quinta-feira, 15 de junho de 2017

Bulhão Pato, Poeta — Pintor do mar — Sportsman, por Zacharias d'Aça (II)

Esbocemos agora, a traço largo, a physionomia, a figura do poeta no campo, n'esse meio, tão outro e diverso das salas e academias.

Caparica. Vista da enseada da paulina e do Lazareto instalado na TorreVelha.
Torre Velha, Lisbonne, François d'Orléans, prince de Joinville, 1842.
Imagem: Sotheby's

No seu trajo de caçador, rodeado dos companheiros — grupo sempre pittoresco, pela variedade dos typos, e a que dão ainda mais vida e realce os cães, os perdigueiros, com a desenvoltura dos seus movimentos — Bulhão Pato lembra-nos um desses fidalgos d'outro tempo, poetas cortesãos e fragueiros, tão conhecidos nos saraus do paço da Alcáçova, como nas batidas e monterias de Salvaterra e d' Almeirim ; aquelles que corriam com egual ardor as aventuras do amor e as da guerra, affrontando-lhes os perigos com a mesma galhardia.

Raimundo Bulhão Pato, Miguel Angelo Lupi, c. 1880
Imagem: ComJeitoeArte

Individualidade como a sua, tão accentuada, tão cheia de caracter, não conheço outra entre os nossos poetas contemporâneos: é poeta em toda a parte, a toda a hora, com toda a gente — na rua, no café, á mesa d'um hotel como no lar domestico, no salão das duquezas como nas salas da Academia! Em Veneza, um dia, entrando num dos hotéis mais elegantes, para jantar, o creado — um original, que sabia o Dante de cór — a poucas palavras trocadas, encarando com o nosso amigo, disse-Ihe, interrogando e affirmando ao mesmo tempo com o gesto:

— Voi siete poeta?...

E d'ahi a pouco os dois tinham travado dialogo sobre litteratura.

Nasce-se caçador, como se nasce poeta, como se nasce orador. Bulhão Pato é tudo isto, de nação, como diz ainda o nosso povo dos campos. Ser caçador é nelle quasi um talento, uma das formas do seu ser.

Atirar ás codornizes nos trigaes, perseguir as perdizes nas vinhas, chofrar as narcejas nos alagamentos, descobrir as gallinholas nas estevas, nos pinhaes, esperar a passagem das rolas e dos pombos, carregar uma lebre na campina, correr um veado, emprazar um javali, fazel-o sair da "mancha", esperal-o de cara numa "porta", é um prazer, para os que procuram essas sensações fora da vida banal das cidades, nos campos, nas florestas, nos mattos ermos e selvagens. E é mais fácil sentil-o, do que explical-o aos que, extranhando-o, por isso mesmo não o podem comprehender. Tanto valeria explicar a um surdo, ou a um cego, as bellezas da musica e da paizagem.

Haurindo o ar fresco e embalsamado dos campos; dilatando a vista pelas verdes e extensas pradarias, ondulantes como o mar, pelos doirados vinhedos, pelos cimos quebrados das serras, entra-se em mais intima communhão com a natureza.

Não são ruas alinhadas e poeirentas, edifícios rectangulares, sombras geométricas no chão, nem céu recortado, aqui e alli, pelos telhados da casaria urbana. Terra, luz e ar, estão alli a descoberto, não nol-as encobre a mão do homem. O sol irradia esplendido no limpo azul do tirmamento, a aragem é pura, e a própria terra envia-nos o perfume das ervas rasteiras e das florinhas agrestes, que pisamos.

Paisagens de caça:
Raimundo António de Bulhão Pato, 1829-1912;
sel. textos, org. e notas Nuno Sebastião.
cf. Bulhão Pato, Paizagens, Lisboa, Rolland E Semiond, 1871;

capa de Raphael Bordallo Pinheiro.
Imagem: Ribeira Seca

Neste contacto com a terra o homem rejuvenesce, e á serenidade dos campos responde em nós uma alegria, que não é a que rompe d' entre o convivio das festas ruidosas, mas outra, mais funda, de que depois nos lembramos, e nos apparece, no entardecer da vida, com o ineffavel encanto da saudade.

E no meio d'esse scenario rústico aquelle poeta, que todos — os que sentimos e amamos a natureza, trazemos dentro de nós, occulto e tácito, acorda, e nós vamos sèguindo-o, e a phantasia vae com elle a voejar, a voejar...

