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quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Descida do Cabedelo

succedeo vir huns dos Saveiros sahindo da costa, que fica ao Sul da trafaria, a donde a dianados bosques, fabricou entre as margens do mesmo Tejo, e reconcavas daquellas penhas, huma celebre anceada, em que os ditos Saveiros vivem a mayor parte do anno aquartellados, em suas cabanas (...) (1)

Costa da Caparica, Descida (e Ponta) do Cabedelo, ed. desc., década de 1920.
Delcampe

Há 15 milhões de anos, deu-se a formação das rochas que constituem a arriba fóssil, sedimentos e fósseis de organismo marinhos, posteriormente a formação da camada superior, constituída por areias e cascalheiras de cor avermelhada. Nesta época a arriba era o limite do território, estava em contacto com a água (...)


Zee Caerte van Portugal Daer inne Begrepen de vermaerde Coopstadt van Lisbone (detail),
Lucas Janszoon Waghenaer, 1586.
Wildernis

A Ponta do Cabedelo, como o nome indica é uma “pequena elevação de areia, na foz de um rio, formada por acumulação de sedimentos fluviais e marinhos”, o que indica também que a Descida do Cabedelo foi outrora inundada por água (...)


El Atlas del Rey Planeta (detalhe), Pedro Teixeira, 1634
La descripción de España y de las costas y puertos de sus reinos

“Esta faixa litoral é preenchida exclusivamente por areias, pelo que até finais do século XlX a paisagem era dominada por dunas e juncais que ocupavam as zonas alagadas com água escorrente da arriba” (cf. Centro de Arqueologia de Almada, Actas do 1º Encontro sobre o Património de Almada e do Seixal, 2012)

Plano hydrographico da barra do porto de Lisboa (detalhe), Francisco M. Pereira da Silva, 1857.
Biblioteca Nacional de Portugal

No entanto denota-se o aparecimento do Convento dos Capuchos (1558) no lugar chamado de Outeiro o que significa “Pequena eminência de terra firme, pequeno monte ou coluna”, no cimo da Arriba que “ (...) mais a ocidente, em lugar recatado e isolado, lhes permitia o sossego necessário ao seu modo de vida.”, e no lugar da Descida do Cabedelo, próximo do Convento, é possível verificar uma linha de água bem demarcada que escorre da Arriba.

Arriba fóssil e Convento dos Capuchos, 1952.
Arquivo Municipal de Lisboa

A Descida do Cabedelo aparece como um rasgo na arriba fóssil, sem vestígios aparentes de água, no entanto quase todo o lugar tem a indicação de poços de água (...)

Costa da Caparica,  ed. Passaporte, 7, década de 1950.
Delcampe

Atualmente já é visível a estrada do Miradouro dos Capuchos que parte do Largo existente, em frente ao Convento dos Capuchos, já construída e que culmina num miradouro construído em cima do local onde foram encontrados vestígios arqueológicos, e que olha sobre a Costa da Caparica e Lisboa.

Costa da Caparica, vista tomada do Alto do Robalo, ed. desc.

Perpendicularmente a esta estrada, um caminho que tem como destino o lugar de um rádio-farol, tornando a Ponta do Cabedelo um lugar apenas de contemplação e manutenção de um rádio-farol existente. (2)


(1) Francisco Guevarz, Nova relação da batalha naval, que tiveram os algaravios com os saveiros nos mares, que confinão com o celebrado paiz da Trafaria, Catalumna, 1750)
(2) Mariana Ferreira Raposo, Entre o Mar e a Terra - Costa da Caparica
Paisagem de Transição: Percurso pedonal entre a Costa da Caparica e o Alto dos Capuchos, 2021


Artigos relacionados:
Arriba Fóssil
Costa do Mar
Mar da Calha
Terras da Costa
Cronologia do Convento dos Capuchos (Caparica)



Como de costume o objecto que se descreve neste apontamento já quase não existe. Creio que do cabedelo aqui referido, que atravessava o juncal misturando-se com a duna,  e do qual restou o escarpado, formaria ainda por 1750 uma enseada no mar... contra o mito que conta que o areal da Costa foi depositado pelo terramoto de 1755 e que antes deste não existiria, como há 15 milhões de anos.

