Partiu para Lisboa com 13 anos para estudar no muito afamado Liceu Pedro Nunes, onde concluiu com distinção o ensino secundário em 1918. Neste mesmo ano matriculou-se no Instituto Superior de Comércio, hoje Instituto Superior de Economia e Gestão, e um ano depois é nomeado 2º assistente pelo professor Mira Fernandes. A sua carreira académica tornava-se notória. Em 1924, é assistente e em 1927 professor extraordinário.
Costa da Caparica, 1934. A partir da esquerda: Adriana Lami Costa, Guida Lami, Bento de Jesus Caraça e Maria Alice Lami. Casa Comum |
Chegou a professor catedrático em 1929. A seu cargo ficou a cadeira de “Matemáticas Superiores” – Álgebra Superior, Princípios da Análise Infinitesimal e Geometria Analítica. A seu cargo ficou a cadeira de “Matemáticas Superiores” – Álgebra Superior, Princípios da Análise Infinitesimal e Geometria Analítica...
A sua actividade não se restringiu à prática lectiva. Foi membro do Núcleo de Matemática, Física e Química, criou o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas à Economia, fundou a Gazeta da Matemática e foi presidente da Direcção da Sociedade Portuguesa de Matemática...
Costa da Caparica (detalhe), Bento de Jesus Caraça, 1935. Casa Comum |
Finalmente, em 1941 publicou a sua obra mais emblemática “Os Conceitos Fundamentais da Matemática”, cuja versão integral foi publicada apenas em 1951.
O seu mérito foi reconhecido internacionalmente, uma vez que foi o
delegado representante da Sociedade Portuguesa de Matemática nos
Congressos da Associação Luso-Espanhola para o Progresso das Ciências em
1942, 1944 e 1946.
A Cultura foi uma das outras grandes paixões de Bento de Jesus
Caraça, a cultura que deveria ser adquirida por todos para que se
conquistasse a liberdade. Na Universidade Popular, de que também fez
parte profere a famosíssima conferência “A Cultura Integral do Indivíduo
– Problema Central do Nosso tempo”. Com o mesmo objectivo em mente
colaborou nas revistas Seara Nova, Técnica, Vértice (v. Revistas de Ideias e Cultura) e em outros tantos
jornais como O Diabo, Liberdade e o Jornal Globo, fundado por si, mas
infelizmente eliminado pela censura.
Olhando para a cultura como um “despertar das almas”, fundou a Biblioteca Cosmos (v. Obras editadas na Biblioteca Cosmos),
que editou centenas de livros de divulgação científica e trabalhou na
reanimação da Universidade Popular, que entretanto se tinha visto
enfraquecida pela acção da sempre atenta censura, tornando-se mesmo
Presidente do Conselho Administrativo.
Defensor da liberdade que definitivamente não existia, Bento de Jesus
Caraça foi também um interessado pela “questão feminina” e sempre
incentivou a intervenção das mulheres na sociedade. Quando em 1943, onze
raparigas se matricularam no ISCEF e uma vez que o sistema de
coeducação era proibido pelo regime, apoiou a criação de um núcleo
cultural por elas formado... (1)
Uma ave que os ares esclarece Sobre nossas cabeças aparece. Costa da Caparica, Guida Lami, legenda de Bento de Jesus Caraça, 1933. Casa Comum |
A ligação de Bento Caraça ao PCP, não terá sido uniforme através dos anos nem acrítica. A reacção ironicamente amarga ao pacto de não agressão germânico soviético, celebrado entre Hitler e Estaline, surge numa carta a Guida Lamy, uma das suas mais queridas amigas, discípula e colaboradora, nos estudos matemáticos e, nomeadamente no apoio aos prisioneiros dos campos. No início dos anos 40, encontra-se de tal modo desiludido, nomeadamente dada a situação no PCP, que pensa seriamente emigrar como se evidencia na correspondência com Rodrigues Miguéis.
