Caparica, Pera, casa de campo, anteriormente pertencente ao Marquês de Valada, c. 1900. Internet Archive |
De vez em onde, aos compassos do mar na costa e do vento nas ramadas seculares dos poucos ulmeiros que escaparam á fúria dendroclasta dos nossos homens do campo, reune-se o chalrar alegre da mocidade escolhida, mocidade de educação e talento, que visita estes logares para se desenfadar do bulicio dos arruamentos da cidade na paz alpestre e nos travos salubres de graciosas paizagens.
Vista de Caparica, tomada dos Capuchos, anterior aos trabalhos de construção do IC 20. Delcampe, Bosspostcard |
O anno passado um grupo de rapazes veiu jantar a casa do meu bom amigo e vizinho de há quinze annos, Manuel Luiz Fernandes, actual presidente da camara de Almada; rapazes distinctos nas sciencias, na arte e nas lettras.
Caparica, Pera, Quinta dos Ingleses, vista sul, c. 1900. Internet Archive |
O melhor d'essas horas seriam á mesa, posta no eirado que avança ao rez da casa, eirado com os seus alegretes floridos e arvorêtas viçosas, d'onde os olhos se desafogam correndo desde o Castello de Palmella até Nossa Senhora do Cabo.
Cezimbra — Cabo Espichel e Ponta do Cavallo, cf.. ed. Martins/Martins & Silva, 606, década de 1900. Delcampe |
Quadro enorme que abraça todo o cimo ondulado da serra da Arrábida; pomares, vinhedos, vastissimos tratos de pinheiral, que se perdem nos longes das planuras, que vão morrer nas faldas da montanha divisória do Sado e Tejo.
Costa da Caparica, Terras da Costa e Cabo Espichel, ed. Passaporte, 7, década de 1950. Delcampe |
O esmalte dos casaes, aldeotas, logarejos, moinhos de vento, campeando d'entre macissos de verdura; a ampla bahia do Alfeite, tudo, ou no referver do dia ou no descahir da tarde, com as frechas horizontaes do sol ponente, tem variedade, expressão e viveza como em poucas partes se encontram.
Historical military picturesque..., George Landmann, Estrada Palmela Moita. |
Sentámo-nos á mesa do nosso hospede. Entre os convivas não faltava um orador de temperamento, orador no foro, e, quando venha o lance, tribuno ao ar livre, nos ímpetos mysteriosos do improviso, sublevando os ânimos, como o vento, aos desgarrões, levanta as ondas do mar.
Filho de um jurisconsulto primaz, que na mocidade foi saudado poeta por Almeida Garrett, sobrinho de um dos maiores poetas que teve o século passado em Portugal, — cae-me o seu nome da penna, nome que anda na bôcca e na admiração de todos: Alexandre Braga.
A tarde era de verão, serena e calmosa, mas arejada por um mareiro do oceano, salgadio e fresco. As copas frias do espadeiro, da talia [ou douradinha], do boal, vinhos d'este torrão celebrados já por Gil Vicente e Camões [cf. o Pranto da Maria Parda de Gil Vicente; o Banquete dado na Índia de Luís de Camões; a Comedia Ulysippo de Jorge Ferreira de Vasconcelos...], accendiam até a alma de um velho que lá estava, quanto mais o coração dos rapazes!
Caparica, Pera, Quinta dos Ingleses, c. 1900. Internet Archive |
Foi n'essa tarde que tive ensejo de apertar pela primeira vez a mão de Augusto Gil. Da sua mediana estatura, do seu concentramento physionomico, desmentido pelo faiscar dos olhos garços, olhos entre sentimentaes e irónicos; do sorriso timido com um pico mordaz, de toda a sua individualidade, emfim, — porque elle tem a rara fortuna de ser individual — me estava saltando o poeta sincero e o cancionista encantador.
Caparica, Pera, Quinta dos Ingleses, c. 1900. Internet Archive |
Poucos, bem poucos, tenho conhecido que façam menos conta da gloria que lhe podia dar o talento, talento real, que lhe vem aos borbotões do intimo, sem andar atraz d'elle remodelando metros na cadencia estridula e monótona do martello de um ferrador que bate canello n'uma incude.
Caparica, Pera, Quinta dos Ingleses, c. 1900. Internet Archive |
Não é nem romântico, nem parnasiano, nem symbolista, é elle — o Augusto Gil — nome que é um gracioso rithmo.
Devera já ter volumes se durante annos, nas voltas do Mondego, pelos hortos onde gorgeiam os pássaros, e nas fontes onde cantam as cachopas, não deixasse dezenas de estancias, que amanhã serão margaridas multicores dos campos e conchas lapidadas pelos mares no cancioneiro nacional. Por quê refoge da luz da grande publicidade este poeta tão vivo, tão picante e tão de lei?!
Precisamos recorrer aos seus companheiros de Coimbra para lhe apanharmos a flor das composições que elle esqueceu ha muito. Só outros — Deus me perdoe — são de uma abundância diabética!
Como as gotas crystallinas de nascente pura, caem-lhe da bôcca os versos que não escreve, e que lá vão nos assomos da lua no crescente, n'um sopro da aragem, no fuzilar de uma estrella na tremulina das aguas, para onde nasceram, para o sorriso de uns lábios vermelhos ou para um suspiro do peito alvoroçado de uma rapariga.
Parece que certas organisações teem o que quer que seja do somnambulo. Correm á beira dos precipicios sem os ver, jogam-se aos matagaes espinhosos e não os sentem; talvez nas regiões dos sonhos aspirem o aroma das rosas ideaes; mas, quando acordam para as misérias humanas, vêem com as carnes rasgadas e sangrentas dos pedregaes da jornada.
Oiçam-lhe os versos, duas quadras apenas:
Teus olhos, contas escuras,
São duas ave-marias
D'um rosário de amarguras,
Que eu rezo todos os dias.
Amas a Nosso Senhor,
Que morreu por toda a gente,
E a mim não me tens amor
Que morro por ti somente!
Em Coimbra, a vizinha da casa fronteira, a dos olhos negros, que passava o dia costurando ao pé da janella, entre um mangericão copado e um craveiro florido, essa é que o ia desgraçando.
O craveiro da janela, Augusto Gil, Aillaud e Bertrand, 1920. Livraria Alfarrabista |
Os nossos convivas partiram para Lisboa. A tarde esmorecia. O sol baqueava nas ondas, deixando o largo crepúsculo dos dias estivaes. A lua, n'um período delicioso, surgia do nascente, rubra como a aurora. Depois, com a noite, alteou no céo branca e beijou a terra.
Rio Tejo e Torre de Belém (efeito de luar). |
Que bem cahiria, n'esse momento, um estudante de Coimbra, viola ao peito, cantando n'uma voz afinada e masculina a quadra do seu camarada Augusto Gil:
Teus olhos, contas escuras,
São duas ave-marias
D'um rosário de amarguras,
Que eu rezo todos oa dias.
Monte, 1904. (1)
(1) Bulhão Pato, Memórias, Vol. III, Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1907
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