Plano geral que representa a Costa do Mar entre Trafaria e Cabo Espichel (detalhe) de Jacob Crisóstomo Pretorius, datado de 22 de Abril de 1789.
Arquivo Histórico Militar, 3/47/AH-2/6 – nº 18468


Não são poucas as teses, relatórios e artigos que recorrem às anotações e imagens que, com origem em trabalhos precedentes de diversos autores, nestas referências ao longo do tempo venho reunindo e categorizando:

Mar de Caparica
Almada virtual
Eventualmente Lisboa e o Tejo

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Pera

A propriedade, ou como é dito na língua portuguesa a Quinta, está situada numa parte do país que, pela sua fertilidade, recebeu o nome de Capa Rica ou Rico Manto. Esta freguesia forma uma espécie de península ou língua de terra que se projeta para oeste, situada entre o rio Tejo, no seu lado norte, e o Atlântico, a sul, que aqui faz a baía tão familiar a todos os lisboetas e que se estende desde a foz do Tejo até ao Cabo Espichel.

Costa da Caparica, Carta dos Arredores de Lisboa — 68 (detalhe), Corpo do Estado Maior, 1903.
Imagem: IGeoE

A Quinta situa-se cerca de uma milha a partir da extremidade ocidental desta língua de terra, e quase a uma distância igual a partir do Tejo e do Atlântico. O nome de Pera foi-lhe dado a ele a partir da abundância de peras anteriormente produzidas na sua vizinhança. A casa não era nem bonita, nem grande nem cômoda, mas cerca de vinte anos atrás, foi consideravelmente ampliada pela construção de uma outra divisão, que foi feita pelo falecido Presidente, o Right Rev. Monsenhor Baines [bispo eq.], e, atualmente, é suficientemente grande para acomodar, sob seu teto, todos os internos do Colégio. 

Caparica, Pera, Quinta dos Ingleses, c. 1900.
Imagem: Internet Archive

No piso térreo é composta por uma adega razoavelmente grande, notável pela sua frescura, usada para o armazenamento dos barris de vinho e os quartos destinados ao alojamento do caseiro ou fazendeiro e seus trabalhadores. No primeiro andar há uma boa cozinha, uma pequena capela, e seis quartos, um dos quais é grande e serve como um refeitório quando a comunidade aí está. No andar superior são quartos para os Superiores e o dormitório. Os espaços exteriores consistem numa destilaria nova e limpa, adega, lagar, e estábulo.

Caparica, Pera, Quinta dos Ingleses, c. 1900.
Imagem: Internet Archive

A simplicidade do edifício é amplamente compensada pelo cenário encantador que o rodeia. Indo de leste para oeste, situa-se a meio caminho da encosta norte de um belo vale, ou melhor, depressão com cerca de uma milha de diâmetro, com colinas opostas suavemente inclinadas, e de quase igual altura embora sem grande elevação, estendendo em direcção oeste, até ao Atlântico cujas margens sobrepõe. Todo o vale é vestido, desde a sua base ao seu bordo, com vinhas intercaladas aqui e ali com campos de milho.

Caparica, Pera, Quinta dos Ingleses, c. 1900.
Imagem: Internet Archive

Inúmeras casas brancas estão espalhadas nos lados suavemente inclinados, enquanto no cume das colinas podem ser vistos ao sudoeste uma igreja e um convento, agora, infelizmente, em ruínas e servindo como celeiro mas que até a supressão das ordens religiosas foi ocupado pelos frades da Ordem de S. Francisco.

Caparica, Convento dos Capuchos, década de 1900.
Imagem: Hemeroteca Digital

A sul, frente à Quinta, a cena é variada, aldeias, moinhos de vento, e pequenas plantações de pinheiros, enquanto a norte, atrás da Quinta encontram-se as duas vilas de Pera, cada um com seu moinho de vento. Pelo meio do vale passa uma estreita estrada pública ladeada de canas, que lhe dão a aparência de um riacho. 

