quinta-feira, 16 de agosto de 2018

O Casal da Encosta.

Sobre o viso do monte, e dominando o val,
Alveja o casalito, ao rez d'um pinheiral.
Quando coube em partilha ao dono que o cultiva,
Era tudo um sarçal; mas tinha agua nativa,
E terreno também de boa condição.

Vista de Caparica, tomada dos Capuchos.
Delcampe, Bosspostcard

O dono, inda rapaz, um fero latagão,
Deitou-se a trabalhar, e não largava a enxada
Desde que o, sol rompia á noite já cerrada.

Pouco depois casou. A sua companheira
Não lhe ficava atraz como mulher fragueira.

N'um casal solitário, embora o passaredo,
Logo pela manhã, chilreie no arvoredo,
É precisa outra voz, a voz duma creanca!

Nasceu-lhes uma filha. inda com mais pujança
O pae lidava só no seu torrão estreito:
A mãe trazia agora a creancita ao peito.

*
*     *

Tinha bom lançamento a nova bacellada —
Era o grande remédio! — o pão não deixa nada.
Mas pôr vinha de manta em chão barroso e duro,
E canceira cruel ! Co'a mira no futuro.
Com os olhos na filha, e trabalho inaudito,
Logrou tornar rendoso o breve casalito.

A Praia do Sol, Uma vista parcial, ed. Acção Bíblica/Casa da Bíblia, 108, década de 1930.
Delcampe

Foi crescendo a pequena. Houve uns annos seguidos 
De colheita feraz; os vinhos bem vendidos. 
O parco lavrador, fazendo economias, 
Sonhava no porvir mais descançados dias!

Sonhar, sonhar, sonhar!... Não ha senão sonhar 
Co'as coisas ideaes! — a peste é o despertar! — 
Sonha o bronze também, saudando os desposados: 
Acorda! e dobra... E dobra o dobre dos finados!

*
*     *

Veiu um dia nublado, e ao mesmo tempo quente.
Aquillo foi um raio! — O míldio de repente.
Como a chamma voraz, lavrou ! Tudo queimado ;
Parra e cachito em flor! Um anno desgraçado !

Costa da Caparica, Terras da Costa e Cabo Espichel, ed. Passaporte, 7, década de 1950.
Delcampe

Ao míldio succedeu, raivando, o phylloxera,
E arrazou-lhe o vinhedo, aquella besta fera!

Ha dois dias passei pelo Casal da Encosta.
A tarde era um encanto! O mar quedo na Costa!
Na soleira da porta, avisto o lavrador,
Sentado e taciturno. —  Então, ó Salvador?...
— Isto, agora, o remédio é deitar mão á enxada;
Mas o trabalho falta, e não fazemos nada!

Apertou a cabeça entre os punhos cerrados.
Co'as lagrimas no peito — irmãs dos desgraçados!

A um lado da lareira, apagada e sombria,
A mulher, a cantar, a filha adormecia!

Que singular poder tinha o mavioso canto...
Era alegre a canção, porém a voz um pranto!

Maio, 1896.


(1) Bulhão Pato, Livro do Monte, Lisboa, Typographia da Academia, 1896

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

O retiro de um velho romântico

Em dezembro de 1898, tendo sido nomeado medico do Partido Municipal de Almada, em Caparica, fui levado ao Monte por D. João da Camara e Lopes de Mendonça, que me apresentaram a Bulhão Pato. 

Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima.
Arquivo Municipal de Lisboa

O velho poeta vivia numa casita modesta, com um mobiliário simples, quasi pobre, em que uma antiga commoda marchetada e um toucador Império lembravam uma passada prosperidade familiar. 

O typo já eu o conhecia: era, no gesto, na dicção, na voz arrastada e grave com profundos finaes melodramáticos, o personagem que Eça de Queiroz compôs nos Maias, e digo compôs porque depois de conversado e convivido. Bulhão Pato afastava-se da celebre caricatura do celebre romance por uma vivacidade mental, uma penetração de espirito e até por uma observação aguda, por vezes resumidas em ditos scintillantes, alguns dos quaes ficaram na tradição como lapidares. 

Como era muito assomado de gênio, herança da impetuosidade romantica toda feita de gestos heroicos e braços cruzados de desafio, as suas inesperadas saídas tinham a fúria de estocadas súbitas que marcavam a presa com um sinete de galés. 

"Se o assanham, tem duas farpas na lingua", dizia Camillo. 

Pena é que esses botes sejam no maior numero dos casos do domínio das cryptineas, como alguns que lhe ouvi, preciosos pelo realismo desbragado mas perfeito, que chegavam pela sua eloquencia a dar relevo burlesco a certos personagens.

Animado desde a infancia, por isso vaidoso da aureola que lhe puseram desde muito moço, bonito rapaz como ainda se vê, na idade já madura, do bello retrato de Lupi, passou uma primavera na casa que Alexandre Herculano habitava na Ajuda, casa que ainda existe proximo do paço real.

