção e promoção de uma política cultural popular que, enquanto conduzia os portugueses para os princípios sociais e políticas do Estado, o dotava de uma irrepreensível imagem tradicional de Bom-Gosto. (1)

Bandeira da Federação Nacional para a Alegria no Trabalho (F.N.A.T.).
BestNet Leilões

"A organização corporativa da Nação não deve limitar os seus objetivos ao campo das preocupações de ordem meramente material. Por muito graves e instantes que sejam as solicitações de alguns problemas económicos do momento presente, há que alargar os horizontes do nosso esforço.

Sem um intenso movimento de espiritualização da vida e sem um forte apelo aos valores morais, a obra do Estado Novo poderia renovar materialmente a face da terra portuguesa, mas não seria conseguida a sua vitória mais alta: a transformação profunda da nossa mentalidade, o revigoramento de todos os laços e de todos os sentimentos que mantém a comunidade nacional e a perpetuam através dos tempos. (...)

É preciso estimular o ambiente de puro idealismo em que tais instituições se criaram, manter acesa a chama do entusiasmo e da confiança que o pensamento social do Estado Novo Corporativo fez reacender na consciência das massas trabalhadoras"  (2)


Em 1939, e mesmo antes de se converter em Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI) no ano de 1944, o SPN acumulou novas funções e passou a ter sob a sua alçada a incumbência de estimular e regulamentar a prática turística (...)

Costa da Caparica, fotografia de Pais Ramos,
Panorama revista portuguesa de arte e turismo n° 10, agosto de 1942.
Hemeretoca Digital


Considerando a classe operária como um grupo sensível à criação de associativismos e movimentos de contestação social, o Estado Novo, arvorando a missão de pedagogo nacional, promoveu, adstrito à ação da FNAT, a criação de várias colónias de férias dedicadas aos “trabalhadores inscritos nos sindicatos Nacionais e nas Casas do Povo e as suas famílias”, entre 1935 e 1974.

Costa da Caparica, F.N.A.T. Um lugar ao sol. Pavilhão central, ed. desc. (Neogravura).
Delcampe


Dependendo das débeis condições da Fundação e dos apoios estatais e, inicialmente, restrito à obra desenvolvida na Mata da Caparica, o projeto das colónias de férias nacionais para trabalhadores avançou, durante vinte anos, a título experimental, não existindo condições para identificar, no período em questão, num programa base a si destinado.

Costa da Caparica, Entrada principal para a FNAT, ed. Passaporte, 88, década de 1960.
Delcampe

De facto, apesar de existir empenho por parte do regime e da organização “em melhorar as condições de vida do trabalhador” consagrando “especial atenção à necessidade de assegurar a sua recuperação física”, as fragilidades que a FNAT enfrentou, ao longo dos seus primeiros anos de instituição, não permitiram gerar o equilíbrio necessário para a ampliação desejada da obra «Um Lugar ao Sol».

Apartada da “«cidade de férias» de Cassiano Branco, que se adivinhava veloz e vibrante ao ritmo d’a idade do Jazz-band”, a primeira colónia de férias nacional estruturou-se como uma verdadeira urbanização, de vertente familiar e educativa, adaptando-se ao espaço envolvente em composições de «roupagem» moderna.

Costa da Caparica, F.N.A.T. Um lugar ao sol. Vista aérea, ed. Neogravura.
Delcampe Bosspostcard

“A partir de 1950, atingiu-se o equilíbrio num nível de receitas e de despesas de ordem dos 2,600 contos”, que, conquanto longe de ser o desejável ou “significar desafogo”, permitiu, associado ao terceiro estatuto da Fundação, expandir o projeto das colónias de férias.

Não detendo mais a gestão das colónias balneares infantis e tendo como base a obra de «Um Lugar ao Sol», a FNAT desenvolveu um plano de readaptação dos seus edifícios, anteriormente destinados às crianças, para o público adulto.

