sexta-feira, 3 de março de 2017

Retratos de Bulhão Pato

Eu, que não sou deputado, nem conselheiro, nem ministro, nem par do reino, nem escriptor politico, nem democrata façanhoso, nem republicano — moço-fidalgo — vejo-me infelizmente compellido a procurar meios de subsistência na vida das letras que é bem triste em toda a parte. (1)

Bulhão Pato (insp. Andy Warhol, Ten Lizes, 1963)

Este nome, incontestavelmente dos mais ilustres que sobredoiram as letras nacionais, está vinculado às saudosas reminiscências da minha meninice, e é-me portanto gratíssimo, ainda que outros motivos não houvesse, o rememora-lo mais uma e muitas vezes.

Raimundo António de Bulhão Pato,
Imagem: Hemeroteca Digital

De tarde, durante alguns dias, e com mais empenho que um espião de ruins tenções, seguia, à distancia, os passos do poeta; vi no Passeio de D. Fernando, já no sitio da Meia Laranja, ou por entre os renques de plátanos e na Cova de Viriato, os meus olhares cravavam-se no poeta rebuçando-me na capa académica, preguntava a mim mesmo por que milagre é que o génio pode incarnar-se num ser que veste e come e fala e passeia como toda a gente.

Um dia, — era eu um imberbe estudantinho de latim, em Viseu, e já colaborador de almanaques e publicações menos vistosas, com tendência, infelizmente não contrariada, para a suposta profissão de letras, — anunciou o Viriato, gazeta da localidade, a chegada do poeta da "Paquita" à capital da Beirã.

Como eu tivesse na memória e no coração a esplêndida poesia de Bulhão Pato, "A um retrato", e como eu não conhecesse, à excepção de Tomás Ribeiro, nenhum poeta em pessoa, a notícia alvoraçou-me naturalmente, e, em vez de solicitar ousadamente uma apresentação fácil, procurei vê-lo e contemplá-lo muitas vezes, sem que ele de mim soubesse nem me visse.

Bulhão Pato por Marciano Henriques da Silva
(museu Carlos Machado em Ponta Delgada).
Imagem: Alexandre Flores

Mas, atentando bem, reconhecia-se que a personalidade fìsica do poeta nãoo se confundia com qualquer personalidade. Àinda na mais familiar conversa com Paulo Melo Borges, — os jornalistas da terra, — o olhar, a voz de Bulhao Pato não eram a voz, o gesto, do comum dos mortais; havia ali, como diria Camões:

aquele não sei quê,
que aspira não sei como.

Estávamos ainda em pleno romantismo; e a formosa beladura negra de Bulhão Pato, agitada pelas brisas. Pavia, trazia-me a ideia a cabeleira de Childe-Harold aos ventos do Oceano. Na fronte desafogada e no sorriso discreto, na palavra cadenciada, meio solene e afectuosa, no gesto espontâneo e seguro, havia mui de meiguice e majestade, de soberania e de doçura que me subjugava e me atraia.

Bulhão Pato em Uma arribada em calma branca, Revista Serões,  1907.
Imagem: Hemeroteca Digital

Cheguei a possuir-me da tentação de lhe falar e pedi ao dr. Melo Borges.

— Traz versos para o jornal?— perguntou-me ele.
— Não trago nada; por outra, trago o desejo de que me apresente ao Bulhão Pato.
— Não é preciso; apresente-se você, que ele receberá admiravelmente.
— É preciso, porque eu não tenho coragem para tal. 
— Nesse caso, e como a apresentação só se justifica pelo parentesco literário, traga-me versos e vamos falar com ele. 
— Aceitei alvitre, e fui para casa fazer versos.

Impressionado por uns desgostos de criança, umas nènias, tornando para epigrafe estes versos do canto V da Paquita: 

"Não profiro o teu nome! Venturoso, 
Outro profere agora a teus ouvidos. 
Teu rosto se lhe volve carinhoso, 
Estremecem de amor os teus sentidos; 
Mas ah! que ao menos possam, na tua alma, 
Um eco despertar os meus gemidos!"

As minhas nênias começavam por este teor:

Chegou a hora da suprema angústia! 
Os dias, que a ventura 
vinha doirar com lúcidos fulgores, 
fugìram, como foge na espessura 
arroio que trepida entre verdores. 
Ao rosto magoado 
assoma agora a lágrima das agrimas...

E, num crescendo de tragédia, enchi de rimas uma folha de papel almaço (essa composição, com o título de Emfim, está arquivada na pág. 159 dos meus Quadros Cambiantes, 2.a edição, Coimbra, 1874). 

No dia seguinte, dizia-me Melo Borges: — Não posso apresenta-lo; o Bulhão Pato foi hoje para Farminhão; está em casa do Luis de Campos.