Raimundo Bulhão Pato, Miguel Angelo Lupi, c. 1880
ComJeitoeArte

Entrando logo na intimidade e no culto do grande historiador, era então companheiro de Garrett, ali hospede também, que aggregou o jovem poeta á sua vida noctambula de mundanismo elegante, pelos aristocráticos salões de então. 

Regressavam á Ajuda fora de horas, e tão fora de horas que Herculano resolveu-se a mandar fazer uma chave da porta, que lhes entregou, para que o criado não ficasse até de madrugada á espera do autor illustre do Frei Luís de Sousa e do novel versejador do Se coras não conto. 

Passos Manuel, Almeida Garrett, Alexandre Herculano e José Estevão, por Columbano, 1921.
Sala dos Passos perdidos do Parlamento.
Wikipédia

E' que Herculano deitava-se invariavelmente ás onze horas ("deita-te ás onze, que não és de bronze", dizia), adormecia logo que punha a cabeça no travesseiro e era de um somno só. 

Esta existencia na Ajuda, que Pato recorda nas suas Memórias, apresentava outros aspectos menos austeros, de uma jovialidade expansiva, que tiravam ao tradicional Herculano de sobrancelha carregada essa mascara de lenda para lhe afivelar outra, de uma expansão alacre, quando ouvia aos rapazes certas historias que Bulhão Pato classificava de fescenninas. 

Assim, o autor da Historia de Portugal. que os retratos dão sempre de catadura severa, gostava immenso de anecdotas frescas, e quando alguém lhe dizia; 

— "o mestre já conhece esta"

— Herculano esfregava as mãos e dizia:

— "conte, conte, as experimentadas são as melhores."

Foi assim que certo dia, ouvindo José Estevão rematar a descripção de uma recita de gala em São Carlos com um commentario de desbragada representação rabelaisiana, caiu literalmente no chão ás gargalhadas. 

Bulhão Pato era um espirito profundamente liberal, patuléa na sua mocidade, e que um dia foi barbaramente aggredido por um grupo de cartistas no alto da calçada da Ajuda, com a aggravante de estar a namorar para uma sacada a filha do celebre ceramista Cifka.

— "Mas dias depois, no Martinho do gelo, vinguei-me. Moi-os!"

— Esta rapariga, Mary Cifka, era protestante, e Pato tinha de freqüentar a capella deste rito para a ver. 

Duma vez, estava um clergiman a fazer uma predica no meio de um grande silencio e entra no recinto um homem, typo de velho embarcadiço, olho azul, barba de passa-piolho, mas as bochechas muito escanhoadas. 

Olhou em todos os sentidos, fitou o pregador, escutou, e momentos depois toca no cotovelo de Bulhão Pato e diz-lhe em tom de poucos amigos: 

— "Você não me saberá dizer o que é que aquella besta está ali a ladrar ?"

— Pato saiu á pressa da igreja. Aos vinte annos, assignara o famoso manifesto contra a lei de imprensa de Costa Cabral, denominada já nesse tempo lei das rolhas. 

E quando, meio século depois, identico projecto foi apresentado ao Parlamento por João Franco, os liberaes foram-no buscar ao seu retiro do Monte para levar o protesto que foi por elle entregue ao presidente da Camara. 

Bulhão Pato por Alberto Carlos Lima.
Arquivo Municipal de Lisboa

Dava-se um facto singular: os três homens que restavam em 1907 tendo assignado o protesto contra a lei cabralina, haviam-no feito, por acaso, a seguir e juntos: 

— Barbosa du Bocage, Almeida e Albuquerque, Bulhão Pato.

E é igualmente singular que morressem pela ordem por que vinham no documento.

A casita de Caparica era um retiro hospitaleiro e conservava as tradições de fina recepção, através do seu ar modesto e simples, em que Pato se afizera a viver nas grandes casas dalgumas das velhas e históricas familias portuguesas, que elle freqüentara em quasi todas as nossas províncias, como viajante incansavel que foi, lamentando apenas não ter conhecido Trás-os-Montes. 

Bulhão Pato no Monte de Caparica.
RTP Arquivos

Dahi, as figuras das suas Memorias, pintadas com as côres optimistas dessa época romantica, com abundancia de sentimento e ausência de cuidados, aos últimos clarões do patrimonio das conquistas que fazia a vida fácil e o temperamento optimista.

A rudeza economica era um vocabulario ainda desconhecido. 

Por isso as mulheres eram sempre cheias de paixão, de sacrifício, e tinham longos cabellos que se desgrenhavam dramaticamente; os homens eram valentes, bons cavalheiros, e vestiam com elegancia.

Se Bulhão Pato, em vez de fazer Memórias de recorte literário, com preoccupações acadêmicas, conta o que viu, sem diversões de estilo, na sua realidade brutal, teriamos alguns instantâneos illuminados ás vezes por uma luz de tragédia.

