sexta-feira, 16 de junho de 2017

Bulhão Pato, Madrugadas de caça, por Zacharias d'Aça (III)

O dia oito de setembro era o escolhido por Bulhão Pato para a abertura das suas caçadas do inverno no sul do Tejo, e o sitio preferido o Juncal da Trafaria.

Vista da Trafaria — Saída da barca Martinho de Mello, João Pedroso, gravura
Imagem: Archivo Pittoresco, vol. X, 1867

A meia hora de caminho de Lisboa, e com uma travessia encantadora nesses formosos dias do outono, tínhamos alli, por assim dizer, a nossa coutada — nossa e de poucos mais, felizmente. Os outros frequentadores eram os ranchos de José Maria Villar, e de João Lourenço, ambos creados da Casa Real, e os srs. Gourlades, da Junqueira.

Os caçadores de Lisboa, a uns desviava-os de lá o terem de ir em barco de vela, e a outros levava-os para os pinhaes de Corroios a falta de bons cães ou a ambição das gallinholas. Assim divertidos de concorrerem com- nosco, era raro encontrarmos competidores.

Corroios, Manuel Henrique Pinto, finais do século XIX.

Quando, pelas cinco da manhã, eu chegava, equipado e armado, á casa do poeta, que morava então — 1867 — na rua das Praças, á Lapa, já lá estavam, sentados á porta, dois vultos, que de longe e pelo escuro eu apenas distinguia: — eram o Lourenço da Pinha, o nosso barqueiro de Belém, e um dos filhos.

O bairro jazia, as ruas eram ermas, mas lá dentro tudo estava a pé. A morada do poeta, que ainda hoje conserva o mesmo aspecto, é sobre si e tem a apparencia d'um cottagee — rez-do-chão, primeiro andar, e, sobre este, outro pavimento mais baixo, com quatro janellas, d'onde se desfructa, por cima dos telhados fronteiros, o Tejo — vista que tanto realça e alegra a casaria destes bairros da Lapa e de Buenos Ayres.

Vista do Tejo e da Torre de Belém tomada da legação britânica, George Lennard Lewis, 1880.
Imagem: Government Art Collection

O Faliéro e a Medóra, já despertos, latiam no canil, ruidosos e contentes; na cozinha o José, robusto e sympathico rapaz, honra da raça d'além Minho, com as suas botas d'agua, a camisola de flanella de listas, a sua cara sempre alegre, e a Maria, a creada, davam a ultima demão nos aprestos do almoço e no arranjo das bagagens, porque, ás vezes, estas excursões duravam dias. O poeta, installado no seu quartel general venatorio, em casa da sr.a Maria do Adrião, na Costa, havendo caça e dias amenos, deixava-se lá ficar, até que algum sudoeste bravio, dos que costumam açoitar aquella planície d'areia, o forçava a levantar vôo e recolher aos abrigos da cidade.

A primeira pessoa que eu via áquella hora matinal, e que, no alto da escada, me dava os bons dias, era sua irmã, a sr.a D. Maria da Piedade, com o seu ar senhoril, e a sua voz alta e vibrante. Muito parecida nas feições com elle, não o era menos no fino espirito e na amenidade do trato. Mais velha do que Raymundo foi, por assim dizer, sua segunda mãe. Acompanhou-o na vida, e tudo com elle participou — a gloria e a adversidade. Tinha um animo varonil a illustre senhora: aquelles primeiros annos da sua mocidade, passados em Hespanha, no meio das guerras civis, deram-lhe a tempera. Era uma alma forte, e por isso mesmo egual, serena e resignada, na boa e na má fortuna.

Estes Bulhões são de bom. e antigo sangue. Manuel de Bulhão foi um homem em toda a accepção da palavra — honrado, forte, e valente.

Transposta esta primeira estação, em cima estava o poeta, já a pé, vestindo-se, espreitando pelas janellas, voltadas ao sul, o cariz do céu, e o rumo do vento, e fazendo o prognostico da caçada.

Alli era o seu miradouro, o seu gabinete de trabalho; alli recebia os seus intimos, atli compunha os seus poemas. Aposento modesto e simples, que tinha nas paredes, por único ornato, uma cercadura feita com os bellos retratos dos contemporâneos illustres, gravados por Souza, para a "Revista Contemporânea" [v. Joaquim Pedro de Souza (1818-1878), Retratos de portuguezes do século XIX].

Ia eu subindo a pequena escada de dois lanços, e já o ouvia falar:
— És tu, Zacharias?
E logo, em seguida, quando eu abria a porta:
— Temos caçada. O dia esplendido! Ja la está o Lourenço?

E depois, sempre poeta, trocadas as primeiras palavras, dizia, com a sua máscula e bella voz. os conhecidos versos da Chácara da Nazareth:

Manhãs frescas de setembro, 
quando orvalho está a cair: 
frescas manhãs de setembro, 
quem nas poderá dormir!

