quarta-feira, 14 de junho de 2017

Bulhão Pato, Poeta — Pintor do mar — Sportsman, por Zacharias d'Aça (I)

De certas organisações poéticas, espíritos singularmente dotados pela natureza, podemos dizer que o decorrer do tempo, os baldões da vida, os assaltos da má fortuna, a inconstância da sorte, todo este mar revolto do mundo, o affrontam elles com o olhar sereno, e o animo impávido. Nesta virtuosa navegação, com a experiência de tantos naufragios — os próprios e os alheios — elles são como esses grandes navegadores que, a despeito dos ventos, dos mares, e dos homens — ainda peiores inimigos, não desconfiam da sua estrella, e conseguem chegar ao porto do seu destino!

Costa da Caparica, Adriano de Sousa Lopes (1879 - 1944).
Imagem: MNAC (museu do Chiado)

São estes os poetas de raça, os verdadeiros poetas: para estes não ha annos de prosa. Cantam na mocidade, na primavera da vida; cantam no estio; o outono illumina-os, doira-os com os tons melancólicos da saudade, e o inverno da vida dá-lhes uma serenidade altiva, a tranquillidade das altas regiões espirituaes, em que a alma, sempre viva e lúcida, na sua constante evolução, alheiada das paixões terrenas, como a chrysálida vae-se transformando, para se abrir em novos mundos!

Raimundo António de Bulhão Pato,
Imagem: Hemeroteca Digital

A esta privilegiada familia. a esta aristocracia intellectual, pertence Bulhão Pato. Todos o conhecem, todos o sabem; não é isto novidade, que precise de demonstração.

Neste logar não falaremos especialmente do grande escriptor, das suas altas e finas qualidades de prosador e de poeta. Aqui as lettras não são de certo nem extranhas, nem malvindas, mas nos campos soam mais do que os accordes da lyra as trompas e o vozear dos caçadores. 

O auctor da "Paquita" e do "Livro do Monte" — o seu ultimo e precioso livro — não é um escriptor sedentário, não é um poeta de gabinete, inventando sensações, compondo com sentimentos imaginários situações em que nunca se encontrou; não, e os seus livros — poemas, narrativas, cantos, e sátiras — a sua prosa e a sua poesia, são obras vividas: estão alli os personagens, as scenas, os episódios, os lances do drama da sua vida; são aquelles o céu, as terras, os mares, os homens e as mulheres, que elle viu, que elle conheceu e que elle amou.

Alma curiosa e sedenta de impressões, não se limitava a gosar dos encantos do mundo das salas; e elle saía d'um baile e partia para uma caçada, e d'ahi para uma larga digressão pelas nossas províncias, ou ia-se de foz em tora até á ilha de S. Miguel, á Hespanha ou á Itália, com um verdadeiro prazer e não era necessário que nol-o dissesse, porque bem se lhe via no rosto, que o sentia.

[II]

São esplendidas de verdade as suas paizagens; com um toque ou dois dá-nos o artista a impressão do mundo real, — estamos vendo e ouvindo os seus aldeões, os seus rústicos. Os seus olhos íixam e gravam em si para sempre os movimentos, os gestos dos animaes — os da terra e os do ar, e os aspectos da natureza. As grandes scenas marítimas, as largas paizagens oceânicas que elle nos pinta — não digo descreve — na "Paquita", são obras-primas, quadros agitados, em que o turvar da atmosphera, o assobiar do vento nas enxárcias, o fuzilar do raio e o estalar do trovão, teem tal certeza nos traços, tal viveza no colorido, que, quando os lemos, como que nos aconchegamos no gabinete, tanto a realidade da descripção do tremendo espectáculo se impõe ao nosso espirito!

No mar está o poeta no seu elemento. Nos momentos solemnes, em pleno vendaval, no mar dos Açores, quando os passageiros recolhiam aos beliches, e no convéz só se viam os homens da faina com as suas Japonas e os seus nordestes breados, eu vejo, na minha imaginação, na popa do vapor, quatro vultos, o.s dois homens do leme, o capitão Telles Machado, velho lobo do mar, e Bulhão Pato. E tudo a postos... Que um temporal naquelles mares é de tremer! Os naufrágios são, ás vezes, ás dúzias, quando o vento se levanta, e as ondas se encapellam naquellas costas!

Bulhão Pato por Marciano Henriques da Silva
(museu Carlos Machado em Ponta Delgada).
Imagem: Alexandre Flores

Era ahi que o poeta recebia a impressão directa do grandioso e medonho scenario das formidáveis tragedias do mar!

Os originaes dos seus quadros viu-os o grande artista bem de perto de dia, e mais temerosos ainda de noite! E com que alto estxlo elle os pintou!

Quando o mar, de improviso, se encapella.
Quem nesse instante acorda, julga um sonho,
Horrível sonho, o assalto da procella!

[...]

A faiscar, em virotões, o raio!
Ribombava o trovão, inda distante;
O sol, açafroado e de soslaio,
Tocava as densas nuvens do levante;
Dando ás cristas das ondas rebentadas,
A espaço, uma tinta coruscante !

Faina geral ! O vento desgarrão,
Austral, intercadente, a carregar,
E a rajada maior que o recalmão!
Investindo furiosas, a intestar.
As torvas ondas de fumante espuma,
Co'as nuvens achatadas sobre o mar!