Nascido em Bilbau e creado em Deusto, aldeia próxima, diz o poeta, nas suas, "Memorias" "que era a peste dos ninhos". Alli perto estavam as Encartaciones, onde nasceu António de Trueba, o popularissimo auctor do "Libro de los cantares", e por ventura então outro inimigo das avesinhas. Já La Fontaine o disse: "Cet âge est sans pitié", e ellas poderão dizer que as outras edades não são melhores.

Os cantos da infância ouviu-os elle truncados pelo estrondear da fuzilaria: era a caça ao homem — as embuscadas e recontros de "carlistas" e de "christinos". Scenas dramáticas, tragedias, como a da historia d'aquella Maria Salomé, que elles fuzilaram! Valente mulher, destemido e dedicado coração! Era a ama do poeta.

Aquellas paginas, que elle me dedicou — em termos para mim muito honrosos, e que eu aqui, em publico, lhe agradeço — aquelle nefando assassinio, não o releio sem um estremeção de horror!

Reconhece-se no homem feito o forte leite que bebeu, e as primeiras auras que respirou. Bulhão Pato tem, com effeito, na sua accentuada physionomia, na entoação alta e viril da voz, nos ademanes, no porte elegante e erecto, apesar dos annos, algo, se não muito, da aristocrática altivez dos habitantes d"aquelle rincão da Hespanha, que é ainda hoje — em tempos de republicas — o baluarte, o castello roqueiro, onde se abrigam as velhas tradições e crenças peninsulares.

Não foi, porém, nos campos de Deusto que elle aprendeu a manejar a espingarda: saía apenas da infância, quando Manuel de Bulhão, seu pae, voltou com a familia para Portugal.

Abundavam então amadores illustres nas classes mais elevadas da sociedade portugueza. Na aristocracia, na alta magistratura, entre os grandes proprietários, Redinhas, Atalaias, Arcos, Minas, Bacellar, Nizas, António Borges, de S. Miguel, Mira, Vaz Preto, Laborim, Vimioso, tão firme na sella como na pontaria — e é o caso de se dizer mais uma vez — j'en passe, et des meilleurs — todos notáveis, uns como atiradores, outros como cavalleiros, mantinham alto o pendão da grande irmandade de Santo Huberto; sobresaindo-lhes, pelo fausto e pela magnificencia das suas caçadas, o fidalgo do Farrobo, em tudo grande — grande senhor e grande artista.

Havia n'esse tempo mais riqueza nos palácios — e mais caça nos campos.

Ficaram na memoria dos caçadores as famosas espingardas inglezas de Manton, de Purdey, que se pagavam de vinte a quarenta moedas; e os que viram, nesses dias afortunados, trabalhar os cães das raças do Marquez das Minas, do conde da Atalaia e do visconde da Praia, recordam-se ainda hoje com saudade da belleza de formas, da elegância e da firmeza desses magníficos animaes. Raças hoje extinctas e não substituídas. Os do visconde da Praia comprou-os elle em Paris, numa exposição, e deu, se não me engano, cincoenta libras pelo casal. E, se me engano no preço, é para menos.

Não são menos famosas as caçadas principescas nas terras do Farrobo.

Foi com estes amadores — em tudo mestres — nesta grande arte da caça, os "curiosos", os "amadores", é que são os mestres, e só elles o podem ser, tão complexa ella é, porque, sendo arte, é feita de sciencias — foi, digo, com taes mestres que o joven poeta, tão precoce nestes campos como no das lettras, fez as suas primeiras armas.

Quando eu me alistei na venatoria confraria, foi Bulhão Pato meu padrinho, e na companhia d'elle perpetrei os meus primeiros crimes. Que Santo Huberto m'os perdoe. A minha primeira victima foi um maçarico. íamos no catraio do Lourenço para o Juncal da Trafaria, que então — "hélas!" — ainda tinha codornizes, lebres e narcejas. Foi ha trinta annos, e parece-me que o estou vendo, ao pernalto, cair na agua!

Trafaria, Vista dos Moinhos, ed. Manuel Henriques, década de 1900.
Imagem: Fundação Portimagem

Antes disto já me tinha exercitado, atirando aos gaivões, que todas as tardes vinham fazer as suas correrias aéreas no alto da quinta do Desembargador, e por cima da minha casa, em S. Francisco de Paula.