Costa da Caparica, F.N.A.T. Um lugar ao sol. Trecho duma avenida, ed. Neogravura.
Delcampe Bossposcard

Enfatizando “as feições de uma obra que Salazar desejava simples, despretensiosa, agradável, higiénica e confortável”, o plano de readaptações, contando com “uma forte carga pedagógica na elevação cultural moral e cívica dos trabalhadores”, dotou os seus edifícios, repetidamente descritos na documentação como «pitorescos» e «com pendor tradicional», de dormitórios destinados a solteiros, quartos familiares, salas de jantar, salas de convívio, bar, casas-de-banho, capela, garagem e áreas funcionais que albergaram cozinhas, despensas e compartimentos destinados a funcionários (...) (3)


(1) Joana Castanheira Gabriel, Arquitetura social da FNAT (1938-1974)..., 2019
(2) Decreto-lei n.º 25 495, 13 de junho de 1935. Diário do Governo n.º 134 - I Série. Presidência do Conselho. Lisboa, p. 857.
(3) Joana Castanheira Gabriel, idem

Artigos relacionados:
Um lugar ao sol
Sobre o projecto de Cassiano Branco
Indevidamente chamada de Caparica
Mata do Estado e Quinta de Santo António

Leitura relacionada:
Panorama revista portuguesa de arte e turismo n° 10, agosto de 1942

sábado, 29 de outubro de 2022

Tricana Ofélia

As caparicanas 
Que Deus admira 
Parecem tricanas, 
Nas voltas do Vira. 
De caras trigueiras 
Cabelos no ar. 
Somos as primeiras 
No Vira do Mar. (1)

Aos meus bons tios e priminha, como recoração da Costa de Caparica, oferece a sobrinha e amiga
Ofélia Ribeiro, 1 de dezembro de 1937
Delcampe Bosspostcard


(1) Vira do mar (refrão), Letra de Antero Espírito Santo Musica de José Duarte Pedroso
cf. Mário Silva Neves, Tu, Costa Minha!... o passado e o presente, 2002

Artigo relacionado:
Vira do mar

sábado, 22 de outubro de 2022

A rosa-dos-ventos

Após 1952, a antiga ermida desapareceria por completo, edificando-se em seu lugar uma outra capela, dedicada a Santo António e ladeada por diversos nichos, onde Elpídio Ferreira desenvolveria uma decoração com o recurso a embrechados, que prolongaria na fachada da estufa que então envolvia a capela, de recorte inspirado na traça da frontaria da igreja conventual, bem como nos miradouros construídos junto ao extremo da cerca mais próximo das arribas.


Caparica, Convento dos Capuchos, julho de 1957.
Delcampe, Bosspostcard

Os espaços seriam cuidadosamente ajardinados, jogando com a presença recorrente da água e de recantos decorados com os referidos embrechados ou com painéis em azulejo, alguns provenientes de outros locais do concelho, ou ainda com trabalhos em mosaico, como o que encimava um dos terraços do jardim, representando uma rosa-dos-ventos, evocação tão ao gosto da época, particularmente propícia ã exaltação da gesta dos Descobrimentos. (1)


(1) O Convento dos Capuchos... Catálogo da Exposição, Camara Municipal de Almada, 2014

Artigos relacionados:
Lourenço Pires de Távora
Quinta Távora e Mosteiro da deceda
Cronologia do Convento dos Capuchos (Caparica)
A Costa romântica de Bulhão Pato
A Costa no século XIX
Restos do Convento e egreja dos Capuchos em Caparica
O guardião dos Capuchos
etc.

Mais informação:
Convento dos Capuchos: Mutilação ou Restauro?
O uso da tecnologia BIM em património histórico, um caso de estudo: o Convento dos Capuchos da Caparica
J. Luís da Cruz, O convento dos Capuchos da Costa de Caparica, 1954, Composto e impresso na Gráfica do Sul. Cacilhas

domingo, 9 de outubro de 2022

Árpád Szenes: Maria Helena na praia

Retratista virtuoso, Árpád capta sobretudo a essência dos traços de Maria Helena. Os primeiros retratos datam dos anos 30, início da vida a dois e, sem se perder em detalhes,

Caparica I (colecção Jorge de Brito), Arpad Szenes, sem data.
Vieira da Silva - Arpad Szenes nas colecções portuguesas, Casa de Serralves, Porto, 1989

Árpád realça, de forma inequívoca, os contornos que definem a pintora.