Não pude responder. Dir-se-ia que me abandonava alguém que me era querido, e, se o meu pobre coração falasse, teria dito talvez: — Nunca mais o tornarás a ver! Nessa noite, estudei mal o meu Virgílio e dormi pior. Passaram dias.

Uma tarde, vi sair da casa do Francisco Mendes aquele adorável e malogrado Luis de Campos, que antes de ser par do reino, era mais do que isso,— um coração de oiro e poeta de levantada inspirado. — O Bulhão Pato? Onde está o Bulhão Pato? — Perguntei-lhe eu. — Esteve em nossa casa; caçámos nos fraguedos da Ortigueira; e foi encantado com as nossas paisagens. Viu e falou-lhe?— Contei-lhe tudo, e pediu-me os versos, que deveriam ter sido pretexto da minha apresentação.

Logrei ao menos a satisfação de ver que esses versos de rapaz entusiasmaram a boa e expansiva alma de Luis de Campos, mormente a seguinte estrofe, que ele repetia com calor e na intensão mais cativante:

... esp'rança a esquiva dor levanta a fronte 
... cume de escabrosa, ingreme, rampa;
... sado, ardendo, o peito busca a fonte
... lhe mitigue o ardor, febre e cansado. 
... lisero. trepando, arrasta o passo, 
... até bater na cruz de húmida campa,
... para sempre o estreita em férreo abraço.

Pouca gente se lembrará de Luis de Campos, do parlamentar, do poeta da Granadina, de u ros ornamentos da minha Beira; e menos ain iam dele, se lhe não sobrevivessem irmàos di ) general Antonio Caropos e o par do reino Fra irros Coelho e Campos, que são um vivo reflexo do nobilíssimo carater. e poucos se lembrarão dele, quero eu alistar-me nos poucos, ligando o seu nome ao de Bulhão Pato le quiseram anos; e só em 1875, encontrando-me nas sessões da Academia das Sciências, é q ir a arobi^ào do imberbe estudantito de latim I poeta e sentindo a minha mão apertada pela mancha [...] não pode deixar de curvar-se, em respeitoso afecto, perante a figura moral e literária do glorioso poeta da Paquita.

Educado literariamente ao lado de Alexandre Herculano, na convivência dos mais rigidos carateres de urna sociedade em que eles não abundam, Bulhão Pato, no seu trato social, tomou por uma estrada, que pode ser a de um espartano imaculado, mas que não é o "Chemin des Anges", que leva as grandezas sociais, ás comodidades da vida, ao capitólio de duvidosas celebridades, e ao afecto convencional de camarilhas politicas ou literárias.

Raimundo Bulhão Pato, Miguel Angelo Lupi, c. 1880
Imagem: ComJeitoeArte

Nascido em Bilbau, parece que o céu das Vascongadas lhe instilou com o leite materno a independência e a nobre altivez que caraterizam os filhos daquela região. Bulhão Pato viu certamente, na sua infância, como as montanhas das Astúrias encaram majestosas e serenas o golfo que se lhes contorce aos pés, ameaçando-as inutilmente com uma submersão medonha em todos os lances da sua vida, através de tudo e de todos, Bulhão Pato manteve sempre aquela superior firmeza do homem justo, de quem falava o velho Horácio:

Se estalado cair o orbe,
ferem-no as ruinas impávido!

Contemporâneos dele, menos prestadios e mais audazes ou menos escrupulosos, ascenderam às culminâncias do poderio, do renome e da fortuna; e os que lhe não voltaram as costas, dispensaram-lhe simplesmente uma benevolência estéril, quando não uns ares de proteção... platónica. É a história de cada dia: de todos os que sobem, ha dois termos, pelo menos, que deveriam ficar atras de muitos que estão em baixo.

Mas Bulhão Pato, tendo alias a consciencia de si próprio, refreia os ímpetos da sua musa, causticamente satírica, e, poupando os que outrem castigaria, esquece-os generosamente, e chega a considerar-se feliz na sua pacifica tebaida, quer deleitando-se no trato da Arte e da natureza, quer galgando montes e gândaras em cata de perdizes e lavercas, quer dialogando com os pescadores da costa, que sobem o Monte de Caparica, para ver brancas do asceta, e ouvir-lhe a palavra amorosa e sã.

Bulhão Pato, Columbano Bordalo Pinheiro, 1883.
Imagem: MNAC

Do seu Monte de Caparica, olha ele para o mundo, como do alto da torre Eiffel se olhará abaixo que se vê formigando, a toda a hora, a água do rio que leva ao mar e ao esquecimento os ódios, as lutas, as grandezas e as misérias, que chamam e se embatem na prodigiosa cidade, que moeu o coração do mundo.