O trabalho na Cosmos e a emergência de novas perspectivas de unidade na luta contra o regime, reforçada com a evoluir da guerra mundial, reanimam-lhe a esperança e retomará a ligação ao PCP. Surge como um dos mais destacados fundadores do MUNAF, Movimento de Unidade Nacional Antifascista, em 1942, e do MUD, Movimento de Unidade Democrática, em 1945, de cuja comissão central será vice-presidente.
A adesão popular ao MUD excede todas as expectativas: até 24 de outubro de 1945, recolhem-se 50.000 assinaturas de apoio, só na cidade de Lisboa. Perante tal movimentação, o governo salazarista suspende toda a actividade do MUD, acusado de constituir um “elemento de subversão social”, um “movimento passional” que pretende derrubar o governo e restaurar o modelo político da primeira República.
Bento Caraça é atingido por um processo disciplinar a 10 de setembro de 1946, instaurado pelo Ministério da Educação Nacional sob a acusação de antipatriotismo do manifesto “O MUD perante a admissão de Portugal na ONU”, subscrito por muitos democratas e do qual Bento Caraça, Vice-Presidente da Comissão Central do MUD, fora co-autor com Mário Azevedo Gomes, Presidente da mesma Comissão.
Em outubro de 1946, Bento Caraça é demitido compulsivamente da função de Professor Catedrático, afastado de uma actividade docente e pedagógica brilhante.
Por este envolvimento, no qual produz importantes documentos de análise política, alguns ainda de espantosa actualidade, sofrerá diversos interrogatórios e detenções ainda que breves dado a agravamento progressivo do seu estado de saúde. Em 1946, a 3 de abril, é sujeito a interrogatório na Pide; a 13 de Outubro, interroga-o e coloca-o incomunicável durante cinco dias numa esquadra; a 13 de Dezembro, é preso de novo, desta vez no Aljube donde sai sob fiança.
Em 1948, sofre prisão domiciliária em virtude “de correr grave risco de saúde e de vida se for obrigado a sair de casa e submetido a regime prisional“ como atesta em atestado médico, o professor Francisco Pulido Valente, estado comprovado pelo médico da PIDE, Mira da Silva que se desloca a sua casa; a 23 de Fevereiro é interrogado pela PIDE no seu domicílio; a 19 de Março, a PIDE convoca-o para a a sua sede e notifica-lhe a ilegalização do MUD.
A Leitura, 1955, Abel Manta (1888-1982) (grupo do consultório do professor Francisco Pulido Valente, representados (cf. Estrolabio): da esquerda para direita, sentados, Aquilino Ribeiro, Ramada Curto, Carlos Olavo, Pulido Valente, Alberto Caidera, em pé, Ribeiro Santos, Mário Alenquer, Lopes Graça, Manuel Mendes, Sebastião Costa, Câmara Reis e Abel Manta). Museu de Lisboa |
Bento Caraça é já então casado com a segunda mulher, Cândida Gaspar, a aluna que o levou a abandonar a longa viuvez do breve casamento com Maria Octávia, que durara menos de um ano. Com Cândida, que lhe devolve a paixão e a ternura, será também breve a vida. Ele sabe-o. A doença cardíaca, já de longa data, agravava-se. Por isso o olhar de profunda ternura com que segue os primeiros passos vacilantes de João, o seu filho, é um olhar pleno de nostalgia. Nostalgia do futuro. E nas últimas fotografias antes da morte, a 25 de julho de 1948, Bento Caraça devolve-nos o sorriso magoado dos que sabem que vão morrer.
Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930. A partir de cima da esquerda: Bento de Jesus Caraça, Sílvia Manta, Manuel Mendes, Cândida Caraça e Berta Mendes. Casa Comum |
O processo disciplinar, movido pelo governo de Salazar, que o afasta do ensino universitário, traz dificuldades económicas à família. Cândida, ela própria também perseguida, enfrenta, corajosamente, a situação. Licenciada em economia, lecciona, corre entre as aulas e a casa onde vive com Bento, o filho e o sobrinho, João, adolescente vindo do Alentejo por iniciativa do tio. Bento Caraça passa a dar lições em sua casa, como meio de subsistência.