Caparica, Pera, Quinta dos Ingleses, vista sul, c. 1900.
Imagem: Internet Archive

Na extremidade ocidental onde o vale atravessa as colinas, e à distância de cerca de uma milha, uma parte do Atlântico é avistável, o rugido oco das ondas que batem na costa é incessantemente ouvido.

Vista de Caparica, tomada dos Capuchos, anterior aos trabalhos de construção do IC 20.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Vista de Caparica tomada dos Capuchos, após os desaterros no vale cego de Brielas para a construção do IC 20.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Imediatamente abaixo da Quinta fica a casa de campo, anteriormente pertencente ao Marquês de Valada, que, meio escondida atrás de um tufo de altas árvores antigas, forma um objeto pitoresco, especialmente numa noite de verão, quando como nos tempos antigos o gado era deixado solto para se alimentar nos campos vizinhos. 

Caparica, Pera, casa de campo, anteriormente pertencente ao Marquês de Valada, c. 1900.
Imagem: Internet Archive

O vale é refrescado durante os calores do verão pela brisa do mar que entra na abertura a oeste, e o local é tão salutar que os seus habitantes geralmente chegam a uma velhice extrema. As terras do Colégio, que consistem quase inteiramente de vinhas ficam em volta da casa, estendendo-se desde o cume da colina norte, sobre a qual fica, até à estrada a sul, que atravessa o meio do vale . De tempos a tempos, conforme as oportunidades, apareciam acrescentos de terra, que por compra, eram feitos à propriedade original.

Encantador como este lugar de beleza natural, o amor dos filhos de Lisboa para com a Quinta deve ser procurado em dias felizes nos quais eles possam olhar para trás durante a "quinzena em Pera", que anualmente em setembro, a Comunidade aí passa.

A liberdade absoluta e sem contenção, que a reclusão da freguesia em que a Quinta está situada, torna possível o relaxamento da rigorosa disciplina do Colégio, a deliciosa sensação do "dolce far niente", que sucede à grave tensão mental da preparação para exames; a suave atmosfera ainda pura, revigorante e enriquecida carregada pela brisa a partir da ampla extensão do Atlântico, conferem um charme especial para as duas ou três semanas que aí são anualmente gastas lá, e que são familiarmente conhecida como "tempo da Quinta ".

Jardins do Colégio em Lisboa, c. 1900.
Imagem: Internet Archive

A estas devem ser adicionadas a beleza da paisagem com "grupos de vinha nas colinas e suas frequentes divagações pelo vale [They had oft rambled forth along the vale...]", e os inúmeros pontos de interesse e de extrema beleza que se encontram ao alcance de um agradável passeio à noite .

Learn Your Homophones: Pear, Pair, and Pare
Imagem: grammarly

A simples menção do cume das alturas escarpadas que aqui formam a linha de costa, defrontando o vasto Atlântico, será suficiente para trazer de volta uma série de aprazíveis reminiscências a cada sucessiva geração de estudantes de Lisboa.

A Praia do Sol, Panorama dos Capuchos, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 107, década de 1930.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Para ver os resistentes pescadores puxar com as suas redes o tributo prateado exigido ás águas prolíficas, ou para passear ao longo da costa desolada e contemplar as ondas a arfar e a curvar soberbas, enquanto gradualmente se aproximam, como que impacientes de contenção, e, soando oco, se joguem furiosamente contra a praia, foram fontes de prazer que repetidas visitas nunca roubaram a sua frescura.

