sábado, 18 de março de 2017

Joaquim Cavalinha

"Fui para o mar com 12 anos, mas aos oito já comecei a enrolar corda", conta, encostado a um dos tractores nas novissimas casas de apoio construídas pelo Polis para os pescadores.

Joaquim Cavalinha (1925-2014).
Imagem: Ao Canto da Memória

Aos 84 anos lembra-se bem de como era quando ele, os pais e os três irmãos viviam "lá no Norte [da Costa], numa barraca de junco", e dormiam "deitados no chão, numa esteira, e quem se descuidasse acabava a dormir em cima do barro".

Frio, é melhor nem falar nisso, e comida era quando havia. "Às vezes passava-se dois ou três dias em que nem se acendia o lume. Depois é que lá apareceu um homem a quem chamavam o Papo Seco e numa garagem antiga começou a fazer panelas de sopa.

Eu comia o comer muito quente, num prato de folha fundo. Eram uns 50 ou 60 rapazes e raparigas que todos os dias iam à garagem comer".  Abana a cabeça: "Um homem daquela qualidade nunca mais aparece".

Adega do Papo-Seco e Pensão Chic, Costa da Caparica, rua dos Pescadores.
Imagem: Costa da Caparica no Facebook

Uma hora foi todo o tempo que Joaquim Cavalinha passou na escola. Não chegou sequer para comprovar se era verdade o que diziam da professora, "a quem chamavam a Beiçuda". "Diziam que era muito má, eu cá só lidei com ela uma hora, não sei se era boa ou ruim". 

Às dez da manhã o pai mandou chamá-lo. "Tinha apanhado um saco cheio daquela sardinha pequenina, uma fortuna naquele tempo. Nem o meu nome aprendi a fazer. O meu pai dizia logo para a gente 'se não vais para o mar nem as papas de milho comes'". 

Costa da Caparica, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, cliché João Martins, década de 1930.
Imagem: Fundação Portimagem

Ainda houve um padre que o veio buscar para o levar para o seminário. "Eu já tinha o saquinho na mão e o meu pai não me deixou ir. Cortou-me as pernas, se calhar. Eu lá aprendia alguma coisa e estava a comer todos os dias certo. Ele dizia que aquilo não era vida para mim". Encolhe os ombros com um ar desalentado. 

Costa da Caparica, crianças filhas de pescadores, 1938.
Imagem: Arquivo Nacional Torre do Tombo

"E isto, é vida? Aos 84 anos devia estar sentado num maple e estou aqui a penar". Penar é ter que esperar pelas seis e meia da tarde para poder ir para o mar, que antes não se pode por causa dos banhistas. É voltar às tantas da manhã para casa. 

É ver a mulher, Adelaide — "aquilo é uma mulher de aço, daquilo já não há"aos 78 anos, a ir para a praça às seis da manhã vender peixe, depois para a lota das cinco às oito, para comprar, e depois novamente das dez da noite até à uma da madrugada. 

O seminário e a escola primária ficaram para trás, esquecidos, e o Joaquim Cavalinha lá foi tirar a cédula marítima mesmo sem saber nadar. "Éramos quatro irmãos, todos pescadores. Para nadar não havia melhor que eles cá na Caparica, e eu não sei mexer um braço. Nunca me lembro de ir ao banho, por isso é que nunca aprendi a nadar".

Mas a sorte protegeu-o. "Tinha 14 anos quando tirei a cédula, estava uma friagem que até metia medo. Eles perguntaram quem era o meu pai. 'O teu pai é o Cavalinha? Ó pá, vai-te vestir'. Ena, que sorte do mundo, ein? O meu pai era um pescador valente a nadar e eles pensavam que o filho era a mesma coisa". Mesmo assim o mar nunca lhe meteu medo. "Se perguntar aí quem é o Cavalinha para o mar, eles que digam, sou o número um. 

Costa da Caparica, Casa da Bíblia, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, s/n, c. 1930.
Imagem: Delcampe

O que eu digo a eles é: se um dia me acontecer uma fatalidade agarro-me a um com unhas e dentes e não o largo da mão. Há cinco ou seis anos, na Fonte da Telha, o barco foi mesmo ao fundo, e aquilo era fundo mesmo. 

Estava lá um, agarrei-me logo a ele, e ele 'larga-me da mão', e eu 'largo-te da mão para quê, não largo nada, ao menos estamos aqui os dois a conversar um com o outro'. Deixava-o da mão para ele ir para terra e eu ficar ali sozinho e morrer, não?". 

Se o mar não muda e continua difícil, apesar de cheio de peixe - "às vezes apanhamos às 400 ou 500 caixas de cavala e não há uma fábrica que meta aquilo, tem que se abrir a rede e dar às gaivotas" - a vida à volta mudou. 

O mar como patrimonio, exposicão: arte-xávega na Costa da Caparica, 2015.
Imagem: Francisco Silva

As instalações, estreadas há três meses, não têm comparação com o que havia antes. "Quem disser mal disto diz mal de Deus. A gente lá [nas antigas barracas de apoio à pesca] tinha que se arregaçar por causa da pulga, não se podia estar ali, era uma imundíce. Aqui tem o asseio, a luz. É tal e qual como a gente morar numa barraca e ir morar para um hotel". 

O mal é que o peixe dá cada vez menos. "A semana passada cada homem ganhou dois contos, a semana inteirinha a trabalhar". O peixe não se vende. "É tudo à conta dos espanhóis, peixe de aviário, que não presta para nada. Os restaurantes preferem porque é mais barato, mas o maior crime que eles fazem na vida é preparar aquele peixe. Aquilo nem gosto tem". 

A Praia do Sol, Uma vista parcial, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 108, década de 1930.
Imagem: Delcampe

Do outro lado da Costa, em direcção à Arriba"daqui lá são dois minutos, mas veja lá se os percebe, olhe que eles têm um sotaque diferente", avisa Cavalinha - está um contemporâneo do pescador, mas de um outro mundo. (1)


(1) Alexandra Prado Coelho, A nova Costa já chegou, Público, 23 de agosto de 2009

Leitura relacionada:
Joaquim Cavalinha: A voz do mar, Gandaia, 1 de novembro de 2012

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