Caparica, Arpad Szenes, 1934.
Museu Fundação Árpád Szenes - Vieira da Silva


Não é óbvia nestes retratos a cegueira da paixão: Maria Helena não é perpetuada como uma beldade, chega a ser, em muitos casos, quase caricaturada e, no entanto, há uma dedicação quase obsessiva na quantidade de esquissos realizada. (1)

Caparica, Arpad Szenes, 1934.
Museu Fundação Árpád Szenes - Vieira da Silva

Árpád Szenes e Maria Helena encontram-se pela primeira vez na academia parisiense Grande Chaumière, em 1928. Casam em 1930, sem considerarem outra hipótese senão a de uma vida a dois, para sempre. Uma espécie de conto de fadas modernista, traçado a lápis, caneta ou pincel.

Caparica, Arpad Szenes, 1934.
Museu Fundação Árpád Szenes - Vieira da Silva

Companheiros de vida e de ofício, enredados numa pesquisa paralela e solitária, inspiram-se, partilham e discutem, numa sinergia contínua.

Baigneuse à Caparica, Arpad Szenes, 1934.
Museu Fundação Árpád Szenes - Vieira da Silva


Vieira foi o modelo dileto, invocado nos primeiros anos pela paixão e pelo desejo e, mais tarde, pelo conforto de um amor sempre disponível.

Caparica V (colecção particular), Arpad Szenes, 1934 1936.
Museu Arpad Szenes - Vieira da Silva: elementos para um projecto de uma visita virtual

Quieta sem nunca se tornar ausente, Vieira da Silva é desenhada e pintada pelo marido inúmeras vezes, numa variedade de registos que oscilam entre o repouso e a atividade artística (...) (2)

Caparica, Arpad Szenes, 1935-1936.
Museu Fundação Árpád Szenes - Vieira da Silva


(1) Sandra Santos, "Le couple" de Árpád Szenes e de Maria Helena Vieira da Silva
(1) Sandra Santos, idem

Informação relacionada:
Fundação Árpád Szenes - Vieira da Silva
Árpád Szenes (Fundação Calouste Gulbenkian)
Jeanne Bucher Jaeger: Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992)
Jeanne Bucher Jaeger: Árpád Szenes (1897-1985)
Museu Arpad Szenes - Vieira da Silva: elementos para um projecto de uma visita virtual
Véronique Jaeger: The Arcana of the Heart
Vieira da Silva - Arpad Szenes nas colecções portuguesas, Casa de Serralves, Porto, 1989,

Media:
Visita guiada: Casa-atelier de Vieira da Silva e de Arpad Szenes

Ma femme chamada Bicho (filme documental de 1978 de José Alvaro de Morais sobre o casal de pintores Maria Helena Vieira da Silva e Árpád Szenes)


quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Sarah Affonso por Mário Domingues e com Fernanda de Castro

Sarah Affonso, embora ao primeiro golpe de vista nos recorde imediatamente a pintura mole de Columbano, possui, entretanto, qualidades suas que deve lutar por conservar ou desenvolver. Os retratos que apresenta são tecnicamente bem feitos — academicamente falando. Possuem, entretanto, um quê de impalpável que só consegue fixar nas obras de arte quem tem alma para sentir. Desses retratos ressalta ainda uma qualidade que não se assimila: o carácter. Há um certo à-vontade que só obtêm aqueles que têm um pensamento superior a nortear-lhes o pincel (...)

Autorretrato (detalhe), Sarah Affonso, 1927.
MNAC

D. Sarah Affonso devia — que nos seja permitido dar conselhos — fazer as malas, meter-se no Sud-Express e desembarcar em Paris (Sarah Affonso esteve em Paris, em 1923-1924 e em 1928-1929). Nessa cidade entregar-se-ia ao estudo dos pintores modernos e antigos, clássicos e bizarros. Veria tudo com olhos de ver, examinaria sem parti-pris, abriria a sua alma às mil almas de artista que, por intermédio da arte, pudesse conhecer (...) (1) 

Mário Domingues, revista Ilustração 16 de fevereiro de 1928 (detalhe).
Biblioteca Nacional de Portugal


Em 1924, Sarah parte para Paris o que não a impede de, no ano seguinte, em 1925, desenhar a capa e ilustrar a primeira edição de Mariazinha em África de Fernanda de Castro. A obra viria a ser reeditada 10 vezes com ilustrações de diferentes autoras: Sarah Afonso, Ofélia Marques e Inês Guerreiro que foi a única discípula de Sarah.