A Praia do Sol, Alando a rede, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 106, década de 1930.
Imagem: Delcampe, Bosspostcard

Aqui os grandiosos aspetos da natureza desvelam-se à vista, e o poderoso oceano poderia ser estudado nos seus humores sempre variáveis. (1)


(1) Croft, William, 1836-1926; Gillow, Joseph, 1850-1921; Kirk, John, 1760-1851 Historical account of Lisbon College, 1902, St. Andrew's press, Barnet

Informação relacionada:
Pontifical English College of Sts Peter and Paul - Lisbon

segunda-feira, 29 de maio de 2017

A Trafaria em 1908

Da Costa de Caparica ha estrada para a Trafaria, e aqui vamos nós agora para esta praia, que é onde melhor se pôde assignalar a acção beneficiente do antigo deputado Costa Pinto na fixação das areias pelo desenvolvimento da vegetação do penisco.

Trafaria, Jardim da matta florestal, ed. Manuel Henriques, 03, década de 1900.
Imagem: Delcampe

O certo é que hoje a praia da Trafaria é já encimada por uma ampla matta, e que o seu pântano de agua mixta, que occupava uma área de 8 kilometros, foi esgotado, com o que também Lisboa lucrou, pois que as chamadas "febres do Aterro" parece que provinham d'aquelie pântano quando soprava o vento do respectivo quadrante [discurso de Costa Pinto na camará dos deputados, sessão de 17 de março de 1901].

Trafaria, Vista do Largo da Egreja, ed. Manuel Henriques, década de 1900.

A Trafaria, comquanto seja uma povoação irregular, tem algumas ruas direitas, taes como as do Alecrim e dos Valentes; bem como um largo de S. Pedro, onde está situada a capella da invocação do mesmo santo, e onde ha um coreto para a Real Fanfarra Trafariense.

A estrada da Costa, construída em 1888, vem dar a este largo.

Trafaria, Estrada da Costa, ed. Manuel Henriques, 16, década de 1900.
Imagem: Delcampe

As casas em geral são térreas e pequenas, com excepção dos prédios modernamente mandados edificar pelos srs. coronel Chaves d'Aguiar e António Marques de Freitas.

A praia de banhos é boa, está abrigada do norte e a agua é limpa.

Trafaria, ponte dos vapores da Parceria Lisbonense, [Praia de banhos, ed. Manuel Henriques, 2, década de 1900].

As barracas são de madeira, e ha duas pontes de desembarque, uma para os vapores da Parceria Lisbonense, cujas carreiras começam em 1 de julho e findam em 31 de outubro,

Anuncio do Serviço de Carreiras da Parceria dos Vapores Lisbonenses em 1908.

e outra para serviço exclusivo dos fortes. Estes são os de Alpena, infante D. Manuel, Raposeira e Cotovia, cuja guarnição é constituída pelo grupo de artilharia n.° 4, na força de 12 ofliciaes, 15 sargentos e 200 praças.

Trafaria, Entrada da ponte de embarque [serviço exclusivo dos fortes], ed. Manuel Henriques, 4, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Os fortes são servidos por uma estrada militar privativa, que desemboca ao sul da povoação, onde se acha construído o quartel, inaugurado em 23 de janeiro de 1903, e que é a melhor installação que no género possuímos, posto que ainda esteja incompleto.

Trafaria, Quartel do grupo de artilharia n.º 4, ed. Manuel Henriques, 12, c. 1909.
Imagem: Fundação Portimagem

Junto á ponte dos vapores ha um telheiro que serve para arrecadação das galeotas reaes, e o antigo presidio que está sendo adaptado a prisão militar naval.

Trafaria — Vista geral, ed. Martins/Martins & Silva, 1201, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Foi no antigo presidio que em 1810 falleceu o poeta Domingos Maximiano Torres [Alfeno Cynthio], o qual ali esteve encarcerado como "jacobino".

Funccionam na Trafaria duas fabricas: uma de dynamite fundada em 1873 e que occupa 25 operários; outra de conserva de peixe fundada em 1885, e n'esta trabalham 12 homens.

A Trafaria tem uma associação de soccorros mútuos, creada em 1900, é intitulada de — S. Pedro.

A população normal compóe-se de pescadores, havendo entre elles 24 donos de barcos de pesca. 