E saltava para estes — tão vivos, que todos os dirião dum caçador!

Voam corseis e sabujos!
Apupa, apupa, clarim! 
Que esta sina de fragueiros 
não tem descanço, nem fim!

E como commentario, a fechar, dizia:
— Deixa-os lá. É um grande poeta.

A "toilette" estava terminada. Afivellado o cinto, mettidas nelle as luvas de camurça, dando um relance dolhos em volta do quarto, como a despedir-se:
— Agora vamos ao café, que sem esse viatico não ficamos amanhados. Vae também uma golada de "cognac"? A manhã está fria.
E, pondo-me a mão no hombro:
— Rapaz, rapaz, dizia-me elle — estás nos teus vinte annos!...

Lisbon from the Rua de San Miguel, Drawn by Lt. Col. Batty, 1830.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Datavam de pouco as nossas relações; eu tinha então vinte e sete annos cumpridos, elle devia ter trinta e seis. Os meus vinte já lá ficavam para traz na estrada, mas eu, felizmente, sempre fui mais novo que a minha edade. E ainda hoje tenho esse defeito. Surprehendo, ás vezes, em mim ingenuidades infantis — auroras, esplendores, e soes poentes de dias, que ha muito passaram... Na minha memoria evoco esses phantasmas, que me apparecem vivos, e travo dialogo com elles... E tudo isto é "pela virtude do muito imaginar". A phantasia, a memoria viva, fazem-nos o milagre destas resurreições!

Tomado o viatico, accesos os cigarros Pato prefere a cigarrilla ao havano — despediamo-nos de D. Maria da Piedade, e partíamos. Ella ficava — algumas vezes também nos acompanhou nestas excursões — mas nós tínhamos a certeza de que o seu pensamento não nos desamparava, porque no seu espirito, como no de todos, á idéa da caça andava associada a do perigo.

Desciamos a rua de S. Domingos e chegávamos á rocha do Conde d'Obidos, atravessando as ruas, ainda desertas. Os Lourenços e o José tinham marchado na frente com as bagagens.

Vista de Lisboa no Lado Oeste, Arte Gravura João Pedroso, 1865
Imagem: Hemeroteca Digital

Assim abriam para nós esses dias — jamais esquecidos. Alvoradas alegres de rosado oriente e céu d'anil, ou manhãs pardacentas, húmidas e tristes, encontravam em nós o mesmo animo. Nos dias bonitos tínhamos a crença; nos feios era a esperança, e em todos a grande poesia da mocidade...

O tempo voou, mas, todos os annos, nos primeiros dias de setembro, nas lindas madrugadas do outono, serenas e cheias de luz, lembro-me com saudade de quando, ao entrar no quarto do poeta, eu era saudado com os versos da caçada do Alcaide-Mór de Affonso Henriques:

Manhãs frescas de setembro, 
quando orvalho está a cair;

V

A rocha do Conde de Óbidos — João Lourenço

Bulhão Pato no Juncal

Aquella rocha do Conde d'Obidos — assim chamada por ser alli junto o solar, o palácio dos illustres fidalgos d'este titulo — vemol-a hoje mascarada com parapeitos, varandas e escadas, e coroada, no alto, com uma pequena praça ajardinada, donde se gosa a linda vista do nosso rio. "Quantum mutata ab illo"! Era então toda egual a uma nesga, que ainda lá se conserva — uma encosta pedregosa, adusta pelo sol, batida dos ventos, escalvada pelas chuvas, coberta aqui e alli por uma vegetação rachitica e parda. Um trecho da natureza selvagem., uma verdadeira arriba do mar!

Cais de Santos, vista da Rocha do Conde de Óbidos, Alfredo Keil, 1873.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Descia-se para o rio por um longo corredor, entre dois muros — um do palácio, e outro da cerca do convento das Albertas — e a escada que conduzia ao pequenino caes [cais de José António Pereira], lá em baixo, era um verdadeiro quebra-costas — tortuosa, os degraus irregulares, abertos uns na rocha, outros na terra. Do alto da rampa, verdadeiro precipicio. vi eu, um dia, sendo muito novo, cair um marinheiro inglez ébrio. Um horror!

Parece impossivel que aquillo fosse, até aos nossos dias, um dos caes de desembarque d'esta bella cidade! Era ahi que embarcávamos.

Arrumadas as malas, seguros os cães, os remos caíam na agua.

— Jesus! dizia Lourenço.
— Maria! segundava o filho.

E o catraio seguia, de voga arrancada, rio abaixo, direito á Trafaria, quando não a Belém, onde iamos buscar o João Lourenço — o João da Burra, como lhe chamavam desde pequenino, duma burra com que da sua villa nos arredores — Cintra, creio eu — costumava elle vir á cidade.

