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Mário Bengala, Terras da Costa, 2005. Imagem: A Promessa, Lugar do Real |
"O meu avô Raimundo descendia de algarvios, e casou com a minha avó que descendia de ílhavos. Os ílhavos dedicavam-se à terra e ao mar, não tinham fome".
Bengala está sentado numa cadeira de plástico, debaixo de um telheiro, no meio dos terrenos que continua a cultivar logo à entrada da Costa. A estrada que vem de Lisboa passa ali ao lado, e à nossa volta são campos de couves, abóbora, batata.
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Costa da Caparica, Praia do Sol, Vista Parcial, ed. desc. Imagem: Delcampe |
"Isto eram tudo juncais. Há 82 anos o mar chegou aqui, até morreram vacas afogadas. Depois é que as Matas Nacionais fizeram a mata, para fazer as dunas, e a água salgada deixou de entrar aqui".
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Costa da Caparica, a duna artificial ou escarpado, 1930-1932. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
Mário Bengala está desesperado. Como os outros agricultores das Terras da Costa ouviu dizer que vai ser construída uma nova estrada de acesso à Fonte da Telha que vai atravessar as suas terras (um projecto que não faz parte do CostaPolis).
"E as pessoas vão para a rua? Viver onde, com 42 contos? Passando aqui uma estrada o que é que fica para amanhar? Nada. Têm que fazer as contas com as pessoas, isto não pode ser assim". A voz altera-se-lhe, os olhos enchem-se de lágrimas.
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Costa da Caparica, Terras da Costa e Cabo Espichel, ed. Passaporte, 7, década de 1950. Imagem: Delcampe |
"Isto é a vida das pessoas, o meu avô nasceu aqui. Não roubem a gente, pela vossa saúde".
Foi o avô de Mário Bengala e os outros agricultores que transformaram os antigos juncais em terras férteis — usavam restos de peixe, caranguejos e até santolas para adubar a terra, e os vegetais começaram a crescer tanto que as Terras da Costa eram consideradas um dos celeiros de Lisboa. Depois, em burros, iam até ao mercado da capital vender.
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Costa da Caparica, transporte de mercadoria pelas dunas, década de 1920. Imagem: Espólio Agro Ferreira |
Como Joaquim Cavalinha teve esperança de ser levado para o seminário, Mário Bengala também sonhou em deixar a Costa e ir para a Marinha Mercante.
Mas os problemas sucederam-se. Primeiro foi o padre que, porque nunca o via na missa — "não há ninguém aqui do campo que tenha tempo para ir à missa" —, achou que ele era comunista e recusou-se a passar o papel que exigiam na Marinha confirmando era católico.
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Costa da Caparica, ed. Lif, 04, Igreja da Nossa Senhora da Conceição, 1945 Imagem: Delcampe |
"Apareceu o 25 de Abril, ele pensava que eu era comunista, e até veio beijar-me as mãos. E eu 'ó senhor prior, não me faça isso por amor de Deus', e ele 'ó Mário perdoe-me que lhe fiz tanto mal'".
Surgiram problemas familiares - uma complicada história que envolve uma discussão com o pai, um relógio partido e a promessa da mãe de lhe comprar um igual, mas de ouro, e ainda um dinheiro guardado com sacrifício pela mãe e escondido no forno de ferro, e que acabou queimado no dia em que Mário, sem saber de nada, resolveu assar umas batatas doces.
Foi a vez de Mário prometer que trabalharia até poder dar à mãe o dinheiro para ela cumprir a sua promessa. Ainda hoje tem no pulso o relógio de ouro, testemunho desta história de promessas cumpridas. No meio de tudo isto acabou mesmo por ficar. E aos 13 anos pediu ao pai um bocado de terra para semear.
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Praia do Sol, C. Caparica, ed. José Nunes da Silva, s/n, Poço de Bomba, Chafariz Imagem: Delcampe |
Agora não sabe o que vai ser o futuro. Sozinho, enorme, no meio das suas terras, o cabelo branco impecavelmente penteado, está desolado.
"Tirava daqui toneladas de hortaliça, couves, nabos, cenouras, alfaces, alhos franceses. Depois levaram o Mercado Abastecedor para cascos de rolha. Marcaram os preços das couves no Natal a 25 cêntimos o quilo, e cada mulher que anda aí a trabalhar quer ganhar um conto de réis por hora. Não chega. Tenho ali batatas que não sei o que hei-de fazer com elas, aqui há tempos deitei mais de 50 caixas para um contentor. Estamos a afundar.
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Costa da Caparica, vista geral, década de 1980 — 1990. |
Não há ninguém que queira trabalhar no campo. Dizem 'ah, é muito calor'. Depois da minha geração morrer não sei como isto vai ser". (1)
(1) Alexandra Prado Coelho, A nova Costa já chegou, Público, 23 de agosto de 2009
Mais informação:
A Promessa, Lugar do Real, 2005
Leitura relacionada:
Mário Bengala: A voz das terras, Gandaia, 30 de setembro de 2012
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