Trafaria — Vista geral da praia, ed. J. Quirino Rocha, 06, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Na época de banhos estabelecem-se na Trafaria muitas famílias de Lisboa. Ali veranearam durante alguns annos dois escriptcres portuguezes — Luiz Augusto Palmeirim e Ramalho Ortigão. 

Recentemente a Sociedade Cooperativa Trafaria construiu um casino, cuja sala de baile foi inaugurada no verão de 1906.

N'esta mesma sala foi montado um palco. A Sociedade teve em 1908 uma receita de 1.339.745 réis, e já despendeu nas obras do club 5.910.970 réis.

A esta praia concorrem annualmcnte as crèanças protegidas pela Assistencia Nacional aos Tuberculosos.

Trafaria, banhistas na margem do Tejo, Alberto Carlos Lima, década de 1900.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

E o Real Gymnasio Club tem ali aberta, durante a estacão balnear, uma escola de natação.

As solemnidades religiosas que se celebram na Trafaria são a festa de S. Pedro, a procissão dos Passos e a da Senhora da Conceição em 15 de setembro.

Trafaria, Vista da Enxurrada, ed. Manuel Henriques, 9, década de 1900.
Imagem: Delcampe

São dignas de menção nos arredores d'esta praia as quintas de Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora do Monte do Carmo e da Corvina.

Ha na povoação alguns estabelecimentos commerciaes, sendo os melhores os de Manuel Henriques e José António da Rocha.

Trafaria, Valle da Enxurrada, ed. J. Quirino Rocha, 3, década de 1900.
Imagem: Delcampe

O fac-totum da Trafaria, com quem todos os banhistas se entendem, é o banheiro António Maria da Rocha, por alcunha o Hersent.

A povoação tem escola de instrucção primaria, uma estação telegrapho-postal e um posto de fiscalisação. Ha um restaurante — de Alves Ramos.

No sitio da Trafaria mandou o cardeal D. Henrique fundar um lazareto por alvará de 7 d'agosto de 1665. O logar escolhido era uma terra que pertencia a Gaspar da Rua.

No reinado de D. João V, precedendo consulta do senado da camará de Lisboa, foi ordenado que se ampliasse o recinto do lazareto por decreto de 19 de novembro de 1711. Esta ordem não teve logo effeito, e por isso o decreto de 9 de dezembro de 1713 a renovou.

O forte da Trafaria já desde o tempo de D. Pedro II servia para se armazenarem n'elle as mercadorias em quarentena.

Trafaria (Portugal), Vista geral e rio Tejo, ed. Martins/Martins & Silva, 28, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

O serviço de desinfecção, que consistia no assoalhamento das mercadorias, era desempenhado pelos officiaes da saúde do porto de Belém, e custeado pela municipalidade, que para esse fim tinha receita própria. Foi em 1815 que o lazareto passou da Trafaria para a Torre Velha de S. Sebastião de Caparica. (1)


(1) Alberto Pimentel, A Estremadura portuguesa, Volume II, Lisboa, Empreza da História de Portugal, 1908, 539 págs.

Mais informação:
Trafaria 1900, cliché Faustino António Martins
Ponte dos vapores da Trafaria
Trafaria e Cova do Vapor em 1946

segunda-feira, 20 de março de 2017

Mário Bengala

Mário Bengala é um homem das Terras da Costa. Descendente das duas grandes "tribos" da zona: os pescadores vindos de Ílhavo e os vindos do Algarve, em tempos divididos por grandes rivalidades, com os primeiros a instalar-se a partir do final do século XVIII na parte Norte da Costa e os segundos, um pouco mais tarde, no Sul. Os de Ílhavo sabiam pescar mas também trabalhar a terra e foi esse o destino de Mário Bengala, que se tornou um dos maiores agricultores das chamadas Terras da Costa.

Mário Bengala, Terras da Costa, 2005.
Imagem: A Promessa, Lugar do Real

"O meu avô Raimundo descendia de algarvios, e casou com a minha avó que descendia de ílhavos. Os ílhavos dedicavam-se à terra e ao mar, não tinham fome".