Em 1927, nasce o segundo filho de Maria Fernanda, Fernando Manuel; para a festa do baptizado realizado na Igreja dos Anjos em Lisboa, é convidado apenas, além da família mais chegada, um grupo restrito de amigos (Sarah Affonso, António e Narcisa de Meneses, os primos Pedro e Maria Helena Ferro da Cunha, Raul Feio, e outros).

Em 1928, Sarah imortaliza Fernanda de Castro com seu filho António, num óleo sobre madeira cuja reprodução viria a ilustrar a capa de Ao Fim da Memória I 1906-1939, de Fernanda de Castro, em 1988. Ao longo dos anos, Sarah vai fazendo desenhos para várias camisolas dos pequenos António e Fernando que, alternadamente com Fernanda de Castro, vai bordando.

Fernanda de Castro e Antoninho Gabriel por Sarah Affonso, 1928.
MNAC/Flickr

Em 1929, Janeiro, depois de uma estadia de cinco meses em Paris, Sarah recebe a notícia de que a sua mãe está muito doente e escreve a Maria Fernanda aconselhando-se sobre se deveria voltar a Portugal ou ficar em Paris. Pede-lhe que visite o médico da mãe para melhor poder entender o seu real quadro clínico pois

"Se deixo Paris agora todo o esforço será perdido. Sem receber uma resposta, não tenho coragem de tomar uma resolução. Se for só uma crise, a minha pobre mãe que tenha paciência mais uma vez, tenho lá duas irmãs que são já umas mulheres e podem tratá-la. Se for grave, irei então cheia de resignação… Peça conselho ao António."

Lamentavelmente, o estado de saúde da mãe de Sarah agrava-se o que a obriga a voltar para Portugal. Depois da morte da mãe e devido à ausência do pai, Sarah vê-se responsável pelos irmãos o que a impede de voltar para Paris.

Ilustra e desenha a capa para As Aventuras de Mariazinha, de Fernanda de Castro obra que viria a ser reeditada em 1935 com o título de As Aventuras de Mariazinha, Vicente e Comp.ia (romance para meninos) e, em 1959, com capa e desenhos de Viviane e o título de Novas Aventuras de Mariazinha.

Em Julho de 1930, da Costa da Caparica, volta a escrever à amiga:

"Está aqui muita gente, relações antigas e outras recentes. Eu trouxe grande conhecimento de livros, materiais de pintura. Para encher o tempo faço bolos, experimento receitas de petiscos e o tempo há-de passar… Apesar de tudo sempre é melhor estar aqui que em Lisboa. E você como vai com as suas costuras? Grande sucesso na exposição? Lembra-se de que me prometeu uma visita?"

A Praia do Sol, Costa Caparica, ed. Acção Bíblica Casa da Bíblia, c. 1930.
Casa Comum


"Venha com os seus pequenos. Mas venham de manhã, almoçam connosco. O vapor é em Belém. Na Trafaria tem camioneta para aqui. A nossa casa é à entrada da povoação. Traga costura. Se quiser traga um vestido dos de Grés que eu bordo-o e depois levo-lho."

O alar das redes por Sarah Affonso.
Jornal Praia do Sol, 15 de Março de 1950

Ainda nesse Verão, a 4 de Setembro, escreve de novo, num grito de desespero, o espírito quase quebrado:

"Há dias em que nas 24 horas, estou 15 na cama! Pouco a pouco vou perdendo as ilusões que por vezes me levavam a fazer perguntas, há falta de melhor, estou sem grande gosto pelo trabalho e vai-me faltando a força para reagir. Sinto que isto já deu o que tinha a dar, e a Sarah Afonso ficará na história (?) como uma risonha esperança (...)" (2)


(1) Mario Domingues, Os trabalhos dos alunos da Academia de Belas Artes, Revista Portugueza, 1923 cit. em Emília Ferreira, Forte, para resistir, Sarah Affonso, um percurso ímpar no modernismo português, 1999
(2) Sarah Affonso e Fernanda de Castro, Uma história de duas vidas por Mafalda Ferro

Artigos relacionados:
Sarah Affonso, postais da Costa a Manuel Mendes (1930-1931)
Sarah Affonso
Mário Domingues (1899-1977), escritor
Ao fim da memória
A casa cor-de-rosa