Várias as provas de solidariedade prestadas por amigos conhecidos e
desconhecidos. Em Novembro de 1946, um grupo de democratas de Lourenço
Marques, perante a demissão de Caraça, cotiza-se e presta-se a
enviar-lhe mensalmente a importância do seu salário como professor
universitário, sublinhando que não é uma ajuda pessoal mas antes o
símbolo da “sua solidariedade para com os companheiros da Metrópole
equiparando-a ao ganha-pão que V. Exª conscientemente arriscara e
perdera ou proporcionando-lhe a oportunidade de empregar o dinheiro na
luta antifascista a bem de todos”.
A 24 de janeiro de
1947, Caraça responde grato pelo apoio moral e material, sendo que opta
por “empregar o dinheiro na luta antifascista”. Em outubro de 1947,
agradece a José Maria Coelho “a extrema gentileza que quis ter para
comigo, da
principesca oferta de um frigorífico”. Os amigos procuram mimá-lo.
Ildefonso Nóvoa, que fora seu aluno no Instituto, carrega uma grafonola
para que Bento ouça a música clássica que o levava, apaixonadamente, aos
concertos.
Em sua casa reúnem-se democratas, debate-se a vivência política,
planeiam-se estratégias da oposição. Estuda ainda. Escreve.
Incessantemente. Adoece mais e mais. Amigos de longa data, vêm de longe,
para o que sabem ser eles e
ele – a despedida.
Bento de Jesus Caraça, retrato imaginado enquanto criança Ofélia Marques (1902-1952), CAM, Gulbenkian |
Porque este homem de tão intenso comprometimento político cultivou sempre o encontro com os outros. É, uma relação umbilical entre cultura e política que orienta otrajecto pessoal de Bento de Jesus Caraça e do seu grupo de amigos, onde se encontram os mais notáveis intelectuais e lutadores do seu tempo. Entre eles, o médico e professor Luís Ernâni Dias Amado, companheiro desde o liceu.
Também colega de liceu, amigo profundo, Carlos Botelho que lhe (nos) devolverá os olhares mais belos da pintura portuguesa sobre a cidade e o rio, esse corpo amante de Lisboa, Rodrigues Miguéis, Abel Salazar, Câmara Reys, Ferreira de Macedo. E ainda António Lobo Vilela, companheiro desde os bancos da escola primária.
Surgem depois Manuel Mendes, um dos seus mais íntimos confidentes e Berta Mendes que serão os padrinhos de João Gaspar Caraça, filho do segundo casamento.
Costa da Caparica, Quinta de Santo António (vivenda Engrácia?), década de 1930. A partir da esquerda: Berta Mendes, Fernando Lopes Graça (1906-1994), Ofélia Marques (1902-1952), Bernardo Marques (1898-1962), Manuel Mendes (1906-1969) , Bento de Jesus Caraça, e Cândida Caraça (e os cães Anica e Maigret). Casa Comum |
Artistas como Avelino Cunhal, Huertas Lobo que lhe traça o perfil esvanescente, Abel Manta que esboçara o seu retrato póstumo, Mário Dionísio, Francisco Keil do Amaral, Maria Keil, Lopes Graça, Alice Manta, João Abel Manta, que lhe desenhará o perfil, Guida Lamy fazem parte do seu grupo de amigos. (2)
(1) Associação Bento de Jesus Caraça
(2) Bento de Jesus Caraça: Cultura e emancipação, um problema ainda do nosso tempo
Artigos relacionados:
Sarah Affonso, postais da Costa a Manuel Mendes (1930-1931)
Retratos com Bá e Manuel Mendes
Mais informação:
Escola Profissional Bento de Jesus Caraça (Porto)
Manuel Mendes (Fundação Mário Soares e Maria Barroso/Casa Comum)
Século XX português: Os Caminhos da Democracia (Fundação Mário Soares e Maria Barroso)
Obras editadas na Biblioteca Cosmos
Bento Jesus Caraça - Testemunho de Alvaro Cunhal (PCP)
Bento de Jesus Caraça: Cultura e emancipação, um problema ainda do nosso tempo
Revistas de Ideias e Cultura
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