Bengala está sentado numa cadeira de plástico, debaixo de um telheiro, no meio dos terrenos que continua a cultivar logo à entrada da Costa. A estrada que vem de Lisboa passa ali ao lado, e à nossa volta são campos de couves, abóbora, batata.

Costa da Caparica, Praia do Sol, Vista Parcial, ed. desc.
Imagem: Delcampe

"Isto eram tudo juncais. Há 82 anos o mar chegou aqui, até morreram vacas afogadas. Depois é que as Matas Nacionais fizeram a mata, para fazer as dunas, e a água salgada deixou de entrar aqui".

Costa da Caparica, a duna artificial ou escarpado, 1930-1932.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Mário Bengala está desesperado. Como os outros agricultores das Terras da Costa ouviu dizer que vai ser construída uma nova estrada de acesso à Fonte da Telha que vai atravessar as suas terras (um projecto que não faz parte do CostaPolis). 

"E as pessoas vão para a rua? Viver onde, com 42 contos? Passando aqui uma estrada o que é que fica para amanhar? Nada. Têm que fazer as contas com as pessoas, isto não pode ser assim". A voz altera-se-lhe, os olhos enchem-se de lágrimas. 

Costa da Caparica, Terras da Costa e Cabo Espichel, ed. Passaporte, 7, década de 1950.
Imagem: Delcampe

"Isto é a vida das pessoas, o meu avô nasceu aqui. Não roubem a gente, pela vossa saúde".

Foi o avô de Mário Bengala e os outros agricultores que transformaram os antigos juncais em terras férteis usavam restos de peixe, caranguejos e até santolas para adubar a terra, e os vegetais começaram a crescer tanto que as Terras da Costa eram consideradas um dos celeiros de Lisboa. Depois, em burros, iam até ao mercado da capital vender. 

Costa da Caparica, transporte de mercadoria pelas dunas, década de 1920.
Imagem: Espólio Agro Ferreira

Como Joaquim Cavalinha teve esperança de ser levado para o seminário, Mário Bengala também sonhou em deixar a Costa e ir para a Marinha Mercante.

Mas os problemas sucederam-se. Primeiro foi o padre que, porque nunca o via na missa "não há ninguém aqui do campo que tenha tempo para ir à missa" , achou que ele era comunista e recusou-se a passar o papel que exigiam na Marinha confirmando era católico. 

Costa da Caparica, ed. Lif, 04, Igreja da Nossa Senhora da Conceição, 1945
Imagem: Delcampe

"Apareceu o 25 de Abril, ele pensava que eu era comunista, e até veio beijar-me as mãos. E eu 'ó senhor prior, não me faça isso por amor de Deus', e ele 'ó Mário perdoe-me que lhe fiz tanto mal'".

Surgiram problemas familiares - uma complicada história que envolve uma discussão com o pai, um relógio partido e a promessa da mãe de lhe comprar um igual, mas de ouro, e ainda um dinheiro guardado com sacrifício pela mãe e escondido no forno de ferro, e que acabou queimado no dia em que Mário, sem saber de nada, resolveu assar umas batatas doces. 

Foi a vez de Mário prometer que trabalharia até poder dar à mãe o dinheiro para ela cumprir a sua promessa. Ainda hoje tem no pulso o relógio de ouro, testemunho desta história de promessas cumpridas. No meio de tudo isto acabou mesmo por ficar. E aos 13 anos pediu ao pai um bocado de terra para semear.

Praia do Sol, C. Caparica, ed. José Nunes da Silva, s/n, Poço de Bomba, Chafariz
Imagem: Delcampe

Agora não sabe o que vai ser o futuro. Sozinho, enorme, no meio das suas terras, o cabelo branco impecavelmente penteado, está desolado. 