RTP Arquivos:
Sarah Afonso: Biografia do Centenário 1899-1999

Mais informação:
O primitivismo na pintura portuguesa (1905-1940)
Programa de exposição de Sarah Afonso no Salão Bobonne, em Lisboa. Nota introdutória de António Ferro, 18 de Janeiro de 1928
Arte e Género, Mulheres e Criação Artística, Faculdade de Belas-Artes
Emília Ferreira, Forte, para resistir, Sarah Affonso, um percurso ímpar no modernismo português, 1999
Maria João Gomes Pedro, Sarah Affonso, vida e obra, 2004 (3 vols.)
Sarah Affonso (Google Arts & Culture)
Sarah Affonso (MNAC)
Sarah Affonso (Centro de Arte Moderna Gulbenkian)
Sarah Affonso (Fundação Mário Soares e Maria Barroso/Casa Comum)
Almanak Silva: Mariazinha africanista



Sobre o percurso de Sarah Affonso, ver (cf. A. Santos Silva, Ofélia Marques (1902-1952)...);
CONDE, Idalina, «Sarah Affonso, mulher (de) artista», in Análise Social, vol. XXX (131-132. 2º-3º), p. 459-487;
CONDE, Idalina, «Reencontro com Sarah Affonso», in LEANDRO, Sandra, SILVA, Raquel Henriques da (coord.), Mulheres Pintoras em Portugal: de Josefa d’Óbidos a Paula Rego, p.129-161;
NEGREIROS, José de Almada, «Sarah Affonso», in CASTRO, Zília Osório de, ESTEVES, João Gomes (dir.), Dicionário no Feminino (séculos XIX-XX), p. 850-851;
PEDRO, Maria João Gomes, Sarah Affonso – vida e obra, vol. I. 

sábado, 17 de setembro de 2022

Retratos som Bá e Manuel Mendes, Ofélia e Bernardo Marques

Bernardo Marques (1898-1962)

Bernardo Marques inicia os seus estudos no liceu de Faro, matriculando-se, em 1918, na Faculdade de Letras de Lisboa para cursar Filologia Românica. Aí conhece a sua futura mulher, também artista, Ofélia Marques. A vinda para Lisboa possibilitou-lhe o contacto com a vida boémia da capital, realizando nestes anos estudantis os seus primeiros desenhos. Expõe pela primeira vez em 1920, no III Salão de Humoristas. Em 1921, abandona o curso de Letras, optando em definitivo pela carreira artística. Dedica-se com especial afinco ao desenho, vertente que nunca abandonaria ao longo dos seus 40 anos de carreira, numa opção em parte motivada pela alergia aos materiais da pintura a óleo.

Pedro, romance de Manuel Mendes publicado em 1954 com ilustrações de Bernardo Marques e dedicado à memória de Bento de Jesus Caraça.
(exemplar anotado pelo autor para uma segunda edição)

Casa Comum

Em 1924, casa-se com Ofélia e passam a viver no mesmo prédio no Bairro Alto onde António Ferro e Fernanda de Castro (v. apontamento relacionado: Ao fim da memória) habitavam à época. Esta vizinhança torna-se o ponto de partida para uma longa amizade entre Marques e Ferro. (1)

Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930.
A partir da esquerda: Berta Mendes, Fernando Lopes Graça
(1906-1994), Ofélia Marques (1902-1952), Bernardo Marques (1898-1962), Manuel Mendes (1906-1969)
, Bento de Jesus Caraça, e Cândida Caraça (e os cães Anica e Maigret).
Casa Comum

No caso que estamos a analisar, sendo verdade que Bernardo pertence às especificidades da geração de 20, e à de 30, e à de 40 pelo lado da estética oficial, é também verdade - e mais produtiva - que ele está nelas com uma distância, irónica e bastante atormentada, e que essa distância lhe permitiu autonomizar-se nos anos 50, quando o modernismo se encerrava e eclodiam novas problemáticas plásticas.