— "Estava eu, contava, com alguns rapazes á porta do Marrare do polimento (era no Chiado e chamavam-lhe assim para o distinguirem do Marrare das sete portas, na Baixa), todos sem vintém e revolvendo a imaginação para ver como achar uma solução á nossa penúria. 

Marrare de Polimento, gravura in A Semana, n.° 4, 1851.
Hemeroteca Digital

Nisto vemos descer o Chiado, pelo passeio fronteiro,.um sujeito nosso conhecido, amante e souteneur de uma senhora da sociedade. 

Ora acontecia que o filho dessa senhora era um dos nossos companheiros de miséria, o qual, destacando-se do grupo, atravessa a rua e dirige-se ao tal cavalheiro e segreda-lhe qualquer coisa. 

Este sorri, mette a mão no bolso e dá-lhe uma moeda. O moço regressa, sorridente também, e clama para os companheiros mostrando uma libra em oiro: 

— "O bom filho a casa torna..."

— Bulhão Pato, depois de me contar esta scena, travou-me do pulso, gesto muito seu, e dizime com os olhos brilhantes:

— "Você já o viu melhor em Shakespeare?"

Doutra vez contou-me que uma senhora muito da alta sociedade estava uma noite a passar por cima de um muro baixo, em Algés, uma cadeira para o amante poder passar. 

Nisto sente-se atrás agarrada pelos cabellos; era o marido. Surprehendida e attonita, grita num desespero: 

— "Traição!" 

— E' demoniaco!

Quando eu chegava a casa depois do giro clinico, era freqüente encontrar um bilhete de Bulhão Pato com estas concisas palavras: 

— "Venha! Temos pescada do alto."

— Porque a sua mesa era prova das suas tradições de cozinheiro insigne, gabando-se o poeta de ter mais orgulho com o êxito de um bom prato do que com a fama de um bom alexandrino; 

Eram celebres os seus jantares de caça, as perdizes, as gallinhas, as narcejas, e por esse tempo havia em Caparica um vinho branco que tinhá um gosto de pederneira, vinho já cantado por Gil Vicente e Camões:

Ceia não a papareis,
Comtudo por que não minta,
Em vez de ceia tereis,
Não Caparica mas tinta, 

E mil coisas que papeis.

Pato gostava que lhe gabassem as vitualhas, e quando os convivas mastigavam em silencio, não deixava de observar: 

— "Vocês comem, mas nem palavra." 

— Eu um dia respondi: 

— "A commoção embarga-me a voz!" 

— ao que outro replicou:

— "As grandes alegrias, como as grandes dores, são mudas...

Pato ria, porque gostava de ver os rapazes á sua mesa, ali indo D. João da Camara, o jornalista Urbano de Castro, mestre em trocadilhos, e eu lá levei Alexandre Braga, de cujo pae o poeta fôra amigo, Augusto Gil [v. Uma tarde no Monte], Manuel Monteiro.

Torre de Caparica, casa onde residiu Bulhão Pato, construção de finais do século XIX.

Um dia fui encontrá-lo com uma alegria infantil. Tinha quasi oitenta annos e ao ver-me gritou abrindo os braços: 

"Cacei hoje uma gallinhola!"

— E presidiu com carinho ao seu amanho, não deixando de preparar o raro acepipe da torrada.

Bulhão Pato viveu numa época má, na exhaustão deliquescente do romantismo, tendo já fechado o cyclo da sua carreira literaria quando se rasgavam os esplendorosos horizontes da poesia nova. 

Fez-se o paladino dos velhos moldes, manteve-se até tarde no subjectivismo sentimental que continuava a sentir que "o único rumor que se ouvia no Universo era o rumor das saias de Elvira".

Vista da Amora, Tomás da Anunciação, 1852
Imagem: MNAC (museu do Chiado)

Tentou libertar-se desse passado no Livro do Monte, de um bucolismo mais natural, onde se sentem perfumes junqueirianos, e não quis deixar de escrever uma derradeira satira á sociedade que se enxovalhara, com as quintilhas, de bella perfeição plastica, da "Dança Judenga".

Octogenário, lia Zola, que eu lhe levava, e proclamava-o, intelligentemente, um grande romântico.

Um dia contou-me uma scena melancólica com o nosso paisagista Annunciação.

Era no Aterro, e viu o velho pintor a chorar ante o pôr do sol, pouco depois de chegar de Paris, onde contemplara os novos processos da pintura e o golfão de naturalismo que inundava todas as paletas.

No cais do Tejo, Alfredo Keil, 1881.
Imagem: MNAC (museu do Chiado)

Bulhão Pato talvez sentisse analoga melancolia ante a sua arte que via aceite apenas com complacência. Mas não o confessou, porque, muito orgulhoso, o velho romântico nunca deixou de arvorar o panache. (1)

João Barreira (1)


(1) João Barreira, O retiro de um velho romântico

Alguns artigos relacionados:
https://mar-da-costa.blogspot.com/search?q=fim+do+romantismo

Leitura relacionada:
Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896