"Tirava daqui toneladas de hortaliça, couves, nabos, cenouras, alfaces, alhos franceses. Depois levaram o Mercado Abastecedor para cascos de rolha. Marcaram os preços das couves no Natal a 25 cêntimos o quilo, e cada mulher que anda aí a trabalhar quer ganhar um conto de réis por hora. Não chega. Tenho ali batatas que não sei o que hei-de fazer com elas, aqui há tempos deitei mais de 50 caixas para um contentor. Estamos a afundar. 

Costa da Caparica, vista geral, década de 1980 — 1990.

Não há ninguém que queira trabalhar no campo. Dizem 'ah, é muito calor'. Depois da minha geração morrer não sei como isto vai ser". (1)


(1) Alexandra Prado Coelho, A nova Costa já chegou, Público, 23 de agosto de 2009

Mais informação:
A Promessa, Lugar do Real, 2005

Leitura relacionada:
Mário Bengala: A voz das terras, Gandaia, 30 de setembro de 2012

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

A Boca-do-Grilo

A rocha estava já em frente — paredão barrento, alcantilado, com ladeira aberta por milhentas chuvas, escavadas por pés teimosos do mesmo trilho.

Variante à Estrada Nacional 377 (detalhe), zona da Boca do Grilo.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Ladeada de afusados eucaliptos, a estrada de asfalto torcia para a direita, arrastando depois o caminhante a desmedido ziguezague.

A Praia do Sol - Uma vista parcial. Subida para os "Capuchos", ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 110.
Imagem: Fundação Portimagem

Por isso, elas optavam sempre pelo caminho de cabras da Boca-do-Grilo, ladeira íngreme e pedregosa como o Inferno — mas, em quatro arrancos, punham-se lá em cima. (1)

Costa da Caparica, Carta dos Arredores de Lisboa — 68 (detalhe), Corpo do Estado Maior, 1902
Imagem: IGeoE

Com a sardinha, empilhada,
Inda saltando vivaz,
Vem de cestinha avergada;
E lá de baixo, da praia,

Costa da Caparica, Alfredo Keil (1851 - 1907).
Imagem: Palácio do Correio Velho

E sobe a pino o almaraz;

Sentinelas ou Guardas avançadas, Caparica, Falcão Trigoso, 1935.
Imagem: Palácio do Correio Velho

Mas nem por sombras cançada! (2)


(1) Romeu Correia, Calamento, Lisboa, Editorial Minerva, 1950.
(2) Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, 1896, Typographia da Academia, Lisboa.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Arriba Fóssil

Arriba Fóssil da Costa de Caparica (faixa de 70 metros para o interior a contar da crista da arriba, segundo a Resolução do Concelho de Ministros nº178/2008, 24 de Novembro) [...]

Costa da Caparica, vista da Quinta de Santo António e da Mata Florestal, tomada do Alto do Robalo, década de 1930.
Imagem: ed. desc.

foi classificada como área protegida segundo o Decreto-Lei nº 168/84, de 22 de Maio, pelo seu excecional valor paisagístico, geológico e geomorfológico.

Costa da Caparica, vista geral (detalhe), Mário Novais, década de 1940.
Imagem: Fundação Calouste Gulbenkian

Para além de diversos estratos de camadas subhorizontais de rochas sedimentares, de conteúdo fossilífero e de origem flúvio-marinha,

Arriba fóssil e Convento dos Capuchos, 1952.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

a área da Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa de Caparica é igualmente uma reserva botânica de elevado interesse, a Mata Nacional dos Medos, classificada segundo o Decreto-Lei nº 444/71, de 23 de Outubro.

Escarpements formés par le Miocène et Pliocène entre Costa de Caparica et Adissa [Adiça], cliché P Choffat, c. 1900.
Imagem: Internet Archive

A paisagem protegida que compreende parte da arriba fóssil estende-se por 13 km na plataforma litoral, desde a Costa de Caparica à Lagoa de Albufeira e tem uma superfície aproximada de 1599 hectares. (1)

Almada, entre o Rio e o Mar
Vídeo: cmalmada



(1) Marta N. S. C. Oliveira, Evolução Natural e Antrópica Trafaria - Cova do Vapor - Costa de Caparica, Lisboa, UL, 2015