Lisboa, Sol Nascente, Ivan Aivazovsky, 1860.
Imagem: WikiArt

Caçador de El-Rei D. Luiz, morava em Belém, e, quando não tinha serviço no Paço, acompanhava-nos nestas digressões ao Juncal.

De boa estatura, e robusto, o olho pequeno e vivo, a tez rosada, as feições regulares, o nariz aquilino, João parecia um abbade minhoto, dos que tem bons presuntos na despensa e bom vinho na adega.

Boa espingarda, bom garfo, bom copo, bom rosto, e, portanto, bom companheiro, era, além de tudo isto,.tino como um coral. Rapaz, tilho do povo, lizcra-sc homem na cidade ; tinha, o que é raro nos homens da sua classe e profissão, aprendido a sciencia difficil de se manter sempre no seu logar. mas quando queria obsequiar alguém, fazia-o com a gentileza d'um fidalgo.

Um exemplo.

Homem videiro, abrira elle em Belém, defronte dos Jeronymos, um restaurante, a que poz o nome de Caçador. Um dia, em que eu fui visitar a egreja, demorei-me mais, e eram horas de jantar, quando de lá saí. A minha casa ficava longe, dirigi-me ao Caçador. Prevenindo Já a hypothese de lá estar o dono, entrei pela porta do lado. O creado que veiu receber as minhas ordens, parece que me conhecia, porque elle a voltar costas, e João a apparecer com o seu rosto prazenteiro. Eu disse-lhe o que queria, elle sentou-se no logar fronteiro, e travámos a conversa, é claro, sobre a matéria vasta — a caça, e artes e historias correlativas.

Quando eu ia no fim do primeiro prato, João, tomando os ventos, disse-me:
— Está-me cheirando bem. Parece-me que lhe faço companhia, se me dá licença.
— Ora essa. O João está na sua casa.

E jantámos os dois, entremeiando o paio com ervilhas, e as eirozes grelhadas, com historias, algumas mais salgadas do que os guisados, que íamos saboreando.

Quando accendemos os charutos, e eu pedi a conta, elle fez um signal ao servo, que desappareceu, e logo voltando-se para mim:
— V. Ex.a deu-me a honra de jantar comigo na minha casa, e eu estou pago. Não deve nada.

É claro que não insisti. Se teimasse, eu é que era malcreado.

Tempos antes fizera-lhe uma pequenina fineza, e elle quiz-me mostrar que não a havia esquecido. Podia contar d'elle outras historias, mas esta basta.

Torre de Belém, Frank Dillon, 1850.
Imagem: BBC Your Paintings

João Lourenço trazia comsigo, para as nossas caçadas, os seus cães, na companhia dos quaes vinham alguns, que pertenciam á Casa Real, e que, seja dito de passagem, não envergonhavam os nossos. E não trazia só isso; muitas vezes vestia também o seu pittoresco trajo do Real serviço, e com elle vinham outros caçadores da Casa, bem armados, e bons atiradores.

Quem visse então no Juncal Bulhão Pato, e os seus amigos, com aquella comitiva de caçadores, perdigueiros, e batedores do sitio, que se nos aggregavam, e attentasse na chapa, com as armas reaes de prata reluzente, que ornava o chapéu á "Mosqueteira" do nosso "moço do monte", cuidaria que éramos alguns príncipes saciados de caça, que, para variar o "menu" cynegetico de Mafra e Villa Viçosa, iam, pedestre e burguezmente, atirar alli ás codornizes e narcejas.

Caçadores reaes e verdadeiros éramos nós, e príncipes também ás vezes iam dois: um era Lopes Cabral — que nós eleváramos a essa dignidade; o outro tinha-se elevado a si próprio, era Bulhão Pato — mas o seu principado era, e é, na Republica das Lettras. Tem menos fausto, menos representação, e incomparavelmente menos rendimentos, mas tem sobre os outros uma vantagem, uma absoluta superioridade: os seus súbditos podem não lhe tirar o chapéu, podem discutil-o, podem não o ler — que é a máxima affronta — mas o que não podem é obrigal-o a abdicar!

Bulhão Pato em Uma arribada em calma branca, Revista Serões,  1907.
Imagem: Hemeroteca Digital

As coroas dos poetas estão acima das revoluções. (1)


(1) Zacharias d'Aça, O Tiro Civil n.° 136, sexta-feira 15 de abril de 1898


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Tema: Bulhão Pato

Informação relacionada:
Bulhão Pato, Zacharias d'Aça, O Occidente n.° 717, 30 de novembro de 1898
O Occidente n.° 434, 11 de janeiro de 1891

Bulhão Pato, Paquita, Typographia Franco-Portugueza, 1866Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896
Francisco Zacharias d'Aça, Caçadas portuguezas: paizagens, figuras do campo,
Lisboa, Secção Editorial da Companhia Nacional Editora, 1898

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