A anglomania não se apoderara do poeta, apesar da moda e da tradição, já antiga. A sua espingarda d'então era uma bella arma hespanhola de Eybar — canos de "herraduras" — como nelles se lia em lettras d'oiro, e oitavados até um terço. D'oiro era a mira, e com elle discretamente ornada na bôcca e em volta da fecharia [das platinas] . Nada de oriental nesta ornamentação sóbria — um filete apenas. O guarda-matto [a fecharia] tinha mola de segurança. Elegante e solida, esta caçadeira havia dado as suas provas: a esse tempo entrara já em muitas batalhas, e pouco antes Lopes Cabral — um athleta — matou com ella, em um dia, na Gollegã, setenta e cinco codornizes!

A Eybar succedeu Paris, e a espingarda que lhe conheço em effectivo serviço, ha mais de vinte annos, é uma Gastine-Renette, do systema Lefaucheux, cinzelada e acabada com a maior perfeição. Arma fina e de preço.

Gastine-Renette é úm dos mais illustres entre os fabricantes d'armas contemporâneos. Foi o "Arquebusier" de Napoleão III, o seu fornecedor predilecto de armas de caça e de guerra.

No cabide de armas do poeta vêem-se mais duas — uma de fogo central, belga, e outra Flobert-Remington.

Traiçoeira esta ultima. — Como os machos d'arrieiro morde e dá couce! O cão levanta, e o tiro vem, ás vezes, também para a cara do atirador! Perigoso systema.

Dos cães da espingarda para os das perdizes a transição é fácil, e está feita.

O capitulo dos nossos fieis alliados, e dedicados companheiros, é para nós ainda mais importante do que o das armas; com uma espingarda medíocre pode-se caçar — é com ella que atira a maior parte dos caçadores — mas com um cão mau é impossível: a caça que levanta é por acaso, e, depois de morta ou ferida, uma não se acha, á outra perde-se o rastro, e a maior parte fica no campo para as genetas, rapozas e milhafres.

Pois os paragraphos deste capitulo são brilhantes; Bulhão Pato tem tido a fortuna de caçar na companhia dos seus amigos, com óptimos perdigueiros, e, entre os seus, conheci algumas "espadas" de primeira ordem. Teve o "Pombo", soberbo animal — presente, se não me engano, do morgado António Borges da Camará Medeiros, distincto amador, da ilha de S. Miguel; a "Medóra", lindissima perdigueira, uma estampa, fina de desenho e de côr, e que era o enlevo de Alexandre Herculano, apesar delle não ser caçador.


A estes seguiu-se o "Mazeppa" — um verdadeiro tyrano dos campos, que a nada perdoava: o que elle encontrava deante de si havia de ir para o ar! Branco, todo elle, alto, a cabeça grande, a orelha curta, robusto de formas, dum enorme alcance de olfacto, caçando com uma certeza e a distancias, prodigiosas, era um bello espectáculo vel-o trabalhar em campo largo. Apontava a caça de cabeça erguida, e ia direito a ella, com tal firmeza, que não seria maior, se elle a visse!

Como todas as formosas tinha um senão — não trazia a caça ao dono! Porque um tal defeito em animal de raça, e tão fino como este era, ao certo não o sei. Podia tel-o de natureza ou adquirido. Offerecido ao illustre poeta pelo seu velho amigo, o general Schwalbach, mandara-lho este do Porto, ainda novo, mas, se bem me lembro, já feito, e a caçar. Talvez lá fosse ensinado por algum amador inglez, e estes, como se sabe, costumam, caçando com dois ou mais cães, delegar no "retriever" as funcções subalternas de procurar e trazer á mão a ave, a lebre, ou o coelho, levantados pelos seus nobres "pointers" ou "setters". Fosse o que fosse, "Mazeppa" era, apesar d'esta falta, um brilhantíssimo explorador.

"Lady" a cuja morte o poeta — como outros, Byron, por exemplo — dedicou sentidos versos, não desmerecia d'estes, e em duma meiguice notável e duma rara dedicação.

Bulhão Pato, Rafael Bordalo Pinheiro,
Album Glórias, 1902
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Eu não fiz versos aos meus, não sou poeta: mas quando elles fecharam os oIhos para sempre, os meus nunca ficaram enxutos. (1)


(1) Zacharias d'Aça, O Tiro Civil n.° 135, sexta-feira 1 de abril de 1898

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Tema: Bulhão Pato

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Bulhão Pato, Zacharias d'Aça, O Occidente n.° 717, 30 de novembro de 1898
Bulhão Pato, Paquita, Typographia Franco-Portugueza, 1866Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896
Francisco Zacharias d'Aça, Caçadas portuguezas: paizagens, figuras do campo,
Lisboa, Secção Editorial da Companhia Nacional Editora, 1898

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