Retrato imaginado enquanto criança,
Bernardo Marques.
Ofélia Marques (1902-1952), CAM, Gulbenkian

E, se esta evolução pessoal não lhe deu lugar na cena artística contemporânea, tal aconteceu também por que a época era de inevitáveis e excessivos con­frontos e Bernardo iniciara um percurso de imensa solidão de que a morte voluntária foi o desfecho em 1962. (2)

Ofélia Marques (1902-1952)

(v. artigo dedicado em Eventualmente Lisboa e o Tejo)


(1) Bernardo Marques (Centro de Arte Moderna Gulbenkian)
(2) Bernardo Marques, Homenagens cruzadas, MNAC

Artigos relacionados:
Sarah Affonso, postais da Costa a Manuel Mendes (1930-1931)
Retratos com Bá e Manuel Mendes
Retratos com Guida Lami e Bá e Manuel Mendes, Cândida e Bento Caraça

RTP Arquivos:
Bernardo Marques
Exposição sobre Bernardo Marques (Casa de Serralves))

Mais informação:
Bernardo Marques, pesquisa em Cabral Moncada leilões
Bernardo Marques em MutualArt
Manuel Mendes, Bernardo Marques e o drama da sua obra, revista Eva nº1090, novembro de 1962
Marina Bairrão Ruivo, Bernardo Marques, Os traços de um sentimental, Revista de Cultura, Instituto Cultural de Macau, ano V, 5° vol.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Retratos com Guida Lami e Bá e Manuel Mendes, Cândida e Bento Caraça

Bento de Jesus Caraça (1901-1948)

Partiu para Lisboa com 13 anos para estudar no muito afamado Liceu Pedro Nunes, onde concluiu com distinção o ensino secundário em 1918. Neste mesmo ano matriculou-se no Instituto Superior de Comércio, hoje Instituto Superior de Economia e Gestão, e um ano depois é nomeado 2º assistente pelo professor Mira Fernandes. A sua carreira académica tornava-se notória. Em 1924, é assistente e em 1927 professor extraordinário.

Costa da Caparica, 1934.
A partir da esquerda: Adriana Lami Costa, Guida Lami, Bento de Jesus Caraça e Maria Alice Lami.
Casa Comum


Chegou a professor catedrático em 1929. A seu cargo ficou a cadeira de “Matemáticas Superiores” – Álgebra Superior, Princípios da Análise Infinitesimal e Geometria Analítica. A seu cargo ficou a cadeira de “Matemáticas Superiores” – Álgebra Superior, Princípios da Análise Infinitesimal e Geometria Analítica...

A sua actividade não se restringiu à prática lectiva. Foi membro do Núcleo de Matemática, Física e Química, criou o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas à Economia, fundou a Gazeta da Matemática e foi presidente da Direcção da Sociedade Portuguesa de Matemática...

Costa da Caparica (detalhe), Bento de Jesus Caraça,  1935.
Casa Comum

Finalmente, em 1941 publicou a sua obra mais emblemática “Os Conceitos Fundamentais da Matemática”, cuja versão integral foi publicada apenas em 1951.

O seu mérito foi reconhecido internacionalmente, uma vez que foi o delegado representante da Sociedade Portuguesa de Matemática nos Congressos da Associação Luso-Espanhola para o Progresso das Ciências em 1942, 1944 e 1946.

A Cultura foi uma das outras grandes paixões de Bento de Jesus Caraça, a cultura que deveria ser adquirida por todos para que se conquistasse a liberdade. Na Universidade Popular, de que também fez parte profere a famosíssima conferência “A Cultura Integral do Indivíduo – Problema Central do Nosso tempo”. Com o mesmo objectivo em mente colaborou nas revistas Seara Nova, Técnica, Vértice (v. Revistas de Ideias e Cultura) e em outros tantos jornais como O Diabo, Liberdade e o Jornal Globo, fundado por si, mas infelizmente eliminado pela censura.

Olhando para a cultura como um “despertar das almas”, fundou a Biblioteca Cosmos (v. Obras editadas na Biblioteca Cosmos), que editou centenas de livros de divulgação científica e trabalhou na reanimação da Universidade Popular, que entretanto se tinha visto enfraquecida pela acção da sempre atenta censura, tornando-se mesmo Presidente do Conselho Administrativo.

Defensor da liberdade que definitivamente não existia, Bento de Jesus Caraça foi também um interessado pela “questão feminina” e sempre incentivou a intervenção das mulheres na sociedade. Quando em 1943, onze raparigas se matricularam no ISCEF e uma vez que o sistema de coeducação era proibido pelo regime, apoiou a criação de um núcleo cultural por elas formado... (1)

Uma ave que os ares esclarece
Sobre nossas cabeças aparece.
Costa da Caparica, Guida Lami, legenda de Bento de Jesus Caraça, 1933.
Casa Comum

A ligação de Bento Caraça ao PCP, não terá sido uniforme através dos anos nem acrítica. A reacção ironicamente amarga ao pacto de não agressão germânico soviético, celebrado entre Hitler e Estaline, surge numa carta a Guida Lamy, uma das suas mais queridas amigas, discípula e colaboradora, nos estudos matemáticos e, nomeadamente no apoio aos prisioneiros dos campos. No início dos anos 40, encontra-se de tal modo desiludido, nomeadamente dada a situação no PCP, que pensa seriamente emigrar como se evidencia na correspondência com Rodrigues Miguéis.