Ó mar! quando a refrega violenta
Em pyramide as ondas te alevanta,
Quem se atreve comtigo na tormenta
A besta fera ao teu bramir se espanta! 
Somente o homem te contrasta os impetos!
Elle só contra ti se não quebranta!

Em tuas solidões desamparado,
Olhando para o céu — que, em taes momentos.
Parece por Satan reconquistado! —
Mais audacioso que o furor dos ventos.
Paira acima do horror da natureza,
Como um Deus, por seus altos pensamentos!

Tem o mar os seus amantes, os seus apaixonados, e nós comprehendemos o sentimento de orgulho, que as almas fortes devem experimentar, ao affrontarem as cóleras immensas do Oceano!

Marinha, João Christino da Silva, 1855-1860.
Imagem: MNAC

Levantarem-se-lhes as ondas em montanhas, e de súbito, e logo em seguida, cavar-se-lhes o ahysmo verde-negro e medonho, entrevendo-se, lá em baixo, as fauces do grande tragador, a bôcca escancarada e o seio da immensa sepultura! Soprar-lhes o vento nos cabos o hymno desvairado da procella — os intervallos do silencio trágico cortados pelo gemer arrastado do arvoredo!... E as investidas d'esse mar, o desabar d essas montanhas, essa baldeação enorme, em que ellas se precipitam, onda sobre onda, e correm e lavam o convéz de proa á popa, e levam e arrastam tudo! E as lufadas do vento, e as cambiantes da atmosphera, e o fulgurar dos relâmpagos, e o scintillar do raio, os gritos de terror, a pallidez dos rostos, o tremor das vozes, o anceio dos ânimos, o trepidar dos corações!... E tudo isto a succeder-se na expressão dos olhos, espelhos da alma!... Oh! quem tiver assistido a taes scenas, se duraram horas, pode contal-as por séculos!

Recuar da onda, João Christino da Silva, 1857.
Imagem: Museu Calouste Gulbenkian

Mas os que escapam ás fúrias da tempestade, não voltam as costas ao mar! Antes parece que mais lhe ficam querendo! Já o Camões pintou esse amor, quando poz na bôcca do Adamastor aquelles versos, desesperados e saudosos:

Todas as deusas desprezei do céu,
só por amar das aguas a princeza!

Tem sido navegador o nosso poeta, também foi cavalleiro; e quem escapou das tormentas do mar esteve a pique de perder-se em terra, e num rio sem agua! Um milagre este, se não maior, pelo menos mais veridico do que o succedido ao bom cavalleiro D. Fuás Roupinho, que o nosso grande poeta Castilho immortalisou na sua Chácara da Senhora da Nazareth.

Deu-se o caso um dia que Bulhão Pato saíra a passeio pelos arredores da Arruda, na companhia do visconde de Asseca, Salvador Corrêa, pae do actual titular. O cavallo que elle montava, era um potro d'Alter fogosíssimo, e o poeta, então na exuberância de forças dos vinte annos, deu-lhe largas: o que a principio era trote passou a galope, e na desenfreada carreira chegaram á ponte, pequena e irregular, mas que mede talvez trinta pés d'alto... O parapeito é baixissimo, e o leito do rio estava sècco, a descoberto.

Torres Vedras, Morro do Castelo e Rio Sizandro.
Imagem: Delcampe - Bosspostcard

Bulhão Pato quiz voltar o potro, ao entrar na ponte, mas já não poude!... O impulso da corrida era maior, e cavallo e cavalleiro salvaram as guardas, e caíram no leito pedregoso do Sizandro! O cavallo ficou inutilisado, o cavalleiro incólume! Não tinha uma beliscadura! Valeu-lhe o ser magro e de pequena estatura, dirão: valeu-lhe a fortuna, porque o salto era mortal!

Quando alguns homens correram para o rio, já acharam o poeta de pé, sacudindo a terra de si, e aprestando-se para sair do que quasi lhe fora tumulo! É impossível descrever o pasmo que d'elles se apossou, ao verem o cavalleiro dizer-lhes:

— Vocês vinham para me levar!? Hein! Pois, obrigado, eu cá vou andando. Se quizerem levem o cavallo: esse é que de certo não pode comsigo.

Na villa apontavam o poeta, e olhavam-no depois com certa admiração respeitosa. Parecia com effeito que elle cruzara os terríveis humbraes da morte! Elle, todavia, preferiu as campinas e as várzeas, o mundo, a que tão cedo o quizera arrancar o fogoso corsel!

Torres Vedras, Rio Sizandro, Marques Abreu, c. 1900.
Imagem: Delcampe

E por mares e rios, montes e valles, o viemos acompanhando, e cá estamos com elle nas várzeas e nas campinas, nas vinhas e nos pinhaes — numa palavra, no campo das suas caçadas. (1)


(1) Zacharias d'Aça, O Tiro Civil n.° 134, terça-feira 15 de março de 1898

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Tema: Bulhão Pato

Informação relacionada:
Bulhão Pato, Zacharias d'Aça, O Occidente n.° 717, 30 de novembro de 1898
Bulhão Pato, Paquita, Typographia Franco-Portugueza, 1866 
Bulhão Pato, Livro do Monte, georgicas, lyricas, Lisboa, Typographia da Academia, 1896
Francisco Zacharias d'Aça, Caçadas portuguezas: paizagens, figuras do campo,
Lisboa, Secção Editorial da Companhia Nacional Editora, 1898

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