De longe em longe, Bulhão Pato deixa por ras seu deserto e passa rapidamente pela cidade  certificar bem de que a Providencia é sempre b( to que fogo do céu ainda não calcinou nem v em que se rebolca uma sociedade gangrenada. ta ao seu ermo, onde não ha infeções paludosa ranger de dentes do inferno bíblico.

Embora sem matrícula na irmandade dos felizes, talvez ele nos possa dizer onde está a felicidade!

Bulhão Pato in O António Maria, 13 de novembro de 1884.
Imagem: Hemeroteca Digital

Como se vê, não tanto a biografia nem a critica apenas uns traços, ao acaso, de um esboço m( e dos mais conhecidos, num pais em que teda t nhcce. esboço literário do poeta está feito, n de lodos os que sabem ver com olhos de ver, p nítido da longa e perdurável obra de Bulhão Pato as Memórias e Portugueses na India, e Sob os Ciprestes verso, Cantos e Sátiras, Paquita, Flores agì ou três volumes de versos, são títulos bastante sagrados de uma glória nacional.

Representante de uma época literária, em que o conhecimento da boa linguagem era a primeira condição para se ser escritor, e em que um poeta, para o ser, tinha que familiarizar-se com as regras da metrificação, Bulhão Pato nos seus trabalhos a mais rara correção de meios ao seu dispor o maior número das riquezas e silares ao idioma nacional.

A beleza e correção correspondem, nos escritos de Bulhão Pato a vigor da ideia, a espontaneidade e realismo dos conceitos, a envergadura de um pensamento elevado e nobre. E a tal ponto a forma se casa com a ideia, que está transluz nitidamente através daquela, corno o sangue vigoroso e quente de um organismo poderoso, através de uma epiderme delicada e sã.

Raimundo António de Bulhão Pato,
Imagem: Hemeroteca Digital

Por isso, os livros de Bulhão Pato poderão passar despercebidos ao noticiário indígena e aos amadores de literatura avariada ou de farófias literárias; mas, se alguma coisa do que temos e valemos tem de ficar depois de nós, sobrevivendo a uma sociedade enfermiça e caótica, esses livros ficarão a par daqueles documentos que hão de levar aos nossos actos as memórias mais puras de uma nacionalidade que foi. (2)

Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Hoje almoço em casa do Schwalbach com o Bulhão Pato, o Camara, João Chagas, Antonio Bandeira, etc.

O Bulhão Pato é um homensinho secco e resistente, de cabeleira e pera branca—miniatura do alentado Pato caçador que todos nós imaginamos ao ler-lhe algumas paginas. Parte no dia 20 para S. Miguel, de passeio... Quando morrer desaparece com elle toda uma epocha:

Bulhão Pato, Rafael Bordalo Pinheiro,
Album Glórias, 1902
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

— Meu rapaz podes ter lido todos os philosophos, que se não tiveres sentimento... Minha mulher, uma velhinha lá fica... Não vae comigo, porque recolhemos em casa uma pequena pobre, pobrissima, e queremos-lhe como se fosse nossa filha.

Retrato de Isabel Pato, José Campas, Caparica, 1908
Imagem: MJM

Sentamol-a á nossa meza... Bem sei que ha por ahi uns moços que dizem mal de mim. Não me importo. Quando vejo um rapaz de talento abro-lhe logo os braços.

Bulhão Pato e Moreira de Almeida com outros cavalheiros no Largo das Cortes.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

No fim do almoço, beija a mão ás senhoras. Conviveu com o Herculano, ouviu-lhe dizer:

— Isto dá vontade de morrer! "Que faria — accrescenta — se vivesse hoje!" — O Conservatorio lembra-lhe o Palmeirim — "que foi da minha creação" — É simpathico, vivo e cheira a outros tempos: conserva, como o linho guardado no fundo d'um armario, o perfume da maçã.

Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

E que contraste com os outros, com o Chagas, com o Schwalbach, sempre aflicto e sempre despreocupado, com o Antonio Bandeira, que, sob uma aparencia futil, é pratico como o diabo, e que conta que foi uma noite em Roma, com alguns portugueses, mulheres e guitarras, bater o fado para as ruinas do Colyseo!

Retrato de Bulhão Pato, Columbano Bordalo Pinheiro, 1908.
Imagem: MatrizNet

Depois, por blague, sustenta com o Chagas, que ninguem devia ter mais de duzentas e cincoenta grammas de principios.

Março 1904. (3)


(1) Bulhão Pato, Novellas, Lisboa, Typographia Universal, 1864
(2) Cândido de Figueiredo, Figuras literárias... , Lisboa, Viuva Tavares Cardoso, 1906
(3) Raul Brandão, Memórias

Leituras relacionadas:
Efemérides
Bulhão Pato na coleção da Hemeroteca de Lisboa

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