O trabalho na Cosmos e a emergência de novas perspectivas de unidade na luta contra o regime, reforçada com a evoluir da guerra mundial, reanimam-lhe a esperança e retomará a ligação ao PCP. Surge como um dos mais destacados fundadores do MUNAF, Movimento de Unidade Nacional Antifascista, em 1942, e do MUD, Movimento de Unidade Democrática, em 1945, de cuja comissão central será vice-presidente.

A adesão popular ao MUD excede todas as expectativas: até 24 de outubro de 1945, recolhem-se 50.000 assinaturas de apoio, só na cidade de Lisboa. Perante tal movimentação, o governo salazarista suspende toda a actividade do MUD, acusado de constituir um “elemento de subversão social”, um “movimento passional” que pretende derrubar o governo e restaurar o modelo político da primeira República.

Bento Caraça é atingido por um processo disciplinar a 10 de setembro de 1946, instaurado pelo Ministério da Educação Nacional sob a acusação de antipatriotismo do manifesto “O MUD perante a admissão de Portugal na ONU”, subscrito por muitos democratas e do qual Bento Caraça, Vice-Presidente da Comissão Central do MUD, fora co-autor com Mário Azevedo Gomes, Presidente da mesma Comissão.

Em outubro de 1946, Bento Caraça é demitido compulsivamente da função de Professor Catedrático, afastado de uma actividade docente e pedagógica brilhante.

Por este envolvimento, no qual produz importantes documentos de análise política, alguns ainda de espantosa actualidade, sofrerá diversos interrogatórios e detenções ainda que breves dado a agravamento progressivo do seu estado de saúde. Em 1946, a 3 de abril, é sujeito a interrogatório na Pide; a 13 de Outubro, interroga-o e coloca-o incomunicável durante cinco dias numa esquadra; a 13 de Dezembro, é preso de novo, desta vez no Aljube donde sai sob fiança.

Em 1948, sofre prisão domiciliária em virtude “de correr grave risco de saúde e de vida se for obrigado a sair de casa e submetido a regime prisional“ como atesta em atestado médico, o professor Francisco Pulido Valente, estado comprovado pelo médico da PIDE, Mira da Silva que se desloca a sua casa; a 23 de Fevereiro é interrogado pela PIDE no seu domicílio; a 19 de Março, a PIDE convoca-o para a a sua sede e notifica-lhe a ilegalização do MUD.

A Leitura, 1955, Abel Manta (1888-1982)
(grupo do consultório do professor Francisco Pulido Valente, representados (cf. Estrolabio): da esquerda para direita, sentados, Aquilino Ribeiro, Ramada Curto, Carlos Olavo, Pulido Valente, Alberto Caidera, em pé, Ribeiro Santos, Mário Alenquer, Lopes Graça, Manuel Mendes, Sebastião Costa, Câmara Reis e Abel Manta).
Museu de Lisboa

Bento Caraça é já então casado com a segunda mulher, Cândida Gaspar, a aluna que o levou a abandonar a longa viuvez do breve casamento com Maria Octávia, que durara menos de um ano. Com Cândida, que lhe devolve a paixão e a ternura, será também breve a vida. Ele sabe-o. A doença cardíaca, já de longa data, agravava-se. Por isso o olhar de profunda ternura com que segue os primeiros passos vacilantes de João, o seu filho, é um olhar pleno de nostalgia. Nostalgia do futuro. E nas últimas fotografias antes da morte, a 25 de julho de 1948, Bento Caraça devolve-nos o sorriso magoado dos que sabem que vão morrer.

Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930.
A partir de cima da esquerda:
Bento de Jesus Caraça, Sílvia Manta, Manuel Mendes, Cândida Caraça e Berta Mendes.
Casa Comum

O processo disciplinar, movido pelo governo de Salazar, que o afasta do ensino universitário, traz dificuldades económicas à família. Cândida, ela própria também perseguida, enfrenta, corajosamente, a situação. Licenciada em economia, lecciona, corre entre as aulas e a casa onde vive com Bento, o filho e o sobrinho, João, adolescente vindo do Alentejo por iniciativa do tio. Bento Caraça passa a dar lições em sua casa, como meio de subsistência.

Várias as provas de solidariedade prestadas por amigos conhecidos e desconhecidos. Em Novembro de 1946, um grupo de democratas de Lourenço Marques, perante a demissão de Caraça, cotiza-se e presta-se a enviar-lhe mensalmente a importância do seu salário como professor universitário, sublinhando que não é uma ajuda pessoal mas antes o símbolo da “sua solidariedade para com os companheiros da Metrópole equiparando-a ao ganha-pão que V. Exª conscientemente arriscara e perdera ou proporcionando-lhe a oportunidade de empregar o dinheiro na luta antifascista a bem de todos”.

A 24 de janeiro de 1947, Caraça responde grato pelo apoio moral e material, sendo que opta por “empregar o dinheiro na luta antifascista”. Em outubro de 1947, agradece a José Maria Coelho “a extrema gentileza que quis ter para comigo, da principesca oferta de um frigorífico”. Os amigos procuram mimá-lo. Ildefonso Nóvoa, que fora seu aluno no Instituto, carrega uma grafonola para que Bento ouça a música clássica que o levava, apaixonadamente, aos concertos.

Em sua casa reúnem-se democratas, debate-se a vivência política, planeiam-se estratégias da oposição. Estuda ainda. Escreve. Incessantemente. Adoece mais e mais. Amigos de longa data, vêm de longe, para o que sabem ser eles e ele – a despedida.

Bento de Jesus Caraça,
r
etrato imaginado enquanto criança

Ofélia Marques (1902-1952), CAM, Gulbenkian


Porque este homem de tão intenso comprometimento político cultivou sempre o encontro com os outros. É, uma relação umbilical entre cultura e política que orienta otrajecto pessoal de Bento de Jesus Caraça e do seu grupo de amigos, onde se encontram os mais notáveis intelectuais e lutadores do seu tempo. Entre eles, o médico e professor Luís Ernâni Dias Amado, companheiro desde o liceu.

Também colega de liceu, amigo profundo, Carlos Botelho que lhe (nos) devolverá os olhares mais belos da pintura portuguesa sobre a cidade e o rio, esse corpo amante de Lisboa, Rodrigues Miguéis, Abel Salazar, Câmara Reys, Ferreira de Macedo. E ainda António Lobo Vilela, companheiro desde os bancos da escola primária.

Surgem depois Manuel Mendes, um dos seus mais íntimos confidentes e Berta Mendes que serão os padrinhos de João Gaspar Caraça, filho do segundo casamento.

Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930.
A partir da esquerda: Berta Mendes, Fernando Lopes Graça
(1906-1994), Ofélia Marques (1902-1952), Bernardo Marques (1898-1962), Manuel Mendes (1906-1969)
, Bento de Jesus Caraça, e Cândida Caraça (e os cães Anica e Maigret).
Casa Comum

Artistas como Avelino Cunhal, Huertas Lobo que lhe traça o perfil esvanescente, Abel Manta que esboçara o seu retrato póstumo, Mário Dionísio, Francisco Keil do Amaral, Maria Keil, Lopes Graça, Alice Manta, João Abel Manta, que lhe desenhará o perfil, Guida Lamy fazem parte do seu grupo de amigos. (2)


(1) Associação Bento de Jesus Caraça
(2) Bento de Jesus Caraça: Cultura e emancipação, um problema ainda do nosso tempo

Artigos relacionados:
Sarah Affonso, postais da Costa a Manuel Mendes (1930-1931)
Retratos com Bá e Manuel Mendes

Mais informação:
Escola Profissional Bento de Jesus Caraça (Porto)
Manuel Mendes (Fundação Mário Soares e Maria Barroso/Casa Comum)

Século XX português: Os Caminhos da Democracia (Fundação Mário Soares e Maria Barroso)
Obras editadas na Biblioteca Cosmos
Bento Jesus Caraça - Testemunho de Alvaro Cunhal (PCP)
Bento de Jesus Caraça: Cultura e emancipação, um problema ainda do nosso tempo
Revistas de Ideias e Cultura